Cine Gonçalves: um cinema que daria um filme
Projeto da artista plástica Flávia Sammarone, a sala, instalada em sua casa na cidade mineira de mesmo nome, leva a magia da sétima arte para o povo
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Especial para o EM
A artista plástica Flávia Sammarone tinha 40 anos, um filho de 2 anos e um vasto currículo em sua área de atuação quando chegou a Gonçalves, no extremo Sul de Minas Gerais, em 2015. Nascida e criada em São Paulo, ela se encantou com a pequena cidade, na Serra da Mantiqueira, atualmente, um município com 4.800 habitantes. Era o lugar tranquilo que buscava para viver, longe do caos da capital paulista. Há cerca de três anos, Flávia abriu o caminho para continuar fazendo da arte sua forma de resistência e ativismo. Vendeu seu apartamento em São Paulo e comprou uma casa na cidade, onde instalou o Cine Gonçalves, que exibe documentários e filmes nacionais raramente vistos nas salas convencionais.
Flávia venceu o edital 03/2023 da Secretaria de Cultura de Minas, que prevê apoio financeiro, via Lei Paulo Gustavo, a salas de cinema, cinemas de rua e itinerantes, para equipamentos e exibição de filmes brasileiros, dos quais 30% produzidos no estado. Inaugurado em agosto do ano passado, o Cine Gonçalves tem feito parcerias com escolas da cidade e comunidades vizinhas para levar os jovens da região ao cinema. Antes mesmo da inauguração oficial, em agosto do ano passado, ela já havia recebido grupos de estudantes e seus professores para sessões de filmes e palestras sobre o que viram, realizadas por cineastas e profissionais da área.
Para Flávia, trata-se, acima de tudo, de um projeto social. Nesse contexto, as escolas da região são seu principal alvo. Ela contabiliza a presença de mais de mil estudantes da cidade e região, além de seus professores. Flávia chama a atenção para um fruto espontâneo dessas visitas – um grupo de meninas na faixa dos 15 anos criou o Cineclube Tela do Pó Mágico, com o objetivo de se reunir mensalmente para ver um filme, escolhido por elas entre as opções oferecidas pelo Cine Gonçalves. Em parceria com a prefeitura, Flávia também promove sessões para pessoas com deficiência atendidas pelo Centro de Referência e Assistência Social (Cras) e pelo Projeto de Inclusão de Gonçalves (Pingo).
Flávia, formada com bacharelado e licenciatura no curso de Educação Artística da faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), desde 2000 realizou exposições no Brasil e exterior, oficinas e trabalhou junto a coletivos em festivais e eventos de arte contemporânea nas ruas de São Paulo. Em 2010, fez residência artística em Tours, na França, onde aprofundou sua experiência com performances, instalações, colagens, fotografia e vídeo. Enquanto isso, a vida na capital paulista se tornava inviável. “Eu tive experiências ruins, estava em crise, tinha medo de levar meu filho à pracinha, precisava de outro lugar pra viver”, recorda ela.

Coletividade
“Agora, minha proposta artística é o cinema”, explica Flávia. “Estou numa cidade pequena, mas sou urbana, quero o convívio, a conversa com as pessoas.” Em Gonçalves, ela conduz seu projeto na contramão dos grandes centros, de onde os cinemas de rua desaparecem. “Quero mostrar a importância da cultura do cinema de rua”, diz ela. “A força da coletividade, do cara a cara, do diálogo. O Cine Gonçalves é um ato de resistência, de ativismo. Quero provocar conversas, discussões, como acontece após as sessões. Quero levar isso para os jovens, para as escolas, quando o digital está devastando tudo e as empresas por trás dos streamings estão impondo a cultura norte-americana.”
O cinema está localizado na praça Monsenhor Dutra, bem no centro da área urbana da cidade, onde vivem cerca de 700 moradores, segundo cálculos da prefeitura. A sala, que tem excelente acústica e cumpre todos os requisitos adequados para sua finalidade, inclusive acessibilidade, tem apenas 25 lugares, não cobra ingressos e as reservas podem ser feitas por um número de WhatsApp. Além de estudantes, tem atraído moradores e turistas, que frequentam as sessões realizadas às quintas e sábados para mostras temáticas.
Entre os filmes exibidos até agora estão “Menino Maluquinho”, ficção de Helvécio Ratton; “Nada será como antes – Clube da Esquina”, documentário de Ana Rieper; “O ano em que meus pais saíram de férias”, ficção de Cao Hamburger; “Pasárgada”, ficção de Dira Paes; “Diário de uma busca”, documentário de Flávia Castro; “Samuel e a luz”, de Vinícius Girnys; “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho. São filmes que abordam a arte e a cultura brasileiras, ou lançam um olhar crítico sobre a história do país, vários deles premiados no Brasil e exterior.
Também foram realizadas mostras, como as dedicadas ao ator Amácio Mazzaropi, ao diretor Humberto Mauro, um dos pioneiros do cinema brasileiro, aos diretores Bruno Jorge e André Klotzel, e às Mulheres no Cinema, além de produções com temática indígena. Muitas raridades e preciosidades foram exibidas, como os documentários “A rainha negra”, de Mateus Cursino e J. Geraldo, e “Congada, a resiliência da fé”, de Luís Fernando Martins, documentários produzidos em Gonçalves e na vizinha Paraisópolis (MG), na mostra Semana da Consciência Negra.

Com o apoio de entusiastas
Flávia Sammarone divulga a programação do Cine Gonçalves pela rede social Instagram, onde o perfil oficial do cinema (@cinegoncalvesmg) tem mais de 1.500 seguidores. Nascido de uma iniciativa solitária, o Cine Gonçalves conta com apoiadores entusiastas, como o cineasta André Klotzel, diretor de “A marvada carne” e “Capitalismo selvagem”, entre outros filmes importantes do cinema brasileiro, e a jornalista e documentarista Luciana Burlamaqui, autora de “Entre a luz e a sombra”, um dos mais impactantes documentários exibidos na sala.
Flávia também já conquistou o apoio do Cineclube Araucárias, que promove o Festival de curtas de Campos do Jordão, cidade turística paulista a 55 quilômetros de Gonçalves. O festival já está em sua décima edição, e, recentemente, seus promotores, Paulo Gomes e Cervantes Souto Sobrinho, compareceram a duas sessões para apresentar uma seleção de curtas do evento – e conversar, claro, sobre cinema.
André Klotzel e Luciana Burlamaqui também conversaram com o público sobre seus trabalhos. Eles são moradores de Gonçalves, cidade que tem atraído pessoas que se cansam do caos urbano das grandes metrópoles. Cercada de montanhas e matas de araucárias, a cidade foi invadida, durante a pandemia de COVID-19, por profissionais que aqui se estabeleceram para trabalhar remotamente. Alguns se foram, mas muitos ficaram, transformando o perfil da cidade, que em menos de um quilômetro quadrado de área urbana agrega cafés, bistrôs e lojas de produtos artísticos mantidos por moradores recentes, enquanto nas áreas rurais proliferam as pousadas. Pelas ruas, são perceptíveis os sotaques exóticos, especialmente o paulistano, que se misturam ao acento típico dos nativos da região.
Os planos de Flávia Sammarone vão além. Ela trabalha para concretizar seu projeto de criar um Centro Cultural, na casa onde já funciona o cinema. A casa, de 176m², ainda está em reforma, supervisionada pela arquiteta Keila Costa, que encampou a ideia de Flávia e projetou os ambientes, incluindo a sala de cinema. A casa terá uma pequena livraria, um espaço expositivo de artes, que poderá ser usado para realização de oficinas e até residências artísticas, além do que ela chama de Gabinete de curiosidades.
Inspirado em antigos projetos que ela desenvolveu em São Paulo, o Gabinete pretende ser uma exposição de peças antigas e raras que remetam às origens do cinema, além de objetos que ela vai reunindo sem muito critério, mas que possam inspirar instalações ou reciclagens, com novos sentidos. A ideia do cinema surgiu no início do projeto do Centro Cultural, como solução para os ambientes inferiores da casa, gerados pelo declive da rua. Assim surgiu também o café Dulcissimi, administrado pela doceira Marília Fernandes. O café, que funciona independente do cinema, tem lanches e, é claro, pipoca.
Coincidências
A casa traz uma coincidência histórica. O mesmo terreno onde está construída abrigou o primeiro cinema da cidade, o Cine Violeta. O cinema funcionou de 1955 a 1957, num antigo armazém. Seu proprietário, o comerciante Antônio Gomes Pinto, resolveu mudar de ramo, derrubou paredes e instalou o cinema, que exibia filmes da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Era um sucesso de público, recorda o filho do empresário, Antônio Gomes Vieira, o Toninho Gomes, ex-motorista de caminhão e ex-comerciante, hoje aposentado. Os filmes de Mazzaropi atraíam a população da zona rural, que vinha para a cidade em busca de entretenimento, quando nem televisão existia. O antigo armazém foi demolido em 1972, e Toninho construiu a atual casa, onde viveu por 25 anos.
Na mesma época em que Mazzaropi fazia sucesso em Gonçalves, então distrito de Paraisópolis (a cidade só conquistou autonomia em 1963), o avô de Flávia, José Sammarone, administrava com outros sócios, no bairro do Ipiranga, em São Paulo, o Cine Sammarone, criado por seu pai, Américo, bisavô de Flávia. Muito antes de criar o cinema, Flávia já trazia no sangue a paixão do avô e do bisavô. O Cine Gonçalves foi só uma consequência natural. Enquanto aguarda a finalização da reforma da casa, Flávia planeja as próximas atrações do cinema. Estão previstos para abril os filmes “As cores e amores de Lore”, de Jorge Bodanzki, “O dia da posse”, de Allan Ribeiro, “A flor do buriti”, de João Salaviza e Renée Nader Messora, além de sessões infantis com “Turma da Mônica”, de Daniel Rezende, e “Arca de Noé”, de Sérgio Machado, e uma sessão de curtas feitos por mulheres indígenas.
Em maio, Flávia promove a inauguração do futuro Centro Cultural. Prevista para o dia 31, terá o lançamento da terceira edição da revista bilíngue inglês-português “Art Dialogues”, editada em Nova York pela arquiteta Anita Goes. Essa edição da revista tratará sobre design e uso de madeira e fibras naturais nas artes, e trará estudos sobre a obra dos artistas plásticos Marcelo Zizu, que vive em Gonçalves, e o inglês Dan Coopey, que exporão seus trabalhos. Anita, editora da revista, pensa em trocar Nova York por Gonçalves, e o lançamento será o primeiro passo.