Como uma artista traduz a experiência da dignidade humana em imagens? Como podemos imaginar as linhas que desenham as relações da pessoa com seu território? Como se dá o processo de pertencimento entre a artista e seu lugar de memória?
E, finalmente, como as histórias do povo que labutou e ainda labuta são ressignificadas pelas lentes sensíveis de Luiza Poeiras? São essas algumas das questões que surgem ao visitarmos a exposição “Trabalho vivo, trabalho morto”, com curadoria de Flaviana Lasan, em cartaz no Museu de Artes e Ofícios.
Flaviana, em sua pesquisa sobre a produção artística de Luiza, nos provoca com uma pergunta fundamental: "Quando se começa a pensar como trabalhador?". Ela responde, ao refletir sobre o peso que um trabalhador pode carregar, destacando que esse peso remonta aos princípios da colonização, simbolizado pela carga do café.
Para além do peso material, há o desgaste físico, o cansaço, a exaustão, os acidentes de trabalho, que assombram e capturam nossa capacidade de descansar, de dormir e, principalmente, de sonhar.
Ao longo da história, muitos artistas se dedicaram ao retrato dos trabalhadores, ao trabalho no cotidiano, à luta política, ao saber dos ofícios, ao trabalho das multidões. Luiza Poeiras, no entanto, questiona em sua obra as relações entre trabalho e tempo, nos convidando a refletir sobre como aproveitamos o tempo e o que consideramos como vivência.
Poesia visual
Suas cenas, muitas vezes ambientadas e percebidas a partir do seu bairro, ampliando-se para toda a cidade, na sua complexa vivência citadina, nos mostram momentos de descontração, ressignificando o tempo da "folga" no meio da agitação urbana. A artista faz do seu pertencimento social e cultural uma poesia visual e, com ela, constrói uma trama que conta histórias da vida criativa do povo.
Na era das telas, imersos no presente fragmentado, talvez estejamos todos precisando reaprender a descansar. Compreender o descanso não como um luxo, mas como um direito, uma prática de saúde, uma vivência de cuidado, e, sobretudo, como uma tática urbana para nos mantermos vivos e desejantes.
O simples fato de estar só, enquanto se contempla a paisagem ou se observa as pessoas que passam, já carrega em si uma sabedoria: a de deixar o tempo escorrer lentamente, permitindo que a mente divague, que a imaginação, os sentimentos, fluam livremente. A curadora nos convida, a partir das imagens de Luiza, a explorar as múltiplas dimensões do descanso dos trabalhadores.
Respeito à vida
Em que posição descansamos? Deitados? Meio sentados, meio deitados? Aconchegados em um banco ou no batente da rua? Sozinhos ou acompanhados? Sabemos nos acocorar para observar o tempo passar? A posição de cócoras, muitas vezes desvalorizada, é um saber ancestral, não ocidental, que a modernidade rejeitou, mas que, na atualidade, começa a ser retomado como um ato político de respeito à vida.
Acocorar-se é, portanto, um gesto de resistência, de valorização do corpo, da pausa e da contemplação. Hoje, parece necessário ensinar como se sentar dessa forma, tal a ignorância acumulada sobre a importância desse gesto. Luiza Poeiras, com precisão, revela as riquezas desse saber, ensinando-nos a arte de aproveitar as brechas da vida, como um momento de invenção e ressignificação de si.
Os sacos de rafia, as telas de proteção e os materiais da construção civil, elementos cotidianos e quase invisíveis, do uso ao descarte, do descarte ou reuso, formam a estética da obra de Luiza. Eles representam as malhas que sustentam a existência, a resistência e, sobretudo, a insistência na dignidade humana.
A artista, em sua relação de pertencimento, exalta a sabedoria dos trabalhadores que, apesar de tudo, sabem viver com poesia. Seja sentar-se no batente da rua para uma conversa descompromissada, seja brincando de esconde-esconde, seja andando descalço, o que importa é, no meio da luta diária, criar o tempo de invenção de si, de imaginar um mundo melhor, mais justo e digno.
“Trabalho vivo, trabalho morto” é, assim, um convite a refletirmos sobre o valor do trabalho, da pausa e da relação entre ambos. No fim, todos desejamos tempo livre: para o lazer, a festa, a amizade, a família, o amor, para contar histórias e transmitir experiências. Mas, talvez, o maior convite de Luiza Poeiras seja para que, no meio de toda a luta, possamos encontrar momentos de descanso, de quietude e de reinvenção.
“TRABALHO VIVO, TRABALHO MORTO”
Exposição individual de Luiza Poeiras. Em cartaz até 2 de março, no Museu de Artes e Ofícios (Praça Rui Barbosa, 600 - Centro). Visitação de terça a sexta, das 11h às 17h; e aos sábados, das 9h às 17h,
com entrada até as 16h30. Gratuito.
*Doutora em História da Arte pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne e professora de Teoria, Crítica e História da Arte na Escola de Belas Artes da UFMG.