Decadência de Lorenz Hart é retratada em filme teatral
"Blue Moon", de Richard Linklater, reflete sobre afeto e amizade ao mostrar a derrocada da carreira do compositor que dominou os musicais da Broadway
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Siga noBerlim, Alemanha – Sim, "Blue Moon" é a canção. Uma das muitas escritas por Lorenz Hart em parceria com Richard Rodgers, dupla que dominou os musicais da Broadway na primeira metade do século 20.
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Como "My funny valentine". Ainda que dependa de alguma familiaridade com a cultura americana, "Blue Moon", o filme, é um exercício de reconhecer músicas, livros, falas, versos e fatos em meio a uma reflexão sobre afeto, amizade e decadência.
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Apresentado ontem (18/2) na mostra competitiva do Festival de Berlim, o novo filme de Richard Linklater é também quase uma peça de teatro: um ator sempre em cena, Ethan Hawke, em tempo real, uma única noite, 31 de março de 1943, em um único lugar, o Sardi's em Nova York. Até a caracterização de Hawke como Hart é teatral, exagerada, já que o compositor era calvo e baixinho, tudo que o ator não é.
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Essa noite em particular está nos anais da Broadway. Foi a da estreia de "Oklahoma", musical em que Rodgers trocou Hart por outro letrista, Oscar Hammerstein, porque não conseguia mais lidar com as bebedeiras e a depressão de seu antigo colega.
É a noite em que Hart foge antes do fim do espetáculo para chegar primeiro ao bar. Todos irão para lá depois, incluindo Elizabeth, sua protegida, interpretada por Margaret Qualley, a dona da imagem rejuvenescida de Demi Moore em "A substância".
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Hart está apaixonado por Elizabeth e mostra os presentes que comprou para ela ao barman, feito por Bobby Cannavale. A conversa vai de uma reflexão sobre a capacidade de amar tanto homens como mulheres a um debate sobre o melhor momento do clássico do cinema "Casablanca".
Hart fala sem parar, e o piano do bar tocado por um soldado, já que a história se passa no meio da Segunda Guerra, dá o fundo musical que vem em socorro do espectador para elucidar inúmeras referências que o letrista solta.
Humor ferino
Hart destrói o musical de Rodgers e Hammerstein, outra dupla histórica do teatro americano, mas prevê que ele irá ganhar o Pulitzer porque é o que as plateias querem ver. "Oklahoma" de fato ganhou um Pulitzer anos depois, mas é provável que o vaticínio de Hart seja uma das tantas liberdades que o filme adota para guiar seu retrato do escritor.
Uma das mais divertidas sai do diálogo do compositor com o escritor E.B.White, que ele reconhece sentado em um canto do bar. A descrição para por aqui para não antecipar a piada. É com esse humor ferino que Hart digere a própria decadência tão evidente.
Robert Kaplow, roteirista de "Blue Moon", escreveu o enredo do filme baseado em cartas escritas por Hart, que nessa mistura de fantasia e realidade se mostra inconformado com o fato de que as pessoas não queiram mais falar sobre "os sentimentos que interessam".
É justamente do que falam Linklater e Hawke, seu ator preferido, com quem fez "Boyhood" e a série "Antes do amanhecer", Urso de Prata em 1995, "Antes do anoitecer" e "Antes da meia-noite". Sempre um olhar sobre o efeito do tempo, melancólico no caso de Hart.
Longa de Bronstein
A falta de tempo também incomoda em "If I had legs I'd kick you" (“Se eu tivesse pernas, te chutaria”), um retrato incomum sobre a maternidade montado pela diretora Mary Bronstein.
Linda, interpretada pela australiana Rose Byrne, é uma mãe exasperada, com uma filha que tem uma doença complexa e demanda cuidados frequentes, um marido distante por causa de seu trabalho e um buraco que aparece do nada no teto da casa em que mora.
Bronstein escreveu o roteiro "trancada no banheiro, o único lugar em que podia ligar a luz", durante um período em que sua própria filha precisou de cuidados intensivos. A situação sufocante e de problemas se empilhando é transmitida por planos muito fechados no rosto de Byrne. Essa falta de espaço chega a incomodar o espectador, mas transmite de forma eficiente o estado em que a personagem se vê.
Linda vai para um motel com a filha, mas as coisas só pioram, inclusive na terapia, onde a procura de suporte vai se tornando hostilidade. Perceber-se cada vez mais como a única responsável pela sobrevivência da prole talvez seja o pior dos sentimentos maternos.
Com um resultado interessante, o filme de Bronstein reúne um elenco inusitado, que, além de Byrne, traz o apresentador Conan O'Brien, como o terapeuta neurastênico de Linda, e o rapper A$AP Rocky, em sua primeira interpretação cinematográfica. (José Henrique Mariante)