O poeta e filósofo francês Paul Valéry (1871-1945) já havia alertado, em 1919, que a modernidade aboliu as duas maiores invenções da humanidade: passado e futuro. O argelino Albert Camus (1913-1960) foi além. Mais ou menos na mesma época, escreveu em artigo para o periódico francês Combat que “o século 17 foi o século das matemáticas, o século 18, o das ciências físicas, e o século 19 o da biologia”, sendo, portanto, o século 20, “o século do medo”.

 

Mas medo de quê, uma vez que passado e futuro já não existem?

 


Não se trata aqui de buscar o complemento nominal, é o que vem responder o livro “Sobre a coragem e outras virtudes”. Organizado pelo jornalista e professor Adauto Novaes e lançado pelo selo Sesc, o livro é o 45º volume do ciclo Mutações e reúne 19 ensaios apresentados na edição de 2022 do ciclo de palestras homônimo organizado por Novaes.

 

 


Os textos, escritos por diferentes pensadores brasileiros e estrangeiros, analisam a coragem enquanto conceito, destacando-a como virtude essencial diante do declínio político e moral da sociedade.

 


“A coragem hoje tende a desaparecer”, ressalta Novaes, no primeiro ensaio do livro. Citando o poeta francês René Char (1907-1988), ele acrescenta: “Valores são anulados, e ‘sentimentos que pareciam inquebrantáveis por terem resistido a vinte séculos de vicissitudes transformaram-se em ruínas’”.

 



 


“A coragem não anda sozinha”, diz Adauto, em entrevista ao Estado de Minas por telefone. “Desde os tempos mais antigos, ela estava ligada a outras virtudes, como a justiça, a temperança e, principalmente, o saber. O imprudente pode dizer que é corajoso por fazer coisas insensatas, mas, na verdade, ele não é corajoso. É apenas imprudente”, exemplifica.

 


“Anarquia da coragem”

 

Assim como a coragem é associada à justiça, temperança e sabedoria por Novaes, o professor Helton Adverse a associa à memória e ideologia; e a ensaísta Márcia Sá Cavalcante Schuback discute o conceito de “anarquia da coragem”.

 


“Talvez a coragem esteja em segurar-se na anarquia do desamparo… ouvir o que diz a letargia e a apatia geradas pelo medo, e, na falta de força – para transformar a transformação devastadora e exterminadora do mundo –, atentar a como o impossível, nos tocando, toca o mundo”, escreve ela.

 

 


“A mutação que a gente está vivendo hoje é o abandono dos princípios que sempre regeram a humanidade”, complementa Novaes, concordando com Schuback. “Vivemos um momento de an-arkhé (origem da palavra anarquia; em grego, ‘an’ significa ‘sem’ e ‘arkhé’ significa ‘princípio’), ou seja, o abandono dos velhos princípios que sempre regeram a política, os costumes e as mentalidades”, acrescenta.

 

Trump e Milei

 

Esse movimento, segundo ele, está passando despercebido pelos acadêmicos. “Basta abrir os olhos para perceber o que está acontecendo em qualquer área, principalmente na política. Vemos a eleição de Trump e Milei, figuras contra todos os princípios. São políticos da extrema direita, fascistas ou neofascistas, que continuam doutrinando a população”, aponta Novaes.

 

 


Princípios e virtudes associados à coragem estão também nos textos de Lilia Moritz Schwarcz, Eugênio Bucci, Frédéric Gros e Francis Wolff, entre outros autores que participam do livro.

 

O ensaio que mais se destaca, contudo, é “Reflexões sobre a coragem das mulheres”, do filósofo iluminista Denis Diderot (1713-1784), que nunca havia sido publicado no Brasil.

 

Diderot defende que as mulheres são mais corajosas do que os homens por serem mais capazes de amar a vida. Ao contrário delas, ele escreve, os homens apenas buscam vencer o medo da morte, num covarde apego à existência.

 

Manifestantes criticam a violência contra a mulher em protesto realizado em São Paulo, no Dia Internacional da Mulher

Yasuyoshi Chiba/AFP

 

O filósofo é cirúrgico ao criticar a ideia preconceituosa de que mulheres são mais fracas e superficiais: "Consideramos que as mulheres só conhecem da vida os agrados e as comodidades, fazendo-as acreditar serem feitas unicamente para usufruir deles… Que distância separa essa forma de vida daquela das Cincinato e dos Régulo?”, indaga, citando o ditador romano Lúcio Quíncio Cincinato e o soldado Marco Atílio Régulo para se referir ao estilo de vida dos romanos da alta sociedade em geral.

 

 


“Sobre a coragem e outras virtudes” é, como diz o pesquisador Eugênio Mattioli Gonçalves, na orelha do livro, um convite para o leitor revisitar o passado não apenas para compreender o presente, mas, sobretudo, para vislumbrar um futuro diferente.

 


Adauto Novaes coordena o projeto Mutações desde a década de 1990, época em que estava à frente do Centro de Estudos e Pesquisas da Funarte, no Rio de Janeiro. A partir de 2000, criou o instituto Artepensamento, por meio do qual disponibiliza em site um acervo de 711 ensaios e 25 filmes de conferências.

 


“O site já tem mais de 1,3 milhão de visualizações. Acho que isso é um feito importantíssimo, porque está permitindo que pessoas sem condições para comprar livros possam ter acesso ao conteúdo que promovemos”, diz.

 

Autores

 

“Sobre a coragem e outras virtudes” conta com ensaios de Adauto Novaes, Frédéric Gros, Helton Adverse, Francis Wolff, Márcia Sá Cavalcante Schuback, Denis Diderot, Tessa Moura Lacerda, Vladimir Safatle, Luiz Alberto Oliveira, Lilia Moritz Schwarcz, Oswaldo Giacoia Junior, Jorge Coli, Newton Bignotto, Olgária Matos, Renato Lessa, Maria Rita Kehl, Marcelo Jasmin, Pedro Duarte e Eugênio Bucci.

 

“SOBRE A CORAGEM E OUTRAS VIRTUDES”


• Organização: Adauto Novaes
• Edições Sesc (368 págs.)
• R$ 75

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