LITERATURA

Leia o conto "Uma rápida visita", do cineasta André Novais Oliveira

Em texto inédito, o diretor mineiro exercita na literatura as características de seu cinema: observação aguda, economia de meios e algo a dizer

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André Novais Oliveira*

Especial para o Estado de Minas

Aqueles dias de sol e muita preguiça. Um céu azul bonito, que Belo Horizonte nos brinda vez ou outra. Aquelas maritacas em grupo passando e lembrando sua saudade daquele sítio em Esmeraldas, que foi no aniversário de uma amiga de uma amiga.


Ele morou até os 20 anos com a família em uma casa em Contagem, Minas Gerais. Depois disso pulou de galho em galho em várias regiões de BH. Hoje, na Zona Leste, junto com sua companheira, ele se equilibra para pagar as contas, num trabalho que paga minguado, sem perspectiva de sair do aluguel, mas sonhando com uma casa com quintal parecida com essa que morou por metade dos anos de sua vida.


A missão do dia era ir de metrô até a estação Eldorado, fazer baldeação e chegar no Bairro Amazonas. Colocou crédito no BHTrans e passou a unitária na catraca. No momento que viu as pessoas descendo as escadas do mesmo lado que ele ia subir, pensou em correr, mas entendeu que tinha realmente perdido o trem.


Conferiu no bolso o fone de ouvido que só funcionava de um lado. Esse seria seu passatempo até outro trem surgir. Escolheu um disco de um rapper que ainda não conhecia.


Foi sugestão do seu irmão, que sempre lhe “aplicava” coisas novas. Era dia útil, então não demorou para que outro trem chegasse. Já no vagão em movimento brincava de contar os postes de estação a estação e cochilou por isso. Antes de cair no sono lembrou da sua infância, quando andava de metrô com a mãe. Quando criança, além dos postes, vibrava toda vez que via esses calangos de muro. Olhava para mãe, contente, e ela retribuía com aquele sorriso singelo.


Mas ali naquele dia as estações passavam rápido e quanto mais chegava perto da parada final, mais o vagão ficava vazio. Foi acordado já em Contagem. Suando e se recompondo e agradecendo a mulher que o cutucou.


Era tanto tempo que não pegava o ônibus no Eldorado que ficou desencorajado, sabendo que o único busão possível sempre saía cheio. Resolveu ir na lanchonete e comer um salgado. Na verdade, dois, e um refresco amarelo, que não sabia do que era, mas nem ligava para isso.


Olhou para o molho de pimenta na bancada e os vários mosquitos e abelhas que rondavam o lixo. Aquele molho apimentado guardava uma crosta avermelhada perto da tampa da garrafa, que na verdade era uma Fanta “pitchulinha” 200 ml. Resolveu não colocar o molho, não por nojo, mas sim, por pura preguiça.


Estava quente demais. Também por preguiça decidiu não entrar no coro de reclamações de pessoas que falavam da demora dos ônibus. Recolocou o fone. Era interessante o podcast que começou a ouvir até a casa do seu pai.


De pé no ônibus observava todas as mudanças nos bairros daquele itinerário. Lojas grandes e de marcas famosas foram chegando aos poucos naquele lugar, que se transformava bem rapidamente. No piscar de olhos uma lanchonete fechava e dava lugar a uma loja de roupas, banco ou supermercado. Lojas antigas eram poucas, e com isso a sua relação com a região dava uma sensação de novidade, para o bem e pro mal. Mas as vivências não costumam se apagar por completo, nunca.


Ao chegar em sua antiga casa, brincou um pouco com os seus antigos cachorros, que deixou de herança para o pai para seguir a vida. O dinheiro que guardou para voltar de Uber era para colocar uma tralha de coisas no porta mala. Coisas essas que ficaram para trás, mas que permaneceram em seu pensamento. Foram esquecidas na mudança, ou por falta de tempo, espaço ou por que, por dentro, ele queria esquecer. Objetos cheios de lembranças, que gritavam passado. Objetos de outras épocas em que não era massacrado pelo turbilhão adulto que sua vida aos poucos se tornou.


As coisas da cozinha já estavam separadas, dentro de uma ecobag, a mesma que comprou para colocar um “fardinho” de latão para a última festa daquela casa. E que festão. Nunca imaginava que seria a última, até então. Coisa de cinco ou seis anos. Tempo pra caramba pra uma família que sabia comemorar seus feitos e datas especiais. Ele lembrou da vez que saiu do hospital por ter tirado o apêndice, isso ainda novo, com, talvez, nove, dez anos de idade. Sua mãe deixou ele chamar alguns amigos pra comemorar sua volta.


E no fim das contas toda a rua compareceu, para aquilo que seria uma simples festinha. Ele não tinha mais muito papo com o pai, apesar de vez ou outra engrenar em conversas aleatórias. Principalmente sobre a vizinhança: “Lembra do filho do Vilmar? Da rua de baixo? Um magrinho de óculos. Que eles chamavam ele de Roxo. Então. Ele tá internado, tem uma semana. Pneumonia!”.


Após noticiar o caso, o pai faz questão de descer a rampa da garagem e ajudá-lo a levar as coisas para o carro de aplicativo que já dobrava a esquina. Talvez sua experiência no tetris o ajudou a ajeitar as tralhas naquele porta-malas pequeno.


Se despediu com um abraço. Não muito longo, pois seu pai evitava essas coisas sentimentais. Limpou a testa de tanto suor, entrou no carro e se foi.

Era sempre uma visita rápida, mas com o tempo suficiente para saber que ele não mais pertencia àquele lugar.


*André Novais Oliveira é cineasta. Diretor de “O dia que te conheci”, “Temporada”, “Ela volta na quinta”, entre outros. É sócio na produtora mineira Filmes de Plástico e também escreve contos.

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