“Sem chão” foi o documentário mais premiado de 2024, com 62 troféus. No último dia 2, ganhou o Oscar da categoria. O longa sobre a expulsão de palestinos de vilarejos na Cisjordânia levou dois prêmios no Festival de Berlim do ano passado, arrebatou láureas no Spirit e no Gotham Awards e na Mostra de Cinema em São Paulo. No índice online Rotten Tomatoes, ele tem 100% de aprovação do público.


Ainda assim, nenhum dos grandes estúdios, plataformas de streaming e distribuidoras dos Estados Unidos encarou o risco de lançar o documentário. Isso foi feito pelos próprios produtores em um punhado de cinemas ao redor do país, onde o filme teve sessões lotadas e foi ovacionado.

“Trabalho com isso há 25 anos, e nunca tinha visto um documentário indicado ao Oscar e vencedor de tantos prêmios não ser distribuído nos EUA”, diz João Worcman, diretor de aquisições da Synapse Distribution, que trouxe o filme ao Brasil, onde ele estreia nesta quinta-feira (13/3). “Por causa do tema sensível e do ambiente político, muita gente não quis se arriscar.”

Dirigido por um coletivo de diretores israelenses e palestinos, “Sem chão” retrata as operações das forças israelenses para demolir vilarejos palestinos em Masafer Yatta, no Sul da Cisjordânia, onde Israel pretende construir um centro de treinamento militar.

As imagens mostram soldados israelenses chegando com suas escavadeiras e demolindo as casas em que palestinos vivem há gerações. Os soldados destroem escolas, playgrounds e até um galinheiro. Despejam cimento dentro de um poço de água usada pelos palestinos. Queimam e confiscam carros, geradores e ferramentas dos palestinos.

Criança nos destroços de residência palestina destruída por Israel, cena do documentário 'Sem chão', vencedor do Oscar 2025

Synapse/divulgação

Enquanto os palestinos despejados esperam a chance de reconstruir, eles vivem em cavernas, em condições insalubres. Reconstroem à noite, na surdina, para que os israelenses não vejam. Como diz uma mulher a certa altura, “não temos outra terra”, ou seja, “no other land”, título do documentário em inglês.

O filme foca no palestino Basel Adra, que vive em Masafar Yatta desde que nasceu, e Yuval Abraham, um jornalista israelense, judeu, que chega em Masafar Yatta com a cinegrafista e diretora de fotografia israelense Rachel Szor.


Violência compartilhada

Adra registra a destruição e a violência das forças israelenses e compartilha os vídeos em redes sociais, além de promover manifestações pacíficas contra a demolição das casas. Abraham, que começa ali simplesmente como repórter, acaba se tornando ativista ao lado de Adra.


Os dois protagonizam e são codiretores do documentário, que tem na direção também o palestino Hamdan Ballal e a israelense Szor. O filme é coprodução palestino-norueguesa.

Adra não pode sair da Cisjordânia e não tem direito a voto. Apesar de ser formado em direito, o palestino diz que só consegue empregos na construção civil em Israel. O judeu Abraham tem emprego e liberdade para ir e vir.

O israelense Yuval Abraham (à direita) recebe o Oscar de Melhor Documentário, ladeado pelo palestino Basel Adra, pela israelense Rachel Szor e pelo árabe Hamdan Ballal. No discurso de agradecimento, equipe defendeu o fim do genocídio de palestinos praticado por Israel

Patrick T. Fallon/AFP

O documentário foi filmado entre 2019 e 2023. Incorpora imagens de arquivo da família de Adra. O filme foi finalizado antes dos ataques terroristas do Hamas a Israel, em 7 de outubro de 2023, que deixaram 1.200 mortos e 253 sequestrados. Desde então, mais de 48 mil palestinos morreram em ataques israelenses em Gaza.

Durante as filmagens, Adra teve sua casa invadida duas vezes, com computadores e celular apreendidos. Seu pai ficou preso por alguns meses, por causa das manifestações contra demolições.

“As forças israelenses nos privam de nossos direitos. Eles têm um poder técnico e militar muito grande, mas não deveriam se esquecer de que já foram fracos, também já sofreram. E não vão triunfar. Não vão tirar os palestinos de sua terra”, diz um dos retratados no filme.

“Sem chão” vem causando repercussões. O judeu Yuval Abraham foi acusado de “antissemitismo” após seu discurso de vitória no Festival de Berlim, condenando o “apartheid” imposto por Israel e pedindo cessar-fogo em Gaza.


Vidas judaicas em perigo

“Estar em solo alemão como filho de sobreviventes do Holocausto, pedir cessar-fogo – e então ser rotulado como antissemita – não é apenas ultrajante, mas também coloca literalmente vidas judaicas em perigo”, disse ele ao jornal inglês Guardian. Contou que sua família em Israel tinha deixado sua casa após “uma turba israelense de direita” procurá-lo.

Worcman, filho de pai judeu com vários parentes que passaram por campos de concentração, diz não temer as reações no Brasil. “Estou aqui para fazer com que filmes cheguem até as pessoas. Não é minha função censurar.”


“SEM CHÃO”


Palestina/Noruega, 2024, 95min. Direção de Yuval Abraham, Basel Adra, Hamdan Ballal e Rachel Szor. Estreia nesta quinta-feira (13/3), às 15h40, na sala 3 do UNA Cine Belas Artes.

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