“Não nascemos para ser o restaurante do ano. Nascemos para ser um clássico na cidade.” Henrique Gilberto e a equipe do Cozinha Tupis sabem muito bem aonde querem chegar. Por isso, criam pratos que se relacionam com a história do Mercado Novo, do Centro e de Belo Horizonte. No momento em que completam cinco anos, eles lançam um menu degustação, de sete tempos, que faz um passeio exatamente pela região central da cidade.


Junto com a Cervejaria Viela, o Cozinha Tupis inaugurou, em 2018, uma nova fase do Mercado Novo. Nesses cinco anos, eles viram o projeto de reocupação do espaço, como um todo, dar certo. Hoje o segundo e o terceiro andares concentram negócios que acreditam na economia (mais que local) microlocal. “Essa é a proposta mais verdadeira e mais impactante para quem visita o mercado. Faz com que as pessoas interajam com a região e com a nossa história.”


O chef nunca se distanciou da ideia de fazer o que chama de “cozinha de mercado”. De privilegiar ingredientes que encontra ali mesmo e servir pratos que têm a ver com todo o contexto do lugar. “Os clássicos só existem porque são fiéis aos seus princípios. Não existe clássico que muda de cardápio o tempo todo para fazer o que o vizinho está fazendo ou o que está bombando”, aponta. Quem, assim como ele, se manteve fiel a esse conceito ganhou mais notoriedade.


Ainda é cedo para falar que o Cozinha Tupis é um clássico, reconhece Henrique. Mas é o que eles buscam. Querem durar anos e décadas para que se tornem referência na cidade. “Acho que estamos na fase um, começando a encontrar uma maneira única de fazer a nossa comida, de ter autenticidade, uma assinatura própria. Nesse momento, estamos construindo uma linha de trabalho que começa a ter autoridade, e eu gosto disso. Vem muito da maturidade da nossa equipe.”

Brasa: tomates pelados e defumados, stracciatella, picles de tomate verde, vinagrete de semente de abóbora, aliche e pó de laranja

Bernardo Silva/Divulgação


Como explicar esse jeito único de cozinhar? É ter como referência (e inspiração) a história e a cultura alimentar de onde estão inseridos. Para isso, eles estudam o passado boêmio da cidade, buscando bares clássicos, que de alguma forma marcaram a nossa linha do tempo. O centro de pesquisas é liderado pelo designer Rafael Quick – sócio no Grupo Viela (do qual fazem parte o Cozinha Tupis, o bar Juramento 202 e a pizzaria Forno da Saudade) – e conta também com jornalista e historiador.


“Não adianta a gente querer contar a história de outro lugar. A joia que temos é o nosso pertencimento, a nossa região, as pessoas daqui. Essa é a única maneira de nos tornarmos únicos e memoráveis, saber elaborar a mágica de contar histórias. No fundo, é o que nós somos, contadores de histórias.”


Henrique sentencia: se a história não pode ser comprada, tem que ser estudada. Ou seja, para chegar ao ponto de se tornar um clássico, você tem que conhecer profundamente os clássicos. Esse conhecimento vai parar na cozinha e se alia ao desenvolvimento de técnicas – impulsionado pelo chef Pedro Cunha, que não para de buscar o novo. E tudo tem que se encaixar na estrutura de uma cozinha com apenas 36 metros quadrados.

Serviço em evolução


A proposta da cozinha não muda, mas o serviço, pelo contrário, teve que ir se adaptando a cada momento. Lá no início, quando o restaurante operava sozinho no segundo andar, havia pouquíssimos lugares para se sentar, e todos eram no balcão. Da cozinha, com um megafone, os cozinheiros também atendiam quem só queria pedir a comida e sair andando para conhecer o mercado.

Miúdo: Crocante de sementes, mousse de fígado de pato, chips de jiló, compota de jabuticaba e rabanete melancia

Bernardo Silva/Divulgação
 


Com a chegada de outros negócios, a estratégia mudou e foi preciso limitar o atendimento. Tanto que eles abriram um salão ao lado, integrado à Cervejaria Viela, para que pudessem atender mais pessoas, todas sentadas.


Hoje o serviço está do jeito que queriam, dinâmico e interativo, com uma marca própria, assim como já acontece na cozinha. Muito se deve à presença de Nico (o gerente argentino Nicolás Bollini), que está lá desde o primeiro dia. Com sorriso fácil, descontração e, claro, atenção a toda e qualquer movimentação, ele personifica o tipo de atendimento que se buscava e que fazia mais sentido em um ambiente como o mercado.


Agora era a hora de voltar cinco anos antes, quando o balcão era o rei do pedaço. “Com o crescimento do mercado e do nosso movimento, a magia do balcão foi se perdendo e não podia deixar isso acontecer, lá é onde você tem a melhor experiência do menu. Queríamos trazer de novo, não apenas o ato de comer no balcão, mas de assistir a nossa dinâmica de comunicação, que é muito viva e faz parte da energia vibrante e caótica que a cozinha tem. Faz parte do nosso show.”


Desde o início do projeto, eles queriam uma cozinha aberta. Pensaram milimetricamente onde estaria cada panela e se ajustaram ao microespaço. O sonho de ter uma cozinha de produção continua vivo – e está perto de se concretizar, mas faz parte da história testemunhar a vida real da equipe, com todo o trabalho à vista, desde porcionar peças de carne até lavar a louça.


A ideia do menu degustação partiu do desejo de devolver o protagonismo para o balcão. Os pratos em sequência são servidos exclusivamente naqueles 10 assentos. Ali existe olho no olho, diálogo, escuta, troca, curiosidade instigada, um mergulho na história.


O plano era antigo, mas levou um tempo para se concretizar. Henrique só deu o sinal verde para o lançamento quando sentiu que a equipe estava pronta para a experiência. “O bolo não sai do forno enquanto não estiver pronto.” Nesse processo, ele investiu em muito treinamento. Trabalhou a hospitalidade nos cozinheiros e a gastronomia nos atendentes.

Brilho nos olhos


Do lado de dentro do balcão, Henrique vibra com a possibilidade de se conectar com quem escolhe se sentar ali. De se aproximar de pessoas de vários mundos, mas se encontram na vontade de viver uma experiência diferente. É isso que faz com que ele continue a ter o mesmo brilho nos olhos do primeiro dia de portas abertas.

Todo prato criado pelo chef Henrique Gilberto envolve pesquisas anteriores sobre a cultura alimentar do Centro

Nani Rodrigues/Divulgação
 


“Atingimos um público que vem de toda parte do país e isso nos dá uma fagulha muito importante para o fogo continuar pegando. Essa troca é muito rica pra gente, o fato de conversarmos diretamente com as pessoas diferentes no balcão e contarmos a nossa história ajuda muito a nos motivar. Lidar com o mesmo público sempre é uma armadilha para o nosso setor.”


Nesses cinco anos, eles bateram o pé, mantiveram suas crenças, não deixaram de acreditar no que faziam. “Não somos aventureiros.” Claro que a proposta não agrada todo mundo. Para quem busca exclusividade, talvez não seja o lugar ideal. Mas, aos poucos, eles formaram um público muito fiel de BH e atraem cada vez mais turistas. “Acho que parte da mágica do nosso trabalho está em ir conquistando as pessoas boca a boca, literalmente.”


Sobre o futuro, Henrique diz: “A principal busca de qualquer restaurante deveria ser na consistência, entregar consistentemente qualidade. Para não falhar, a cozinha deve estar sempre em constante evolução, mas correndo alguns riscos, fazendo testes novos, arriscando-se com ingredientes novos.” O nosso desejo é que continuem a ser contadores de histórias.


Não temos tempo a perder


Imagina o desafio que é servir menu degustação em um restaurante sem paredes, que não tem luz baixa nem silêncio. Que está dentro de um mercado, por onde circulam pessoas o tempo inteiro, inclusive atrás de você, sentado no balcão, o que dificulta a atenção plena.


“Tivemos que deixar o menu dinâmico como o mercado é. Agradável o tempo todo, para a pessoa não perder o interesse na história, senão fica entediante. Acho que cozinheiro e comediante têm isso em comum, a questão do timing”, aponta o chef Henrique Gilberto.

Feira: creme de queijo de cabra, biscoito triturado, sorbet de cenoura com gengibre e laranja, beterraba fermentada, conserva de pepino e gel de limão

Bernardo Silva/Divulgação
 


O menu tem sete tempos, cada um homenageando um tipo de comida que se come nos bares do Centro de BH: conserva, brasa, fritura, miúdo, estufa, caldo e feira. Oportunidade de conhecer, numa sentada, a proposta do Cozinha Tupis. “Se estivesse na praia, falaria dos peixes. Mas essa é a nossa maneira de contar uma história única, característica da nossa cidade. De celebrar a cozinha de BH.”


Por uma questão de espaço na cozinha, nem todos os pratos são exclusivos do menu degustação, alguns já são conhecidos no a la carte. Mas a surpresa está garantida, já que a experiência é completamente diferente. De olho na montagem dos pratos, você vai tentando adivinhar o que vem na sequência. Os próprios cozinheiros apresentam os pratos, contando de onde vem a inspiração e quais ingredientes fazem parte da receita.


No tempo dedicado às frituras, dois clássicos do menu tradicional – tulipinha de frango lambuzada em molho apimentado e farelo de paçoquinha e tempura de milho com molho béarnaise, queijo e furikake – se juntam a uma novidade instigante: gema de ovo empanada com creme de cogumelos. “Foram muitos testes, usamos mais de 200 ovos para chegar ao efeito”, revela o chef, sem dar detalhes do processo. O que dá para explicar é que você morde a massa e encontra a gema escorrendo.


Não dava para deixar de fora a famosa dupla fígado com jiló, “que faz parte da cozinha corajosa de BH, de usar partes menos celebradas, como os miúdos”. Eles já serviam a mousse de fígado de pato, receita da tia de Henrique, com chips de jiló e compota de jabuticaba para comer com pão. No menu degustação, condensaram esses sabores em uma bocada. Os três elementos vão por cima de um crocante de sementes e ganham a companhia de fatias de rabanete melancia (que tem a polpa rosada).

Caldo de mocotó


Um dos pratos homenageia o icônico “Nonô – O Rei do Caldo de Mocotó”. “Tentamos fazer com muito carinho e muito cuidado, buscando técnicas para ter texturas diferentes no mesmo prato, que é 'só' um caldo de mocotó. Pé, osso, cartilagem (tendão), tutano e músculo (carne), todos os elementos são peças do boi muita vezes descartadas.”

Caldo: parfait de mocotó, feijão-verde com nduja, fatia de músculo, caldo de boi e chips de tendão

Bernardo Silva/Divulgação
 


O “Caldo do Rei” tem parfait (com textura de pudim) de mocotó, uma fatia fina de músculo, feijão-verde com nduja, caldo de boi e chips de tendão. Assim como o homenageado é marcante na história da cidade, o prato tem um dos sabores mais marcantes (e intensos) do menu.


Com a sobremesa, chega-se ao ponto mais surpreendente da experiência. Como o Cozinha Tupis não serve doces, exatamente pela ideia do mercado de ter negócios específicos, eles decidiram criar uma receita baseada em frutas, legumes e verduras.


“Isso representa muito o que foi o nosso encontro com o Mercado Novo, que começou com a feira. Foi por causa da feira de madrugada que conheci o mercado, ainda na época do Belo Comidaria. Buscava lá o que não encontrava em outro lugar. E o Cozinha Tupis nasceu das cores que tem lá embaixo”, destaca.


Assim, eles chegaram ao creme de queijo de cabra com farofa de biscoito, sorbet de cenoura, gengibre e laranja, beterraba fermentada, conserva de pepino e gel de limão. Uma sobremesa que tem a beleza das cores e a surpresa dos sabores.


Mousse de fígado de pato com chips de jiló, compota de jabuticaba, rabanete melancia e crocante de sementes


Ingredientes
1kg de fígado de pato; 1 litro de leite; 660g de creme de leite; 5g de noz-moscada; 300g de vinho branco seco; 55g de gema; 2,5g de sal; 5g de pimenta-do-reino


Modo de fazer
Deixe o fígado de molho no leite por 24 horas. Retire o fígado e descarte o leite. Retire todas as veias do fígado e processe com os demais ingredientes. Asse em banho-maria coberto com papel-alumínio por 50 minutos. Resfrie e processe. Sirva a mousse de fígado de pato com compota de jabuticaba, chips de jiló e fatias de rabanete melancia em cima de crocante de sementes.

Serviço


Cozinha Tupis (@cozinhatupis)
Avenida Olegário Maciel, 742 – loja 2161, Centro
O menu degustação é servido às quartas e quintas, em dois horários (18h30 e 21h)
(31) 99803-3696

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