Um movimento discreto tem ganhado força no universo da gastronomia. Há muito tempo reverenciada por sua capacidade de elevar as emoções humanas, a música transcende a função de entretenimento para desempenhar um papel vital na produção de alimentos e bebidas. Em algumas partes do mundo, produtores têm apostado em melodias para estimular o crescimento das culturas e obter melhor qualidade em seus produtos. Nesta edição, exploramos três histórias de mineiros que unem a arte dos sons aos sabores.


Imagine caminhar por um bosque de oliveiras ao som de uma suave sinfonia de Mozart. É nesse cenário, que mais parece o enredo de um filme de fantasia, que começa a primeira história. Em 2019, a olivicultora Rosana Chiavassa, do Azeite Monasto, comprou uma fazenda em Maria da Fé, no Sul de Minas. “Na propriedade havia um olival com árvores de idade próxima a 16 anos. Quando cheguei, elas estavam abandonadas e eu não acreditava naquilo, era triste de ver”, relembra.

 

As oliveiras plantadas na fazenda onde se produz o Azeite Monasto 'ouvem' canções eruditas e gospel

Arquivo Pessoal


A proprietária da fazenda, que é apaixonada por todos os gêneros musicais e escuta música diariamente, decidiu, então, “alegrar” aquele ambiente. “Decidi colocar música lá, eu precisava animar o cenário, que, para mim, estava um horror. A música é vital para mim, então tentei dar um alento ao lugar”, comenta. Com o auxílio de um engenheiro, Rosana instalou 40 caixas de som pela plantação e gravou um pen drive com músicas eruditas e gospel.

 



 

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Segundo a proprietária, as oliveiras crescem apenas uma vez por ano. “Por não ser uma planta nativa, ela precisa ser naturalizada no solo brasileiro e, por isso, não é certeza de que todo ano teremos uma boa safra. Mas, no ano em que coloquei a música, tive duas colheitas, algo nunca visto antes”.


Rosana conta que a mini safra foi suficiente para produzir 200 litros de azeite, enquanto os outros produtores da região não tiveram o mesmo resultado. “Foi a partir do azeite produzido com as melodias que comecei a ganhar prêmios internacionais. Enviei-o para Nova York, Grécia, Itália e França”, destaca. Em 2021, a marca ganhou medalha de ouro em Nova York e na França. No ano seguinte, repetiu o feito no Concurso Internacional de Azeite na Itália e na Grécia.

 

Quatro playlists


Hoje, a fazenda de Rosana possui 70 caixas de som, que funcionam das 6h às 18h. As playlists foram feitas pelo musicoterapeuta Luís Leão e são divididas em quatro estações. São elas: a fase de “pós-parto”, logo depois da colheita; a florada, que tem um ritmo mais agitado para “acordar” as plantas; a frutificação e, por fim, a colheita. Cada etapa ganha sua trilha sonora, desde as canções mais serenas até os ritmos mais vibrantes.


Apesar de não conseguir comprovar cientificamente a ação da música sobre as plantas, em razão de fatores climáticos que dificultam a percepção, a olivicultora acredita que “não podemos negar que possui efeito, a questão é saber qual é”.


O sistema, embora já adotado em outras culturas e até em criação de animais ao redor do mundo, ainda provoca a curiosidade de alguns consumidores. “Algumas pessoas vão à fazenda e ficam loucas, porque o efeito da música clássica é de extrema paz e prazer. Outras simplesmente não acreditam na influência da melodia sobre o produto. Mas o fato é que eu consegui tirar as oliveiras de um estado degradante com a vibração dos sons”, conclui.


Curadoria musical


O musicoterapeuta Luís Leão foi convidado para profissionalizar a técnica adotada por Rosana, logo após a colheita da mini safra. “Ela entrou em contato comigo e falou que tinha adquirido uma fazenda que já estava em processo de produção. A primeira coisa feita foi a instalação das caixas de som e, a partir disso, começou-se a observar um resultado diferente. Resolvemos, então, definir alguns parâmetros para certificar que a música tinha participação”, menciona.

 

'Acreditamos que a vibração produz uma espécie de ‘massagem’, estimulando a produção de ácidos graxos, o sensorial, o gosto do fruto e a sensibilidade na produção do azeite', diz o musicoterapeuta Luís Leão

Arquivo Pessoal

 

Foi feito um estudo em conjunto com a equipe da fazenda para entender o processo de recepção da frequência sonora nas plantas. Assim, foi adotado o sistema de quatro movimentos. “Para cada uma das etapas, pensamos os movimentos musicais e as harmonias para garantir que as árvores não sofressem um excesso de informação”, explica.

 

 

Mesmo sem análises clínicas, a dupla conseguiu reproduzir a segunda floração em um ano por mais duas vezes. “Apenas em um ano não foi possível, em razão das adversidades climáticas. Foi um longo período de chuva na região”, diz Luís.


A musicoterapia é uma prática clínica que utiliza a música no contexto de tratamento, reabilitação ou prevenção de saúde e bem-estar. Também pode ser adotada em tratamento de pessoas que apresentam alguma dificuldade de aprendizagem e no desenvolvimento pessoal. “Nós nos baseamos no livro ‘A vida secreta das plantas’, de Peter Tompkins e Christopher Bird. Dentro da linha de estudo da obra e da musicoterapia, todo ser vivo tem a capacidade de absorção de som. Com as plantas, portanto, não seria diferente, porque elas também possuem uma forma de recepção”, afirma.

 

Sem cantor


A curadoria musical não foi por acaso, demandou um estudo prévio. “Nós escolhemos os sons pensando nos vacúolos das células. Esses vacúolos são espaços que existem dentro da célula vegetal, preenchidos por água. Acreditamos que a vibração desse líquido produz uma espécie de ‘massagem’, estimulando a produção de ácidos graxos, o sensorial, o gosto do fruto e a sensibilidade na produção do azeite”, explica o musicoterapeuta.

 

A instalação das caixas de som entre as árvores resultou em duas colheitas em um ano, o que não é comum

Arquivo Pessoal


Outro aspecto considerado foi o ecossistema. “Se eu utilizo uma música com voz humana, em alguns momentos do dia eu posso afastar os polinizadores. Existem pássaros e insetos que se aproximam da árvore e a voz pode acabar inibindo a vinda deles”, destaca Luís. Por essa razão, ficou decidido que as canções seriam sem interferência do cantor. “As playlists misturam as fases da música erudita. Algumas têm o período romântico, o barroco e o classicismo”, reitera.


Da mesma forma que Rosana, ele também acredita no efeito musical sobre as oliveiras. “A segunda floração no ano só acontece na fazenda dela, a única que tem música. Os polinizadores são os mesmos, o solo é o mesmo e o clima também é igual para todas as propriedades da região, então cremos que a música é o personagem principal para conseguir o resultado que temos alcançado. O que falta é investir na comprovação científica”, conclui Luís.


Inspiração internacional


Em meio à paisagem verde de Itabira, na Região Central de Minas Gerais, um bananal também se destaca pela prática inovadora do uso da música. A produtora Bernadete Ribeiro adotou as ondas sonoras para melhorar a qualidade da sua plantação.

 

 

A ideia surgiu quando, durante uma pesquisa sobre a interferência dos sons sobre os vegetais, ela se deparou com um estudo que comprovava o benefício da música clássica na produção do leite das vacas. Anos depois, ela também viu que, no Japão, produtores estavam usando o som para a produção de bananas, e o mesmo ocorria na Itália com uvas.


Em 2013, Bernadete decidiu chamar uma empresa de sonorização e instalou cinco alto-falantes nos oito hectares de seu terreno. Os aparelhos eram resistentes ao sol e à chuva, adequados a todas as estações do ano. O estilo musical escolhido foi o mesmo utilizado na fazenda de Rosana. “São sempre melodias clássicas, porque elas possuem, em maior quantidade, as frequências sonoras que beneficiam os seres vivos”, comenta.

 

A escolha do estilo musical: Bernadete Ribeiro entende que o clássico têm mais frequências sonoras benéficas

Arquivo Pessoal


Desde a instalação das caixas de som, o uso da música funcionou para as 15 mil bananeiras da produtora, que revela ter percebido a presença de mais pássaros no bananal. Desde aquele ano, ela também passou a notar as bananeiras mais altas.

 

Durante um período da manhã e da tarde, a música toca no ambiente com duração de três horas para cada turno. “Algumas ondas sonoras são bem parecidas com ondas de luz. Tudo interage com a matéria de alguma forma. Isso se dá através da água, um verdadeiro computador da natureza”, comenta Bernadete. Mesmo sem um veredito da ciência, ela diz que “a experiência é interessante e alegrou o ambiente”.

 

 

No momento, a produtora está em fase de transição para outra propriedade, dessa vez em Nova União, também na Região Central do estado, e pretende instalar o mesmo sistema de propagação da música na nova plantação. “Estou preparando um receptivo turístico onde as pessoas poderão visitar e observar de perto para ter mais informações sobre o processo”, finaliza. 

 

Canto gregoriano


A última história começa em 2004, quando os irmãos Marco Antônio, Juliana e Ronaldo Falcone fundaram a cervejaria artesanal Falke Bier, localizada em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Uma das bebidas produzidas pela marca é a Falke Monasterium, a primeira cerveja do estilo Tripel, termo utilizado na Bélgica para designar um tipo de cerveja loira de elevado teor alcoólico, lançada no Brasil em 2006.

 

A música é utilizada na refermentação da cerveja na garrafa, por um período de 45 dias, durante 24 horas, sem interrupção

Qu4rto Studio/Divulgação


“Ela é inspirada nas cervejas produzidas em mosteiros na Bélgica, as chamadas cervejas de abadia. Lá, os monges produzem cervejas há séculos e utilizam o canto gregoriano nas suas orações”, revela o cervejeiro Max Falcone, filho de Marco, um dos fundadores da Falke Bier, que faleceu em janeiro deste ano. Diante desse conhecimento, o canto gregoriano foi escolhido por conseguir influenciar, por meio de sua frequência, as leveduras da bebida.


O gênero musical é extremamente suave e capaz de alterar o metabolismo celular, ou seja, o comportamento dos levedos da cerveja. “A música é utilizada apenas na parte de refermentação na garrafa, por um período de 45 dias, durante 24 horas, sem interrupção”, ressalta Max.


A Monasterium fica em uma sala subterrânea, desenvolvida especialmente para abrigá-la, a uma temperatura controlada de 19 ºC. No espaço, ela passa por um estágio de refermentação dentro da garrafa e ao som do canto gregoriano. A cervejaria utiliza essa técnica desde o primeiro lote.

 

Pesquisa x comprovação


O uso da música na produção de alimentos e bebidas não é apenas um assunto curioso, é também tema de pesquisas acadêmicas. É o caso do extensionista da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) do Rio Grande do Sul, Cristiano de Vargas Oliva, que dedicou seu doutorado a estudar a música na agropecuária.


“É sabido que, desde o princípio, a música tem efeitos sobre os seres vivos, no entanto, não se sabe como ela causa esses efeitos. Por não saber, há uma restrição em acreditar que o som traga alguma característica positiva ou negativa. É muito difícil quantificar o quanto daquele resultado está relacionado à música, esse é o maior obstáculo de investigação”, sublinha.


Por outro lado, Cristiano aponta que a falta de comprovação não é um impedimento, pelo contrário, é um estímulo para se investir em novos métodos capazes de avaliar a prática. “A eficiência existe e é percebida, basta descobrir como”, garante.


*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino

 

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