Ele era o mais novo e o caretão de uma turma movida ao álcool e às drogas. Tanto por isto, se lembra de tudo. “Vejo a minha memória como uma missão, pois, se não lembrasse das coisas, era como se elas não tivessem acontecido”, afirma Philippe Seabra, guitarrista e vocalista da Plebe Rude. Com a autobiografia “O cara da Plebe” (Belas Letras), ele passa a limpo não só a própria história, como a da geração do rock de Brasília.
“Não é uma biografia de rock and roll, ainda que tenha a mesma quantidade de drogas dos outros (livros do gênero). Sempre fui o piadista da turma, e tenho um senso de humor muito autodepreciativo. Tem coisas engraçadas, mas também outras muito sérias”, afirma Seabra, de 58 anos.
É um livrão, de mais de 600 páginas, que acompanha não só a sua carreira musical – a Plebe foi fundada em 1981, quando ele tinha 14 anos – mas também a de sua família e a de Brasília.
“Quem cresceu em Brasília na época teve uma visão única do Brasil. Crescer numa cidade que tem a sua idade (ele é de 1966; a capital federal, de 1960) é muito estranho. Sendo uma cidade ímpar, árida, um entreposto burocrático, você tentava se encontrar na adolescência. O Renato (Russo) tinha um ímpeto artístico, mas por ter sido em Brasília ressoou como ressoou. A nossa arma era a palavra.”
Palestras
A ideia de escrever “O cara da Plebe” veio em 2017, quando Seabra fez palestras para alunos da rede pública do Distrito Federal. Nascido em outra capital federal, Washington, filho do diplomata americano (de família portuguesa) Alexandre José Jorge de Seabra e da paraense Silvia Mara Brasil de Seabra, o músico viveu nos Estados Unidos até os 9 anos.
“No momento da palestra em que falava sobre visitação em museus, e eu ia com meus pais, não com a escola, todos batiam palmas. Aquilo me deu um estalo: a apreciação de arte e cultura deveria vir de casa e ser reforçada pela escola. Isto no mundo ideal, já que o que acontece é o contrário. Comecei a perceber ali que tinha algo para falar.”
Remexeu nos guardados e escreveu de monte. Engavetou o projeto e o retomou mais de um ano depois. Terminou em fevereiro de 2020. Veio a pandemia, e Seabra não olhou para o livro por dois anos. Voltou a ele no início de 2023, quando cortou muita coisa (originalmente, a obra tinha 900 páginas), e adicionou outras tantas.
Logicamente, boa parte da narrativa reúne histórias das bandas de Brasília – Legião Urbana, Capital Inicial e a Plebe. Mais interessante é conhecer a pré-história disso tudo, que Seabra expõe em detalhes, como participante e testemunha. Há também vários momentos sobre outros grupos da época, os Paralamas do Sucesso em especial. É de Herbert Vianna, inclusive, o texto de apresentação do livro.
Álbum de estreia e o mais importante da banda, “O concreto já rachou” (1986), foi lançado quando Seabra tinha 18 anos. Como preza a cartilha punk pela qual a Plebe sempre se pautou, reúne sete faixas curtas e de rápida rotação, entre elas os hinos “Proteção” e “Até quando esperar”. “Quando reli o livro, no comecinho de 2023, tive o impacto que os fãs da Plebe tiveram quando saiu ‘O concreto já rachou’”, conta Seabra.
Nos dias atuais, o grupo também mantém, dos fundadores, o baixista André X, que foi quem deu início à banda. A Plebe tem duas fases – a inicial, até 1994, quando o grupo se desfez; e a atual, iniciada nos anos 2000, com Clemente (dos Inocentes) nos vocais e guitarra, e Marcelo Capucci, o terceiro baterista, na função desde 2011.
O leitor encontrará momentos históricos de uma geração que estava fazendo rock no período final da ditadura militar (1964-1985). Não custa lembrar que o primeiro show da Legião Urbana foi em 5 de setembro de 1982, em Patos de Minas. Renato Russo, sem avisar ao contratante (modo de falar, pois não havia cachê, hospedagem ou alimentação), levou a Plebe, que faria ali seu primeiro show fora de Brasília.
Seabra, na época com 15 anos, conta esta estreia com riqueza de detalhes. O final é de amplo conhecimento: as duas bandas foram detidas por causa das letras de “Música urbana 2” (da Legião) e “Voto em branco” (da Plebe).
“Ouvi todos os envolvidos que ainda estão vivos. O mais significativo é que o primeiro show do Aborto Elétrico fora de Brasília, em Goiânia, teve pancadaria, foi praticamente cancelado. O primeiro da Plebe em São Paulo, na noite de encerramento do Napalm, teve uma pancadaria que eu nunca tinha visto igual, parecia coisa dos Trapalhões. Ficava pensando se era azar ou sina”, diz ele.
Em 2025, a banda completa quatro décadas de seu álbum de estreia. Seu disco mais recente, “Evolução, Vol. 2”, é de 2023. O grupo está entrando no novo ano com o projeto de mais um. Vai gravar um acústico. O registro será em Minas, conta Seabra. A cidade ele ainda não revela.
TRECHO
“Em 1980 eu estava com 13 anos e o André me chamou para ver sua banda, os Metralhaz, que se apresentaria na lanchonete Food’s na 111 sul...As bandas que tocavam eram Blitx 64, Metralhaz e um tal de Aborto Elétrico e o equipamento, quase inexistente; tosco. O que tinha no meu quarto sem uso era melhor que aquilo…O Aborto, com um cara doido que mais parecia um gato molhado, urrava no microfone, mas sabe se lá o que cantava... Mas no meio da maçaroca, alguma coisa estava acontecendo. Era a postura, a atitude dessa turma que me cativou, mais do que as próprias canções, se alguém podia chamar algumas delas de canções. Olhava em volta e via as pessoas atentas, muito atentas, pessoas que se tornariam meus amigos. Renato logo chamaria esse pessoal de “A Tchurma”.
“O CARA DA PLEBE”
• Philippe Seabra
• Belas Letras (640 págs.)
• R$ 132