Filme "Maré alta" aborda a solidão existencial e a desconexão com o mundo
Com direção de Marco Calvani, o longa conta a história de rapaz gay que sai do interior paulista para encontrar o namorado americano nos Estados Unidos
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Siga noNa primeira cena de “Maré alta”, Marco Pigossi tira a roupa e fica totalmente nu. Caminha na direção do mar e se entrega à água cristalina de Cabo Cod, em Provincetown, nos Estados Unidos. É a imagem da solidão existencial e a desconexão total com o mundo, características desse longa-metragem de Marco Calvani, que teve estreia recente nos cinemas.
Pigossi e Calvani estão casados desde setembro do ano passado. O pedido foi feito no fim das gravações e, de certa forma, o filme reflete a vida de ambos. Em “Maré alta”, Pigossi é Lourenço, rapaz gay do interior paulista, que vai para os Estados Unidos com o visto de turista, mas decide ficar por lá, mesmo que em situação ilegal.
Criado por mãe evangélica e conservadora, ele esconde a sexualidade e o motivo da viagem. Aos familiares, conta que recebeu uma bolsa de Harvard para fazer mestrado em contabilidade, mas a verdade é que viajou para ficar com o namorado norte-americano Scott, que conheceu no Rio de Janeiro.
O espectador não conhece Scott. No início, o filme já deixa claro que Lourenço foi abandonado pelo namorado. É o primeiro revés do brasileiro em terra estrangeira. Suas dificuldades seguem na vida profissional por não conseguir emprego qualificado e no âmbito legal: ele está próximo de completar seis meses no país e, por lei, deve retornar ao Brasil.
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Lourenço, no entanto, não quer voltar. Longe da vista da mãe, ele consegue levar uma vida livre nos Estados Unidos, sendo quem realmente é. Frequenta bares e boates gays e fica com quem quer sem precisar dar satisfação a ninguém.
“O Lourenço é um personagem que passa por muitas camadas pessoais que eu passei também”, diz Pigossi, em entrevista ao EM. “É muito interessante, como ator, quando você consegue acessar lugares que são pessoais; lugares que você viveu e experimentou. A questão da imigração, de mudar para um país novo, de se conhecer numa outra língua, numa outra cultura, de se entender como um homem gay no mundo… todas essas questões eu também experimentei. Não na mesma medida que o Lourenço, mas também vivenciei”, afirma ele, que está morando em Los Angeles desde 2018.
Lourenço ainda tem de lidar com a incerteza da contaminação por HIV depois de transar sem camisinha com um desconhecido, e com a xenofobia de parte dos estadunidenses. Com tudo dando errado, a redenção parece ser Maurice (papel de James Bland), com quem o brasileiro ensaia um romance.
Filme de nicho
“Maré alta” tem final aberto. Mas, independente disso, não é a história contada no longa que capta a atenção do espectador, e sim a maneira como os dramas de Lourenço são apresentados. O diretor Marco Calvani parte de um filme de nicho – “Maré alta” concorre como Melhor Filme no GLAAD Awards, considerado o Oscar Queer, que anunciará os vencedores em 27 de março – para falar do todo, como se levasse ao pé da letra o conselho de Tolstói: “Fale de sua aldeia e estará falando do mundo”.
Em ano de segundo mandato de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos e com a política anti-imigração reforçada nesta segunda gestão, não é só o público LGBTQIA+ que se identifica com o protagonista. “Eu sou imigrante e gay. Acho que estava apenas respondendo ao que estava acontecendo ao meu redor”, diz Marco Calvani, que também assina o roteiro. Ele é italiano e, assim como Pigossi, deixou o país natal para viver em Los Angeles há alguns anos.
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Autodescoberta
O primeiro esboço de “Maré alta” foi feito em 2020, no auge da pandemia. “Estávamos no primeiro mandato de Trump. As coisas já estavam muito acaloradas. Eu estava confinado e pensando muito sobre diferentes questões, olhando muito pra dentro de mim – ‘O que significa ser um imigrante?’, ‘O que significa sair deste país agora?’ e ‘O que significa ser um homem gay?’. Foi uma jornada de autodescoberta e de cura da minha própria homofobia internalizada que carreguei por tanto tempo”, assume o diretor.
São as questões existenciais que perpassam a mente de Lourenço que o público acompanha no filme. Como se emulasse a Dostoiévski (para citar outro russo), Marco Calvani explora a psicologia humana de maneira profunda e complexa em Lourenço, com todos os seus conflitos morais, dilemas existenciais e camadas de emoções contraditórias. É a grande sacada do filme.
No fim, em última cena do filme, Marco Pigossi tira a roupa e fica totalmente nu. Caminha na direção do mar e novamente se entrega à água cristalina de Cabo Cod. No entanto, dessa vez, não é mais a imagem da solidão existencial e a desconexão total com o mundo. “É uma imagem que retrata uma espécie de renascimento batismal de Lourenço”, confidencia o diretor.
“MARÉ ALTA”
Direção de Marco Calvani, com Marco Pigossi, James Bland, Marisa Tomei e Sean Mahon (EUA, 2024, 101min, classificação 18 anos). Em cartaz no Una Cinema Belas Artes (Rua Gonçalves Dias, 1.581, Bairro de Lourdes), hoje (23) às 18h e 20h; terça-feira (25) às 20h; quarta-feira (26) às 20h.