Bacalhau. Ele pode fazer parte do cardápio o ano todo. Mas é em tempos de Páscoa que esse ingrediente assume papel principal no Brasil, não só pelo sabor e versatilidade, mas por carregar uma história de rituais e celebrações. Seu consumo teria começado com os vikings, chegando aos desbravadores portugueses das grandes navegações até ser incorporado ao rito cristão, diante da proibição da ingestão de carne vermelha às sextas-feiras, durante o período da Quaresma.


Além da clássica bacalhoada, faz sucesso por aqui o bolinho de bacalhau, assim como as mais diferentes criações que cada restaurante ou família tem para chamar de sua. Em 2024, destaque para a receita inovadora da chef Denyse Poema, do restaurante Do Peixe, na Região da Pampulha, que criou o bacalhau de pirarucu, estrela dos rios amazônicos: “A inspiração vem do pirarucu de casaca, receita original do Pará, que submete o peixe a um processo de salga para transformá-lo em bacalhau”, conta.

"Queremos valorizar um ingrediente nacional de alta qualidade", explica a chef Denyse Poema, do restaurante Do Peixe, sobre a ideia do bacalhau de pirarucu

Kellen Pavão/Divulgação


Denyse explica que, depois de passar pelo processo de salga, o peixe de cor avermelhada é assado em postas e servido com arroz de castanhas brasileiras, musseline de batatas e leite de coco, ovos cozidos, azeitonas pretas, tomate confitado, pimentão e ramas de tomilho. “O diferencial da receita é o leite de coco, ingrediente que também trouxemos do pirarucu de casaca: o tom adocicado contrasta com o salgado do bacalhau. E usamos o leite de coco que produzimos no restaurante, nada industrializado.”


O prato, batizado de “Bacalhau Nacional”, fica disponível no menu da casa até o domingo de Páscoa (31/3). Agora, vale lembrar que o arroz de bacalhau e o bolinho de bacalhau estão no cardápio fixo do restaurante.


Mas de onde veio a ideia do bacalhau de pirarucu? Denyse revela que o restaurante, desde janeiro, está mudando de conceito e que Jairo Moser Jr, um dos proprietários, viaja muito pelo Brasil e sempre volta com inspirações.


“A proposta é trazer mais brasilidade. O intuito é apresentar o Brasil de várias regiões, tanto é que, como exemplo, temos a moqueca mineira e a baiana. Enfim, o pirarucu, para muitos, é chamado de ‘bacalhau brasileiro’. Queremos valorizar um ingrediente nacional de alta qualidade.”

 




A chef explica que o sabor do prato é um pouco diferente: “Tem a referência do bacalhau, mas tem outra brincadeira na boca. O salgado está lá, mas há o dulçor do purê, o tomate aromático confitado com ervas e, seguramente, o brilho do prato está na junção de tudo.”


Foi um desafio criar o prato, montado em camadas, que lembra uma das inúmeras releituras de bacalhoada que existem por aí. “É uma proposta nova, as pessoas não estão acostumadas. Pesquisei muito, foi até difícil achar referências, mas não precisei fazer tantos testes, além do controle da salga. Asseguro que o prato vai oferecer uma nova experiência ao paladar, porque ele é único”, destaca.


A chef acrescenta que o prato com pirarucu é para “sair da zona de conforto”. “O mineiro – sou uma – é agarrado à tradição, ao clássico, come a vida toda uma receita. Mas o pirarucu é legal, adapta bem à salga, é firme de um jeito bom, com textura e, bem assado, solta pétalas, o que é lindo”, aponta.

 

Cores de Nápoles


O chef italiano Simone Biondi, do Est! Est!! Est!!!, natural de San Benedetto del Tronto, na região de Marcas, dedica-se essencialmente ao DNA da culinária do seu país. O cardápio do restaurante conquista os clientes com o bacalhau à napolitana: “O bacalhau à napolitana é um prato de peixe saboroso e colorido. É uma receita tradicional do Sul de Itália, que realça sabores e cheiros graças ao tomate, azeitonas, alcaparras e orégano”, descreve.

Bacalhau à napolitana do Est! Est!! Est!!!

Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press
 


Nem todos sabem, mas, como explica Simone, “na Itália também temos o bacalhau como prato na maioria das regiões, o que nos induz a imaginar a variedade de receitas, criações e sabores diferentes, dependendo de cada região”.


O chef diz que a escolha do bacalhau à napolitana para o cardápio Est! Est!! Est!!! foi “simplesmente por gosto e pela apresentação cheia de cores, como Nápoles e os napolitanos. Povo alegre e cheio de cultura e história. O prato representa a cidade e o povo napolitano ao mesmo tempo”.


Na cultura italiana, o cardápio da Quaresma, como data religiosa, é baseado em peixes, e não só o bacalhau. Comparando com o Brasil, particularmente Belo Horizonte, Simone observa que a bacalhoada e tantos outros pratos criados a partir desse peixe estão enraizados na cultura local.


“Qual mineiro não gosta ou quem não prepara um bacalhau? Moro em BH há 13 anos e vejo mais bacalhau aqui do que em outros lugares. A influência portuguesa, com certeza, é muito grande. Não é? O bacalhau é um pedido dos clientes ao longo do ano, independentemente das datas comemorativas”.

 

Clientes pediam


Há oito meses, o el MAI, de Carolina Caram e Rodrigo Paiva, serve um prato principal tendo o bacalhau como estrela. O bacalhau à lagareiro é criação do chef Felipe Rameh. Assim, ele chega para completar o cardápio da casa, que tem uma cozinha mar e terra, além do sushi bar.

Servido com bastante azeite, bacalhau à lagareiro completa menu terra e mar do el MAI

Victor Schwaner/Divulgação


“O bacalhau, da espécie Gadus morhua, é feito de forma tradicional, confitado em baixa temperatura com azeite extravirgem. Servimos com batata ao murro, azeitona portuguesa, farofa de pão para dar crocância, cebola tostada, ovo cozido com gema perfeita e brócolis. E, para finalizar, bastante azeite, uma característica desta receita”, revela Rodrigo.


Para o dono do el MAI, o bacalhau já faz parte do dia a dia do mineiro, tanto que a clientela pediu pelo ingrediente no cardápio. E foi atendida. “Esse prato tem saído bastante. O mineiro gosta do tradicional, tem relação próxima com o peixe trazido de Portugal. Além disso, ele é saboroso, bonito, tem um peixe em lombo, com posta alta, é um filé imponente, que se desfaz em lascas perfeitas. Nada de desfiado”, destaca.

 

No menu executivo


No Bar da Lora também tem bacalhoada. Pedro Fonseca, irmão e sócio de Eliza Fonseca, a Lora, na unidade da Savassi, destaca que poucos restaurantes na região ofereciam o prato. “Quando tinha, era no self-service, então decidimos trazer para nosso menu executivo. O mineiro adora bacalhoada, ainda mais com bons ingredientes, e todos os nossos são do Mercado Central”, enfatiza.

Bacalhoada está no almoço executivo do Bar da Lora às sextas e domingos

Leandro Couri/EM/D.A Press


A bacalhoada segue a receita tradicional: “Bacalhoada clássica, com batata, bacalhau, azeitona preta, ervas, salsa e ovo com gema mole. Sempre acompanhada de salada verde”, descreve.


Normalmente, a bacalhoada é servida no Bar da Lora aos domingos, mas, durante a Quaresma e na Semana Santa, ela aparece no cardápio também às sextas. “Depois, acredito que ao menos uma vez por mês ela vai estar no menu durante a semana também, tanto na Savassi como na Raul Soares”, revela.


De geração para geração


A tradição está na alma do mineiro. E não há traço maior dessa identidade do que a Cantina do Lucas, dentro do histórico edifício Arcângelo Maletta, no Centro de Belo Horizonte, desde 1962, e tombada como patrimônio cultural da capital mineira em 09 de dezembro de 1997. É referência cultural e gastronômica da cidade. Para quem fica com água na boca só de pensar nos tradicionais Filé Surprise, Filé Olympio e Tagliarini à Parisiense, além, é claro, do Peixe ao Comodoro, saiba que há três pratos com bacalhau no cardápio que deixam o paladar mais do que feliz.


Servido em postas, o Bacalhau Mares do Norte é levado ao forno, assado e regado com azeite. No prato, junta-se a batata corada, brócolis, cebola puxada no azeite, alho ou amêndoas crocantes ao gosto do cliente. Já as postas do Bacalhau à Espanhola são refogadas e servidas com batata cozida, ervilha, pimentões coloridos, azeitonas pretas e ovo cozido.

Tem cliente que vai à Cantina do Lucas só para comer o Bacalhau Mares do Norte, prato criado há 20 anos que faz sucesso até hoje

Kellen Pavão/Divulgação


Ainda tem o arroz ao forno com bacalhau desfiado, açafrão, azeitonas pretas, molho branco e parmesão por cima. Esse prato é levado ao forno para gratinar.


“São pratos que estão no nosso cardápio há 20 anos”, conta Antônio de Aguiar Mourão, gerente desde 1999 e porta-voz por dentro de cada centímetro da cantina. Segundo ele, quem criou as receitas foi Antonio Edmar Roque, fundador do restaurante, que morreu aos 67 anos, em 2017. “Ele adorava bacalhau e era um apaixonado por Portugal.”


O consumo de bacalhau aumenta na Cantina do Lucas durante a Semana Santa. Mas, na verdade, Mourão diz que os clientes comem os pratos com peixe salgado o ano todo. “O Mares do Norte é um clássico e há quem só peça ele. A escolha vai passando de geração para geração e as receitas seguem fazendo sucesso”, aponta o gerente.


Mourão revela o “segredo” para o restaurante servir os mesmos pratos com bacalhau há duas décadas. “Temos cozinheiros com 25, 20, 18 anos de casa e o segredo é servir comida de verdade, com ingredientes de qualidade, molhos preparados pela casa, nada de conservantes. Assim, a comida fica leve e saborosa. E o toque de carinho em cada preparo faz a diferença”, destaca.

 

História milenar


O pioneirismo no consumo do bacalhau é atribuído aos vikings, antiga civilização da região da Escandinávia cuja história é datada do século 9 ao 11. Depois chegou aos desbravadores portugueses das grandes navegações, por volta do século 15, garantindo uma alimentação saudável e nutritiva para as longas viagens marítimas. O bacalhau chegou ao Brasil com a vinda da corte portuguesa para o novo mundo, no início do século 19, e, desde então, tornou-se uma tradição preparar uma bacalhoada na Semana Santa. A primeira exportação de bacalhau para o território brasileiro data de 1843 e ele veio da Noruega, país que se tornou polo mundial de pesca e exportação do bacalhau. Foi em solo norueguês que o holandês Yapes Ypess fundou, no século 9, de acordo com registros, a primeira indústria de transformação do peixe.

 

Bacalhau de pirarucu com musseline de batata e leite de coco, tomates confitados, legumes refogados e arroz de castanhas brasileiras (chef Denyse Poema – Do Peixe Restaurante)

Bacalhau de pirarucu com musseline de batata e leite de coco, tomates confitados, legumes refogados e arroz de castanhas brasileiras do restaurante Do Peixe

Kellen Pavão/Divulgação


Ingredientes
500g de pirarucu fresco; 10 dentes de alho; ervas frescas (tomilho, alecrim e sálvia); azeite a gosto; 400g de batata-inglesa; 250ml de leite de coco; sal, pimenta-do-reino e noz-moscada a gosto; 500g de tomate cortados em quatro pedaços; 200g de cebola cortada em quatro pedaços; 1 cebola branca média; 2 pimentões (1 amarelo e 1 vermelho); 100g de alho (inteiro); 50g de açúcar; 40g de sal; ervas frescas (tomilho, alecrim, sálvia); Azeite, sal e pimenta-do-reino a gosto; 400g de arroz branco cozido; 15 g de castanha-do-pará moída; 15g de castanha de caju moída; 15g de castanha de baru moída; azeite e salsinha picada a gosto


Modo de fazer
Coloque o pirarucu descongelado em um tabuleiro com camadas alternadas de sal grosso. Mantenho-o nessa salmoura por 48 horas, descartando a água que o peixe vier a soltar. Depois de dois dias, lave bem o pirarucu e deixe-o por 24 horas pendurado em uma peneira ou em um escorredor de arroz, para assentar bem o sal. Para o processo de dessalga, são necessárias 72 horas. Coloque o peixe em uma vasilha e cubra-o com água, de modo que ele fique totalmente submerso. Mantenha-o na geladeira e troque a água a cada 24 horas. Depois de três dias, coloque o pirarucu em uma embalagem de plástico a vácuo junto a dois dentes de alho, ervas frescas e azeite, até cobrir tudo. Feche bem a embalagem – se possível, em uma máquina a vácuo – e cozinhe o peixe no forno por duas horas, a 100 graus. Por fim, grelhe/sele as postas de bacalhau em uma frigideira aquecida com azeite, até que fiquem bem douradas. Ao fim do processo, adicione 8 dentes de alho inteiros para intensificar o douramento. Cozinhe a batata e amasse-a bem. Depois, acrescente leite de coco, sal, pimenta e noz-moscada e cozinhe por aproximadamente cinco minutos. Reserve. Em uma travessa funda, misture os tomates, a cebola, o alho, o açúcar, o sal e as ervas frescas e cubra com o azeite. Coloque no forno a 130 graus por aproximadamente 1 hora. Reserve. Em uma frigideira, refogue a cebola, cortada em pétalas, e os pimentões, cortados em rodelas. Tempere com sal e pimenta. Reserve. Em uma frigideira quente, doure levemente o azeite e as castanhas. Acrescente o arroz já cozido e a salsinha. Misture bem. Reserve. Em um prato individual, coloque a musseline, pedaços de tomate confitado, cebola em pétalas, rodelas de pimentão e a posta de bacalhau de pirarucu. Finalize com ovo cozido, azeitonas pretas, ramos de tomilho e um fio de azeite. Sirva o arroz de castanhas à parte.

 

Serviço


Do Peixe
Rua Doutor Jefferson de Oliveira, 231, Santa Amélia
(31) 2552-4014
@dopeixerestaurante

Est! Est!! Est!!!
Avenida Getúlio Vargas 107, Funcionários
(31) 2526-5852
@estcucina

el MAI
Rua Professor Antônio Aleixo, 592, Lourdes
(31) 3879-9699
@elmaigastro

Bar da Lora Savassi
Rua Sergipe, 1414, Savassi
@bardalora

Cantina do Lucas
Avenida Augusto de Lima, 233 – lojas 18 e 19, Centro
(31) 3226-7153
@cantinadolucas

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