“Visitar Minas é voltar a um lugar que sempre me abraça e me inspira”. Com uma emoção que dá para sentir do lado de cá da linha – um misto de lembranças da avó Iracema e de comoção pela tragédia no seu estado, o Rio Grande do Sul, Roberta Sudbrack fala por telefone da alegria de se reconectar com as suas raízes mineiras. A chef gaúcha, que comanda o Sud, o Pássaro Verde, no Rio de Janeiro, desembarca em Belo Horizonte na próxima quarta-feira, dia 22, para um jantar a quatro mãos no Gero, restaurante do hotel Fasano.
Mineira de Manhumirim, na Zona da Mata, Iracema é sua grande referência de vida (dentro e fora da cozinha). “A vó salvou a minha vida, literalmente. Me ensinou a respirar, andar, viver e até cozinhar.” Roberta nasceu em Porto Alegre, foi criada pelos avós em Brasília e se aproximou da gastronomia no susto, depois da morte do avô. Para que pudessem ter renda, ela e a avó começaram a vender cachorro-quente em uma carrocinha no meio da rua. Anos depois, Roberta foi parar na cozinha do Palácio da Alvorada, onde trabalhou por sete anos como chef – a primeira mulher a ocupar esse cargo, diga-se de passagem.
“Parece um conto de fadas, mas, na verdade, foi uma vida muito dura, e a vó sempre muito corajosa. Ela me ensinou a não fugir de luta nenhuma, de encarar qualquer desafio e até os 96 anos estava ali comigo, firme. Me via chegando cansada e falava: se precisar de ajuda pode me chamar. Brinco que ela sempre teve mais energia que eu.”
A relação próxima com a avó acabou definindo o rumo da sua cozinha. Não só por aprender receitas, mas também por testemunhar um jeito de cozinhar com afeto. “Ela sempre foi uma pessoa muito cuidadosa e perfeccionista, servia pratos muito bem enfeitados e arrumados, e isso trouxe para a minha vida e para a minha cozinha. Além do respeito por todo ingrediente que usava, de fazer cada corte com muito carinho, de estar sempre imersa no que estava fazendo, muito entregue”, relembra.
Roberta nunca perdeu isso de vista. Por um tempo, já no Rio de Janeiro, esteve na vanguarda, encabeçando um movimento de modernizar a gastronomia brasileira. Seu extinto restaurante, Roberta Sudbrack, ousou ser o primeiro do Brasil a servir exclusivamente menu degustação e mudar os pratos todos os dias. Era algo muito inovador para a época, estamos falando de 2005.
“Acho muito importante dizer que escrevemos novas páginas da gastronomia brasileira, e não que fizemos uma nova gastronomia brasileira, isso seria de uma presunção absurda. A gastronomia brasileira tem uma riqueza enorme, que vem lá de trás. O que fizemos foi olhar de forma diferente para a nossa gastronomia e propor uma forma diferente de apresentá-la”, pontua.
Chegou um momento em que esse modelo deixou de fazer sentido e a chef entendeu que era a hora de se reaproximar do simples, do que aprendeu com a avó. Como ela descreve, era aquela sensação de comer muito melado e se lambuzar.
“A gente se lambuzou e talvez tenha exagerado na pirotecnia, no serviço, na maneira de nos colocarmos nessa gastronomia moderna. Quando fiz minha reflexão, meu sentimento era de que o invólucro estava demais, mas o conteúdo era aquilo mesmo, de estar conectada com o meu produtor e de trabalhar com o que ele tem a oferecer. Rompi com a forma, mas não com o conteúdo, com a minha história, minhas vivências, a paixão pela cultura brasileira.”
Simples é luxo
Isso levou Roberta a dar uma virada (incompreensível para muitos) na carreira. Ela tinha acabado de ganhar uma estrela Michelin e prêmio de melhor chef mulher da América Latina, o restaurante estava entre os 50 melhores do mundo pela lista do 50 Best, quando decidiu encerrar as atividades do conceituado Roberta Sudbrack, em 2017. Fechou uma porta para abrir outra, um ano depois. Mais leve, mais à vontade, mais feliz. Segura de que queria fazer o que acreditava (e continua a acreditar). “Tenho certeza absoluta de que luxo é simplicidade e simplicidade é algo muito complexo. Ser simples, acolher, agradar, mimar não é fácil.”
A casa onde funciona o Sud, o pássaro verde não tem placa na porta. Por isso, Roberta já avisa nas redes sociais: “procure a casinha com mais cara de casa de vó da rua!”. A chef pensou em um restaurante onde gostaria de ir como cliente. Descontraído, descompromissado, acolhedor, para se sentir à vontade. O lema é liberdade. “Fico feliz de ver gente que chega de chinelo, acho lindo o gesto do cliente pegar a garrafa de vinho e se servir. A essência está nos pratos, nos ingredientes que vou buscar, nessa minha insistência de não me desconectar da natureza, do produtor, do produto. Isso aprendi com a vó. Quando ela ia fazer molho de tomate, fazia questão de comprar tomate fresco.”
Desde então, a gaúcha assumiu que seu interesse é pela cozinha do dia a dia, pelos ingredientes que ninguém quer usar, pelo gestual que encanta. Diz que foi chef e hoje quer aprender a ser cozinheira de forno e fogão. E isso, claro, se conecta muito com Minas. “A cada vez que vou a Minas, São Bartolomeu, a cidade dos doces, e vejo uma pessoa mexendo um tacho daquele tamanho com goiaba e açúcar e fazendo aquilo de maneira totalmente natural e empírica, chegando ao resultado perfeito com a maior naturalidade, vejo que temos que aprender com a cultura do dia a dia, é infinita. Tenho uma paixão enorme por isso.”
Sobre os ingredientes, ela soube se aproveitar bem daquilo que as pessoas se recusavam a comer em restaurante e levou para a mesa pratos icônicos, como camarão com chuchu (o título de um dos seus livros é “Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu”) e o famoso caviar de quiabo (um jeito novo de se referir às sementes do quiabo). “Tenho uma dívida de vida com o quiabo. Por causa desse meu prato, viajei o mundo inteiro para falar de Brasil, mostrar algo tão simples e incrível que é da nossa cultura.”
Ela quer emocionar
Não importa se isso rende prêmios e presença em listas internacionais. “Saber que uma pessoa ficou emocionada com a minha comida vale muito mais do que tudo isso.” Segundo Roberta, a volta do Guia Michelin ao Brasil, que vai anunciar os restaurantes estrelados das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo na próxima segunda, dia 20, não interfere em nada no seu trabalho.
“Ganhamos muitos prêmios, todos que imaginar, mas nunca me pautei por essas coisas. Aconteceu porque sempre trabalhamos com paixão, seriedade, envolvimento. Sempre falava isso para a equipe: vamos comemorar, depois é vida normal. Uma vez, quando ganhamos um prêmio, cheguei bem cedo ao restaurante e vi o funcionário da limpeza esfregando o vidro da cozinha com o jornal onde estava estampada a minha cara. Não tem nada melhor que ilustre o que estou dizendo: ontem comemoramos, hoje o seu José está limpando vidro com a minha cara no jornal”, diverte-se.
Na pandemia, Roberta começou a escrever cartas para a avó e publicar no Instagram. Era uma maneira de desabafar, em um momento difícil, de estar mais próxima dela. Os textos ganharam tanta repercussão que viraram livro, “Um tal cheiro de ambrosia – Conversas com Vó Iracema”.
Nessa mesma época, a chef acordou e ouviu a avó dizendo: faz ambrosia. “Fui para a cozinha e comecei a fazer. Foi muito lindo, vendemos uma quantidade absurda, mandamos para Canadá, Portugal, Estados Unidos, França, ultrapassamos as fronteiras do Brasil. A ambrosia virou símbolo da nossa resistência, precisávamos pagar as contas e não demitir as pessoas, e de solidariedade.” Ai dela se não continuar a fazer ambrosia. Quando não tem, os clientes reclamam.
Todos somos gaúchos
Falando em solidariedade, a gaúcha tem feito de tudo para ajudar seus conterrâneos diante das consequências devastadoras da chuva.
“Estou extremamente comovida e abalada. Tenho família lá, todos estão bem, muitos amigos e muitos pequenos produtores que trabalham com vinho, que fazem queijo, que estão envolvidos com esse nosso artesanato culinário, que amo tanto. Nesses dias, estou atordoada de tanta coisa para ajudar, mas vou continuar desse jeito, não tem outro caminho. Vai ser uma reconstrução muito demorada e vamos precisar da solidariedade do Brasil inteiro. Todos nós temos que ser gaúchos por um bom tempo para ajudar esse estado que se perdeu totalmente, que está vivendo uma tragédia atrás da outra.”
Já está confirmada a participação de Roberta em pelo menos três jantares em São Paulo para arrecadar fundos para as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. Amanhã será no Dalva e Dito, com 12 cozinheiros de diferentes estados e menu degustação de sete tempos. No dia 28, 10 chefs servirão no Tuju um menu de 10 etapas. No dia 17 de junho, 12 mulheres comandam a cozinha do Maní em noite solidária em prol dos gaúchos.
Natureza no comando
Diante de uma das maiores tragédias climáticas do Brasil, a chef aproveita para fazer um alerta. “Nós como cozinheiros temos uma imensa responsabilidade nisso tudo e cada um tem que fazer a sua parte. Desde o momento em que escolhemos com quem e com quais ingredientes vamos trabalhar. Temos que escutar a natureza, e não forçar barra. Quando abri meu primeiro restaurante, muita gente achava maluco mudar o menu todos os dias, mas hoje vejo que não tem outra maneira. Tem uma frase que amo falar e que tenho orgulho de ver chefs do mundo todo falando: meu mise en place não começa na cozinha, começa no quintal do meu produtor. Nunca ligo para o pescador dizendo que quero pargo ou cherne, sempre pergunto o que ele tem para oferecer naquele dia.”
Assumidamente apaixonada pela cozinha mineira, Roberta entende que ela é a que mais representa a cozinha brasileira. “A cozinha mineira é para mim a síntese de nossa identidade tão diversa e tão rica e acaba representando um pouco de tudo que temos no país. Isso tem a ver com cozimentos, com fogão a lenha, panela de ferro, os tipos de ingredientes. As outras cozinhas são riquíssimas e lindíssimas, mas muito particulares. A de Minas consegue abraçar todas”, opina a chef, que emenda com um trecho da música cantada por Milton Nascimento: “Sou do mundo, Sou Minas Gerais”.
Quando visita o nosso estado, ela sempre guarda um tempo para comer um bom frango com quiabo, tomar um cafezinho coado com broa de milho e colher uma muda nova de ora-pro-nóbis. Pode vir, Roberta, isso não vai faltar.
Noite de festa
O jantar em Belo Horizonte será um momento de celebrar a boa gastronomia, o prazer à mesa, o respeito aos ingredientes e Minas Gerais. Amiga de longa data de Gero Fasano, que comanda o Grupo Fasano, Roberta Sudbrack enxerga muitos pontos de convergência entre suas histórias e cozinhas. “Gostamos de oferecer produtos de qualidade e de valorizar a sociabilidade. Temos a coragem de empreender no Brasil, que é uma luta diária, e compartilhamos a paixão pela hotelaria. Costumo viajar para um país só por causa de um hotel”, revela.
Roberta será recebida por Marcelo Pace, chef executivo do Gero BH. Esta será a primeira vez dos dois juntos em uma cozinha. “Abrir as portas da cozinha do Gero para uma chef de renome internacional e desenvolver um menu em conjunto é uma chance valiosa de aprendizado e de compartilhar experiências, não apenas para toda a equipe, mas também para os clientes. Essa parceria representa uma verdadeira celebração da culinária brasileira”, ele destaca.
O menu degustação terá cinco etapas e começará pelo arancini, prato típico da Sicília, de funghi porcini, queijo caccio cavallo e fonduta de parmesão, preparado por Marcelo. Os bolinhos são moldados, recheados e empanados antes de serem fritos. Ficam dourados e crocantes por fora e macios e cremosos por dentro.
Logo depois, Roberta Sudbrack servirá o crudo de peixe (do dia) com ameixa seca e amendoim torrado, que entrou há menos de um mês no cardápio do Sud, o pássaro verde. “A cozinha, principalmente brasileira, é afetiva e precisa de um abraço, que pode vir com alguma lembrança. Esse prato tem um crocante de amendoim que remete ao pé de moleque. Vou colocando essas coisinhas para conseguir te fazer viajar para o espaço da memória”, ela descreve.
Marcelo dará sequência ao jantar com o risoto de açafrão com polvo, linguiça de porco levemente picante e limão siciliano. “Essa combinação de mar e porco tem muito a ver com a nossa culinária. As raspas de limão siciliano entram para dar um frescor e esse prato fica com um perfil de sabor único”, explica o chef.
A gaúcha levará, em seguida, um prato que homenageia diretamente Minas Gerais, por vários motivos: cordeiro assado no tucupi preto, quirera de milho crioulo e ora-pro-nóbis.
“Nunca fui uma pessoa de máquinas na cozinha, tenho aversão. Jamais usei sous vide e, para você ter uma ideia, não tenho nem forno combinado. Então, vou preparar o cordeiro com a técnica que chamo de baixa temperatura caseira, que é como a minha avó fazia. Na travessa, fechando o recipiente para o calor circular por igual e controlando fogo de maneira caseira”, detalha. Depois de assada por 12 horas em fogo baixo, a carne dorme na brasa e fica com gostinho de fogão a lenha.
Sobre a quirera, ela diz que é um ingrediente que ama de paixão, que sempre esteve na sua vida, ainda que fosse em uma cozinha muito sofisticada. Seu plano é usar uma mineira. Para completar, a chef tem uma história curiosa com ora-pro-nóbis. “A primeira muda que tive era de Minas. Plantei no quintal do Palácio da Alvorada e colhia para servir para todo mundo, reis e rainhas. Quando fui embora, trouxe a mudinha e toda vez que vou a Minas tenho que trazer mais. Acho ora-pro-nóbis umas das coisas sofisticadas que existem na nossa cultura gastronomia, é um ingrediente encantador.”
Para encerrar o jantar, uma sobremesa criada por Marcelo. O chef queria levar mineiridade para uma receita italiana, então inventou uma torta inspirada no tiramisu com café, queijo de cabra e doce de leite. “Tudo o que o mineiro gosta”, comenta o chef, que é carioca, mas sabe bem como agradar os clientes daqui. Entre as camadas, um biscoito feito na casa, que lembra o champanhe.
Os convidados terão a opção de harmonizar os pratos com uma seleção de vinhos e espumantes.
Arroz de frutos da terra (Roberta Sudbrack)
Ingredientes
400g de arroz orgânico lavado e seco; 1 cebola finamente picada; 2 dentes de alho finamente batidos; azeite de oliva extravirgem para refogar; 100g de tomatinhos assados; 200g de abóbora assada; 200g de brócolis assado (não dispense as folhas, que são deliciosas); 200g de milho cozido e debulhado; 200g de couve-flor assada; cascas de abóbora assada; 1 talo de alho-poró; 2 talos de salsão; 1 cenoura cortada em pedaços; 1 cebola cortada em pedaços
Modo de fazer
Refogue as cascas de abóbora em um pouco de azeite. Junte o alho-poró, o salsão, a cenoura e a cebola. Refogue bem e cubra com 3 litros de água filtrada. Cozinhe em fogo bem baixinho por pelo menos 2 horas. Coe e reserve o caldo. Refogue a cebola e o alho no azeite até que fiquem bem douradinhos. Junte o arroz e refogue bem. Adicione o caldo da casca da abóbora e cozinhe até o arroz ficar cozido e soltinho. Aqueça os legumes assados no forno pré-aquecido a 220° até ficarem bem chamuscados. Acomode os legumes assados por cima do arroz e leve novamente ao forno para dar aquele tostadinha. Regue com azeite de oliva e sirva logo.
Serviço
Jantar com Roberta Sudbrack no Gero BH
Data: 22/05 (quarta)
Horário: 20h
Endereço: Rua São Paulo, 2.320, Lourdes
Valores: R$ 450 (sem harmonização) e R$ 750 (com harmonização)
Reservas: (31) 3500-8970 e (31) 98412-4080