A Gal Costa tropicalista, roqueira e libertária ganha destaque no disco “Frugal & Psicodélica” (Music Magic) lançado pelo guitarrista, arranjador e compositor Victor Biglione, que trabalhou 24 anos com a estrela baiana (1945-2022). Dez faixas trazem releituras de canções gravadas por ela de 1968 a 1971. Também participam do projeto a cantora e multi-instrumentista Renata Puntel e Jorge Pescara, pesquisador musical, contrabaixista e compositor.

 

 

O repertório reúne “Hotel das estrelas” (Jards Macalé e Duda Machado); “Divino maravilhoso” (Caetano Veloso e Gilberto Gil); “Objeto sim, objeto não”, “Cultura e civilização” e “Minimistério” (Gilberto Gil); “Pérola negra” (Luiz Melodia); “Vou recomeçar (Roberto e Erasmo Carlos); além de dois clássicos de Caetano: “London London” e “Baby”.

 

Os arranjos foram divididos entre Biglione e Pescara. Guto Goffi, do Barão Vermelho, faz participação especial na bateria. Teclados e harpa celta ficaram a cargo de Renata Puntel.

 

 



 

“O repertório é da fase que pega o tropicalismo, a fase roqueira e a psicodelia”, afirma Victor Biglione, contando que o projeto nasceu de uma conversa dele com Pescara. “Pegamos 'Vou recomeçar', do Roberto e Erasmo, do primeiro disco da Gal, 'Divino maravilhoso', que é da fase do show 'Gal fatal', e fomos por aí afora”, comenta.

 

 

Victor Biglione, Renata Puntel e Jorge Pescara gravaram disco com repertório de Gal entre 1968 a 1971

Ricardo Queiroz/Divulgação

 

 

Biglione gravou “Pérola negra” com arranjo mais jazzístico. “Fiz uns três ou quatro discos com Luiz Melodia, sempre amei esta música. Já em 'Minimistério', foquei mais na época da fusão do jazz-rock, inclusive porque Gal foi ao Festival da Ilha de Wight, em 1970, e me lembro dela impressionada com a apresentação de Miles Davis”, diz.

 

Além do ícone americano do jazz, participaram do evento, na ilha britânica, Jimi Hendrix, The Doors e The Who, entre outras estrelas do rock. Caetano Veloso e Gilberto Gil, exilados na Inglaterra, também se apresentaram lá.

 

 

“'Minimistério' foi composta por Gil logo depois do AI-5, após um show na boate Sucata, no Rio de Janeiro. (A canção) é sobre o ministério de Luís Antônio da Gama e Silva”, detalha o guitarrista.
Esse ministro da Justiça foi autor do Ato Institucional nº 5, imposto ao Brasil em 13 de dezembro de 1968, fechando o Congresso Nacional e fortalecendo a ditadura militar.

 


“Hotel das estrelas”, que fez parte do show 'Gal fatal', abre o disco. “Coloquei nela uma introdução por causa da ligação de Gal com o Glauber Rocha, com a turma do cinema e com o Hélio Oiticica. Fiz questão de uma 'intro' bem cinematográfica, da época do Cinema Novo”, diz o guitarrista.

 

 


A intenção de Victor é mostrar para a geração do século 21 o Brasil entre 1968 e 1971, além de destacar a importância de Gal Costa naquele período, quando o país ingressou na fase mais repressiva da ditadura militar.

 


“Gal não só me guiou – eu com 10, 11, 13 anos –, como orientou a minha vida e também de diversas gerações”, afirma o guitarrista, hoje com 66 anos, destacando a maneira de se vestir, o cabelo e a forma de cantar da estrela baiana.

 

“Foi um negócio impressionante. Poucas pessoas têm noção do poderio dela em termos de guiar gerações, assim como o Caetano e o Gil fizeram.”

 

 

Aos 22 anos, Biglione começou a tocar com a cantora em 1980. Dobradinha dos dois fez história. Com sua guitarra, Victor a desafiou durante a canção “Meu nome é Gal”. O duelo entre voz e instrumento foi gravado em 1981 para o especial da TV Globo chamado “Grandes nomes”.

 

Desbunde, transbunde e rock

 

O guitarrista explica que seu disco é um projeto amplo. “Não poderia deixar de homenagear também esta parte tão importante do Brasil: o artista plástico Hélio Oiticica, o desbunde, o transbunde, a verdadeira fase do rock brasileiro, na minha opinião. Ao se falar em rock no Brasil, Gal é uma das figuras fundamentais. Gravamos Ary Barroso, um monte de coisas da MPB, mas a atuação dela como roqueira foi fundamental. Era uma patroa excelente, não tinha o ego inflado.”

 


Biglione define “Frugal & Psicodélica” como trabalho sincero. “É uma espécie de canto do cisne da grande criatividade, sem responsabilidades comerciais, que a cultura brasileira estava vivendo em termos de cinema, arquitetura, artes plásticas, tudo misturado. Gal cantava rock e bossa nova no mesmo show, não tinha esse negócio de 'qual é o seu ritmo?'. Era ela, que podia vir com João Gilberto ou Roberto Carlos.”


Riocentro

 

O guitarrista deixou a banda de Gal Costa para tocar com o grupo A Cor do Som, mas voltou. “Fizemos coisas juntos de 1980 a 2004”, diz. E relembra um momento histórico: “Estava com ela naquele show de 1981, o da bomba”.

 


O músico se refere ao Atentado do Riocentro. Articulado por setores do Exército e da PM do Rio de Janeiro, o ato terrorista tinha como alvo o show de artistas da MPB contrários à ditadura, que atraiu 20 mil pessoas ao centro de exposições carioca em 30 de abril de 1981.

 


Os idealizadores do ataque a bomba pretendiam sabotar a abertura política articulada pelo próprio governo militar. A responsabilidade da tragédia seria atribuída à esquerda armada, pretexto para a interrupção do processo da redemocratização do país.

 


O atentado fracassou. Bomba foi detonada acidentalmente no carro dos terroristas: o sargento Guilherme Pereira do Rosário, que morreu na hora, ferindo o capitão Wilson Luiz Machado. A outra bomba, desarmada a tempo, certamente faria vítimas entre os jovens e artistas presentes no Riocentro. 

 

Capa do disco de Victor Biglione e Renata Puntel lembra o psicodelismo dos anos 1960/1970

Music Magic/reprodução
 

 

“FRUGAL & PSICODÉLICA”


• De Victor Biglione, Renata Puntel e Jorge Pescara
• Music Magic
• 10 faixas
• Disponível nas plataformas digitais

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