Especial para o Estado de Minas

 

 

Já imaginou um museu virado do avesso? E se, ao chegar na Sala das Sessões do Museu Mineiro, você encontrasse o espaço quase vazio, apenas com o lado oculto da tela que compõe as histórias da origem da cidade de Belo Horizonte aparecendo? Que má notícia! Quem tirou as obras? Onde elas estão?

 




Desde 2016, a artista mineira Ana Raylander Mártis dos Anjos desenvolve uma pesquisa sobre os primórdios da cidade. Em seu percurso investigativo, tem feito perguntas fundamentais às fontes históricas. Durante o programa Bolsa Pampulha, neste 2024, Ana explorou documentos no Arquivo Público Mineiro, na Hemeroteca Histórica da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais e no Museu Mineiro.

 


Seu foco? A Sala das Sessões do Museu Mineiro e a sua exposição de longa duração, diálogo que estabeleceu com Luiza Marcolino, a curadora da sua exposição “Museu Mineiro [Sala das Sessões]”, que será aberta às 17h desta terça-feira (17/12). Às 18h, haverá uma visita mediada pela artista e pela curadora.

 


Inquieta e provocadora, Ana desloca da Sala das Sessões – lugar que, no passado, abrigava o legislativo e simbolizava o poder conservador da época da fundação da cidade – todos os pintores acadêmicos, ao todo 24 obras de arte, entre pinturas e objetos, de 11 autores.

 


Acervo desalojado

Os autores são Aníbal Mattos – “Paisagem” (sem data); “Casa de cidade antiga” (1926); “Antiga Capela de Sabará” (1925); “Fazenda da Borda” (1927) –; Armando Vianna – “Paisagem” (1951); Autoria não identificada – Cadeira do Senado Mineiro (século 20); Francisco Rocha – “Casa dos Inconfidentes”, “Casa de Marília” (1928); Genesco Murta – “Morro do Castelo” (1920); Honório Esteves - Crispim Jacques Bias Fortes (Retrato, 1898); Afonso Pena (Retrato,1900); “O pastor egípcio (1887); Retrato (1886); José Jacintho das Neves – “Casa da Varginha de Queluz” (1914); José Marques Campão – “Paisagem” (1932); “Les roses” (1931); Levino Fanzeres – “Margem do Santa”, “Margem do Rio Doce”; Nazareno Altavilla – “O carro-de-boi”, “Congonhas do Campo” (1953); Renato de Lima – Sem Título (1937), “Igreja Nossa Senhora do Carmo” (1930).

 


A artista desloca as obras das paredes, devolvendo-as à reserva técnica. Demovendo-as do seu estatuto de branquitude em exposição como parte constituinte de seus itinerários biográficos. Assim, desacomoda um espaço que é, essencialmente, um lugar de memória do Estado de Minas Gerais.

 


Como e por que Ana Raylander mexeu com toda a curadoria? Fez uma contra-curadoria, uma obra-exposição. Ela deixa os restos, as sobras, os vestígios, as marcas, tudo que ficou na parede, fazendo um fantasma-memória e expondo, portanto, a sala como se fosse um cômodo abandonado após uma mudança feita às pressas.

 


Perguntas incômodas

Com a remoção das obras acima mencionadas, uma única obra permaneceu na Sala das Sessões, a pintura do artista mineiro Belmiro de Almeida conhecida como “A má notícia”, de 1897.

 


Ana é uma artista que faz perguntas incômodas e necessárias: quem foram as mulheres que receberam a má notícia? Qual foi essa má notícia? Quais famílias foram desalojadas para que Belo Horizonte nascesse? Quais mulheres choraram? Seriam mulheres brancas, como a retratada por Belmiro de Almeida?

 


E as mulheres negras, que ocupavam as terras? E as indígenas, ou afro-indígenas? Onde estão as histórias dessas mulheres silenciadas pela história após serem despejadas? Em que momento suas vivências foram transformadas em lendas ou folclores? Que outras perguntas ainda podemos nos fazer?

 


A artista realiza uma performance da musealização, reivindicando seu direito de participar dos processos do Museu Mineiro. Ao questionar a narrativa oficial sobre a cidade, expõe apenas as costas da tela “A má notícia”, num gesto político-artístico que busca romper os silêncios e apagamentos estarrecedores impostos pela branquitude acrítica.

 


Ana Raylander criou um monumento/documento para a tela “A má notícia”, dividido em três partes: uma caixa interna que se assemelha às caixas de transporte de obra de arte, acondicionando a tela com revestimento macio; uma caixa externa feita de madeira pau-ferro e uma base de metal.

 


Um monumento para a atenção plena, uma convocatória à reflexão, um caminho aberto para uma curadoria mais diversa, um convite a repensar o papel social do Museu Mineiro [Sala das Sessões]. Para que seja possível historiar a cidade de Belo Horizonte com os trapos do mundo e, assim, poder tecer histórias negras e indígenas. É o espaço onde se recosturam memórias, apesar das cicatrizes, das dores e do sofrimento causado por tantas más notícias.

 

*Carolina Ruoso é doutora em História da Arte pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Professora de Teoria, Crítica e História da Arte da Escola de Belas Artes da UFMG.

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