Não é que eles venceram? Depois de guerras que consumiram séculos e provocaram uma carnificina em nível mundial, o planeta encontrou a paz. Uma língua única rege povos que outrora não se comunicavam. Reis, presidentes? Eles não mais existem, assim como as antigas formas de governo. Quem comanda tudo é um CEO, que trata o mundo como uma grande corporação.

 

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É este o universo criado por Inácio Araujo no romance "Utopia 3 - Últimas notícias do século 25" (Iluminuras). O passado está lá atrás, onde deve ficar – e ninguém deve se lembrar dele. Tanto por isto, todo e qualquer texto deve ser exterminado. Não fará muita diferença, já que os humanos não sabem mais ler. Só a Grande Tela é que importa.

 



 

A ironia (entre tantas outras, já que as cidades adotaram nomes de grandes corporações, vide New York Apple e ShellBras, a antiga Capital Federal brasileira) é que caberá às máquinas, na figura de velhos replicantes, tentar recuperar o que já houve de humanidade no planeta. Neste mundo aparentemente perfeito (para os outros, claro), um grupo de rebeldes que vive à margem se rebela.

 

"Acho que seria uma ficção fantástica, ou fantasiosa. Não diria científica, porque não consultei nenhum manual ou coluna de ciência", afirma Araujo, uma das maiores referências na crítica cinematográfica do país.

 

Seguindo as paixões

 

 

Com a vida profissional dedicada ao cinema – como montador e roteirista, para além da atividade de crítico – ele vê a literatura como um lugar amador, na melhor acepção da palavra. "Não ganho dinheiro com isto, não tenho compromisso. Como não estudo literatura, não tenho que dar conta de nada. Vou seguindo as paixões."

 

Autor de 'Utopia 3 - Últimas notícias do século 25', Inácio Araujo afirma que não escreveu ficção científica nem buscou referências em obras sobre futuros distópicos

Facebook/reprodução

 

Em "Utopia 3", Araujo pensa o futuro a partir do presente. Sua motivação para o romance, o primeiro em quase quatro décadas (sua estreia em uma narrativa de maior fôlego foi em "Casa de meninas", de 1987), foi o Brasil recente.

 


"Eu tentava entender as transformações que ocorreram, muito pesadas, com o Temer e que depois se anunciaram mais terríveis com o Bolsonaro. Ele conseguiu ferrar com a Amazônia, com os índios, mas muita coisa não mais porque é incompetente. E as reformas (como a trabalhista) do Temer foram na direção que o Brasil sempre vai, de prejudicar os pobres. Depois entrou o Bolsonaro com aquela coisa nazista mesmo, que me assustava muito. Eu não entendo, não consigo entender, então falei: 'Vou ver o que acontece com esse mundo se tudo o que eles dizem der certo'", afirma Araujo.

 

 

Foi a partir de "um sentimento dolorido em relação ao Brasil" que ele se jogou na ficção. "Não só na literatura, mas no cinema, sobretudo, estava havendo um descrédito da ficção. Tudo é 'baseado em fatos reais'. 'Don Quixote' então não interessa? Começaram a editar livros e até fazer filmes com pensamentos de moças e rapazes que escreviam no Facebook suas aventuras de vida. Uma coisa assim desvaloriza a ficção, porque todo mundo se torna autor de ficções. E a ficção tem que trazer alguma coisa a mais, não é?"

 

"Utopia 3" é dividido em cinco partes. A introdução, "Crônicas do melhor dos mundos", é a única referendada pela ficção científica, gênero do qual Araujo nunca foi fã. "Do (Ray) Bradbury eu conhecia, evidentemente, o filme do (François) Truffaut (“Fahrenheit 451”, de 1966, adaptação do romance homônimo)." Só recentemente ele leu "Crônicas marcianas" (1950), outra obra essencial do escritor norte-americano, que acabou norteando esta parte inicial.

 

"Foi muito difícil compor um cenário de um século qualquer à frente. Como uma pessoa se move no século 25? Como se alimenta? Como são as lojas? Tive que construir um mundo para o leitor ter um apoio, que pudesse ser crível", comenta Araujo, que pensou em um futuro que remete mais a "Alphaville" (1965), de Jean-Luc Godard, do que a "2001: Uma odisseia no espaço" (1968), de Stanley Kubrick.

 

"Acho genial. Até o cara que viaja, um pouco de detetive e repórter, é tirado de um filme noir dos anos 1950. O grande cérebro (o computador Alpha 60) é um ventilador, caramba! E tudo funciona muito bem, então eu fui um pouco assim", diz.

 

 

Para a sua saga, além das referências cinematográficas – "Cinema e literatura se imbricam, tanto que para mim um não existe sem o outro" –, Araujo foi atrás de referências que não têm nada a ver com futuros distópicos. Entre elas uma biografia do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss e a Guerra de Canudos retratada por Euclides da Cunha em "Os sertões".

 

"Esse livro foi uma tortura para mim, para fazer alguma coisa coerente e legível", admite ele, que na última prova fez tantas mudanças que, se não houvesse um basta do editor, estaria mudando até hoje. "Toda hora topo com alguma coisa e penso: 'Seria bom se tivesse entrado'. Ao mesmo tempo, é complicado, porque senão a narrativa teria quase mil páginas", diz. 

 

 “UTOPIA 3 - ÚLTIMAS NOTÍCIAS DO SÉCULO 25”


. De Inácio Araujo
. Iluminuras (254 págs.)
. R$ 98 (livro) e R$ 59 (e-book)

 

 TRECHO

 

"Acabaram também as galinhas, os porcos, os peixes, de maneira que fechar o açougue de que se ocupava com a mulher e pedir aposentadoria lhe pareceu a melhor solução. A terra ainda produzia vegetais. Cada vez mais minguados, mas produzia. A situação das lavouras incomodou muito às autoridades, que logo liberaram generosas verbas para que os cientistas passassem a desenvolver alimentos artificiais, com valor nutricional até maior que os dos produzidos pela terra. Logo chegamos às pílulas de nutrição, que contêm um conjunto balanceado de substâncias necessárias à preservação da vida, por preço mais módico que os praticados nos antigos mercados."


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