Menino nascido na capital, mas com alma do interior, forjada na riqueza da identidade do Vale do Jequitinhonha, fruto de raízes sedimentadas em Araçuaí. Criado livre, percorrendo a fazenda da família e de vizinhos, ao lado de primos e amigos, caçando rolinhas e codornas, depois devidamente recheadas com queijo e assadas.

Essas são as primeiras memórias afetivas do mundo da culinária vivenciadas por Miguel Murta de Almeida, hoje à frente do Via Deslandes - casa de carnes e cachaçaria, no Bairro Anchieta, mas figura ícone da gastronomia de Belo Horizonte desde a década de 1980, com o Via Cristina, no Santo Antônio, na Rua Cristina, bar e restaurante que até hoje é referência na história gastronômica da cidade.




A cozinha, destaca Miguel, está em seu DNA, a de fazenda, do fogão a lenha, do almoço comunitário ao lado dos "camaradas" (os peões da roça), com o prato bem servido com "camada de feijão, arroz, carne de sol e farinha". E isso lá pela década de 1970, quando confessa, "deixava as empregadas da fazenda enlouquecidas porque era o menino sempre enfiado na cozinha. Observava, fazia e aprendia com cozinheiras de mãos-cheias".

E olha que o destino lhe testou. Miguel deu algumas voltas antes de pegar uma reta no caminho para as panelas, fornos, fogões e frigideiras. Fez vestibular para matemática, largou o curso na metade, concluiu o de computação e virou um programador. Chegou a estagiar em uma empresa, com o peso de uma indicação de ninguém menos que Murilo Badaró (político e ministro), mas caiu em si e viu que queria lidar com uma tecnologia, digamos, off-line.

Torresmo na brasa com espetinho de mandioca

Arquivo Pessoal


Mas, até se encontrar, percorreu uma empreitada interessante, como o de criador de rã, em Igarapé, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), ao lado do amigo Darcilo. Negócio da moda na época, pelo qual se interessou e embarcou: "Foi uma aventura que se encerrou porque a água secou. O loteamento tomou conta da região, acabando com a mata nativa, o clima frio acabou adoecendo as rãs, enfim, fechamos. Foi um aprendizado".

O Via Cristina

 

A coleção de 909 rótulos de cachaça do Via Cristina; Miguel conta que se tivese cobrado R$ 1 para cada foto não precisaria mais trabalhar...

Arquivo Pessoal

Nada que desanimasse Miguel. Um lutador por natureza, como o povo do Jequitinhonha, que cai e se levanta em seguida, espana a poeira e enxerga lá na frente: "Em BH, decidi ao lado do meu cunhado, Lúcio, procurar um lugar para abrir um bar e restaurante." Foi quando o destino lhe sorriu e ele agarrou sem hesitar a oportunidade de abrir o Via Cristina, na Rua Cristina, Bairro Santo Antônio, em 5 de abril de 1991. Ele não imaginava, mas nascia ali sua identidade, sua assinatura no mundo da culinária.


"Começamos como barzinho, à noite, depois passamos para comida a quilo, chegamos a servir 300 refeições por dia, e fomos um dos pioneiros neste sistema. Em 2002/2003, com uma dica do Eduardo Maia, do Comida di Buteco, no auge, encerramos o comida a quilo. Focamos no bar. Em 2004, entramos na competição com o torresmo na brasa com espeto de mandioca, como se fosse um kafta. Foi sucesso absoluto. E seguimos assim nos anos seguintes. As pessoas esperavam uma hora na fila", conta Miguel.

Galeto na brasa com farofa de ovos e vinagrete

Gabriela Câmpara/Divulgação

Biblioteca da cachaça

Com o salto de qualidade cada vez maior, Miguel, que também tem a veia de empreendedor, enxergou na cachaça um futuro. De novo o Vale do Jequitinhonha lhe abrindo portas: "Passei a oferecer cachaça de Araçuaí, tinha a Dona de Ouro, a Vargem Grande e outras marcas. Fiz uma prateleira com 40 rótulos que foram sucesso. Daí subi para 120, 230, 400 e, por fim, tinha um paredão com 909 rótulos, com o acesso por uma escada, como se fosse uma biblioteca. E ainda criei a tábua de degustação com seis meia doses. O cenário com as cachaças fazia tanto sucesso que, se cobrasse R$ 1 por foto, não precisaria trabalhar mais".


E assim seguiu o sucesso do Via Cristina, sempre lotado, com clientes fiéis, de várias gerações. Miguel, tendo sempre o apoio da mãe, Dalila Murta, incentivadora costumaz, da mulher, Maria Izabel, e das filhas, Natália e Marcela, criadas dentro do bar e restaurante. Hoje, Natália estuda farmácia até conquistar o sonho de se tornar uma médica. Já Marcela, estudante de física, é quem acompanha Miguel. Aos 11 anos, o pai revela, já "trabalhava" no Via Cristina cuidando das crianças no parquinho : "Uma criança cuidando das outras crianças", lembra. E, agora, "ela é minha patroinha no Via Deslandes", já que a casa está no nome da filha, que é responsável pelas sobremesas: mousses de chocolate e maracujá.

Mas e o ato de cozinhar, como se sedimentou na vida de Miguel? Ele lembra que sempre gostou de estar no mato, aos 20 anos, acampar era o programa preferido e a comida era sua responsabilidade. "Fazia churrasco, feijoada e, quando lidei com a comida a quilo no início do Via Cristina, passei a ter um cardápio vasto. Mas sempre fui autodidata, vou encontrando o caminho".

E quem não se lembra? No cardápio do Via Cristina, carnes na brasa, picanha, maminha, coxa e peito de frango desossados saíam como nunca.

Sempre com o olhar atento, de uma conversa com o irmão, Flávio (são cinco irmãos, apenas Miguel no ramo da gastronomia), que lhe disse que gostava de saber quanto ia pagar ao entrar em um restaurante, Miguel criou no Via Cristina o churrasco completo: arroz, feijão tropeiro, batata frita, vinagrete, farofa e 500g de carne com preço fixo. Arrebatou ainda mais clientela. Como cereja do bolo, teve a ideia de colocar uma TV para passar os jogos de futebol. Dobradinha perfeito.

Com a visão de mercado, Miguel conta que percebeu, de cara, que o grande negócio era o restaurante e não tanto o bar, que tem dinâmica diferente. Assim, decidiu focar no restaurante e deu outro salto em sua trajetória: "O Via Cristina virou point de gente famosa, importante, frequentada por músicos, personalidades e políticos. Era comum, no primeiro mandato do presidente Lula, o gabinete da presidência ligar para reservar mesas para diversos políticos. Mas o interessante é que, quem causava com sua presença, era a Ângela Gutierrez, era um alvoroço quando estava no Cristina".

A crise

E assim o Via Cristina viveu a glória até 2008, quando a crise financeira no mundo provocou um desajuste no mundo de Miguel. Para movimentar, criar alternativas, ele encarou uma reforma do espaço em 2010, com financiamento bancário, e uma obra grande, construindo açougue, depósito e parque onde a filha Marcela "trabalhava": "Uma obra orçada em R$ 250 mil, que subiu para R$ 400 mil e finalizou em R$ 800 mil. Endividei, veio a criminalização da Lei Seca e tudo se complicou. Em meados de 2013/2014, ficou mais difícil com a crise financeira no Brasil. Chegamos a ter 240 cadeiras e 26 empregados. O movimento do bar despencou de terça a sexta-feira e, neste ramo, temos de vender todo dia, porque o custo é alto. E em outubro de 2017, fechamos, mesmo com as mesas cheias, com a clientela fiel e tradicional, mas a conta não fechava".


Ramo dos defumados

Sem o Via Cristina, Miguel foi procurar outro rumo. Sem tempo para lamentações. Foi quando retornou para o sítio em Igarapé, do criação de rãs, a ranicultura: "Em Igarapé, acabei participando do Igarapé Sabor, um festa muito bacana que ocorre em julho (festival que coloca em destaque as mestras da culinária da cidade), com uma receita de torresmo no rolo. Neste momento, vi uma loja para vender a 500 metros do sítio, contratei um açougueiro e decidi abrir uma fábrica de defumados, joelho, costela, linguiça. Fundei o The Pig em 2018".

Super via de picanha, prato que acompanha 400g de carne, fritas, panqueca de salada, farofa e vinagrete

Gabriela Câmpara/Divulgação.


Com as rédeas da sua trajetória nas mãos, em 2019, Miguel encontrou o amigo Roberto Abdala, o  Beto, em BH, que tinha um bar na Francisco Deslandes: "Tinha jurado que nunca mais ia mexer com restaurante. Mas me ofereci para fazer a linguiça do The Pig em um sábado e domingo e voltar para Igarapé. No fim de semana, não conseguimos fechar a casa e, assim, nos tornamos sócios. E a pegada passou a ser defumados, salame italiano, joelho defumado, linguiças, copa-lombo e seguimos bem a toada até que veio a pandemia. Não chegamos a fechar, trabalhamos com venda on-line, delivery, mas foi complicado, como para todos".


A história continua

Miguel, agora no Via Deslandes, onde volta a colecionar memórias e histórias que vão para os livros de histórias da gastonomia em Belo Horizonte

Arquivo Pessoal

Em julho de 2022, Beto deixou a sociedade. Em novembro, Miguel em uma viagem inesperada, sem programar, a mulher passava por uma crise de rins, viu que seus defumados não estavam sendo preparados como exigia e queria. Demitiu o funcionário e percebeu que "se continuasse com um pé em cada canoa, iria afundar. E ele conta que o negócio do defumado era bem complicado, obrigatoriedade de certificação, selos, enfim, encerrou o negócio: "Vi que o bar era mais consistente e acabei com o The Pig".


Assim, Miguel foi focar em outra empreitada, a que domina como poucos. Entre o fim de 2022 e o início de 2023, nascia o Via Deslandes, na Rua Francisco Deslandes, no Bairro Anchieta: "Mergulhei na marcenaria, gosto muito, ter um alicate e uma faca nas mãos é minha rotina, também faço serviço de pedreiro, pintor, toda hora tem um fritadeira que estoura e tem de resolver, enfim, sou um faz tudo. E decidi fazer a placa oval vermelha, com o nome Via Deslandes (em referência ao Via Cristina). Ocorreu algo inacreditável. Foi colocar a placa e as pessoas passarem, entrarem e dizerem 'o Via Cristina' voltou, reabriu. Hoje, um ano e meio depois, vendemos quatro vezes mais. Satisfação incrível. Depois de décadas, achei que a história do Via Cristina tinha se perdido e, não, ela está viva e na memória de muitos. Tem criança que ia ao Cristina dentro da barriga da mãe e, hoje, frequenta Via Deslandes para degustar uma cachaça".

No cardápio do Via Deslandes, a presença de alguns pratos clássicos do Via Cristina: o churrasco completo, a carne de sol, o torresmo, feijoada, coração de leão, picanha e, claro, o "rauzito". Lembra dele? O pastel de massa de mandioca e recheio de carne de sol. "Em mais um toque do Eduardo Maia, criei o 'rauzito' para homenagear a culinária mineira mais tradicional. Quis celebrar o Raul Seixas e fui inspirado pela música Metaformose Ambulante".


A cachaça, claro, também está presente, não os 909 rótulos do Via Cristina. Até porque, da instalação espetacular do Cristina, revela Miguel, o giro ficava entre 130, 150 marcas: "No Via Deslandes temos 130 rótulos, da Havana, que custa R$ 120 a dose, a uma marca que a dose sai por R$ 11. E a tábua de degustação está no cardápio".


Miguel não cabe em si de felicidade, de realização profissional e pessoal. Perceber sua história vencedora, de superação, mas sem floreios, com a maturidade lhe mostrando que vitórias e obstáculos estão pelo caminho: "A realização é grande. Estou em um momento de reencontros e de criar novas lembranças".

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