Prato, talher, guardanapo, copo, taça e... algo para beliscar. Elementos básicos para se receber alguém à mesa. É nesse contexto que entra o couvert, item zero – vem antes até das entradas – do cardápio de um restaurante. Tradicionalmente formado por pães, patês e azeitonas, em quantidade suficiente para abrir o apetite, ele se molda ao estilo de cada casa e acaba entregando um pouco da identidade do lugar onde se vai comer uma refeição completa.
A palavra couvert tem origem francesa e significa, literalmente, o que cobre a mesa. Em outras palavras, os tais itens indispensáveis para se iniciar uma refeição. Na Europa, ele não é simplesmente um agrado ao cliente. “Quando você monta uma mesa, tem um custo de reposição constante desse material, prato, talher, copos, taças, então o couvert foi criado para cobrir o custo dessas reposições. Tem casa, inclusive, que cobra o couvert se você come ou não come”, explica o chef Ivo Faria.
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Nesse momento, Ivo se lembra do caso de um amigo que reclamou, na hora de pagar a conta em um restaurante na Itália, que não tinha comido o couvert. “Couvert não se come, é isso, isso, isso...”, retrucou o garçom, sem muita simpatia, apontando para os utensílios que estavam em cima da mesa. Essa é a prova de que, por lá, o couvert não é exatamente para comer, mas para cobrir os custos da mesa posta.
No Brasil, não é bem assim. Couvert é sinônimo de boas-vindas em um restaurante. É o item do cardápio que sai mais rapidamente da cozinha, então amansa o estômago dos mais famintos. Também ajuda a passar o tempo de quem está esperando um convidado. E disfarça a fome do cliente enquanto ele olha o cardápio e decide qual entrada pedir. Aqui couvert é opcional e só paga quem consome.
Pastel de vento
Ivo Faria é o criador do couvert mais famoso de Belo Horizonte: o pastel de vento do extinto Vecchio Sogno. A ideia partiu do italiano Memmo Biadi, que na época era seu sócio no restaurante. “Ele conhecia essa receita da Itália, onde nem era fácil de encontrar. Eu nunca tinha comido. Nós conversamos, fizemos testes, decidimos colocar no couvert e ficou. Os clientes até hoje amam”, relembra.
Nem adianta tentar descobrir a receita. Ivo a mantém em segredo e não compartilha com ninguém, mesmo diante de inúmeros pedidos de curiosos. Conversa vai, conversa vem, ele acaba fazendo uma curiosa revelação: apesar do nome, a massa não tem nada a ver com a de pastel. O chef também conta que o ingrediente principal é a farinha de trigo. Depois se cala, rindo, para não correr o risco de falar demais.
O pastel de vento foi servido desde o primeiro até o último dia do Vecchio Sogno, ou seja, de 1995 a 2021. Um total de 25 anos. Pela fama, era raro um cliente que não aceitasse o couvert. Muitos iam lá só por causa dele.
Marca registrada
Logo que fechou o restaurante, como eram tempos de pandemia, Ivo seguiu atendendo os clientes, mas de um jeito diferente. Mandava para eles kits para cozinhar em casa. A massa do pastel de vento estava lá (ai dele se não estivesse), para ser frita na hora. Até inaugurar o Instituto Ivo Faria, dois anos depois, onde recebe com menus fechados, todo mundo cobrava: quando o pastel de vento vai voltar?
“Brasileiro gosta de massa e uma massa quentinha, frita na hora, com sal por fora caiu no agrado das pessoas. O pastel de vento fez sucesso e continua fazendo”, aponta o chef, ao se referir ao item que virou sua marca registrada e o acompanha até hoje. No menu comemorativo dos 35 anos do francês Taste-Vin, Rodrigo Fonseca serviu os pasteizinhos de vento de couvert em homenagem a Ivo Faria.
Todos os menus do Instituto começam pelo couvert, e o couvert tem que ter os pastéis de vento. E o que ele ouve todas as vezes? Como é bom poder matar a saudade, confessam os clientes.
Para acompanhar, pães fabricados no restaurante La Palma, comandado pela filha de Ivo, Naiara Faria, como ciabatta e focaccia, e duas pastas, que podem ser, por exemplo, queijo com limão siciliano, pesto ou sardela. “Geralmente, coloco uma pequena entrada junto para o couvert ficar mais atrativo. Dependendo do clima, pode ser cappuccino de champignon, creme de baroa com crocante de parma, uma pequena salada ou um assado de queijo”, avisa.
Recheadas e empanadas
Azeitona é um item comum de se encontrar em couvert. No restaurante Dal Grano, ela está lá, mas de um jeito totalmente diferente. Olive All´Ascolana é o nome que se dá às azeitonas recheadas e empanadas, típicas da cidade italiana de Ascoli Piceno, mas que se espalharam por toda Itália. O chef Lucas Castro conheceu o prato em Milão.
“Estava no Mercado Central de Milão e sentei com amigos que moravam lá para comer alguma coisa enquanto esperávamos o trem. Para eles, não era nada inovador, mas eu fiquei apaixonado pelas azeitonas”, conta.
Quando chegou para montar o cardápio do Dal Grano, Lucas se lembrou imediatamente das azeitonas e decidiu que elas fariam parte do couvert. Afinal, a cozinha do restaurante se propõe a fazer um passeio por várias regiões da Itália, mostrando suas tradições através dos pratos. “Considero o couvert um cartão de visitas da proposta do menu, já dá uma ideia do que vai vir depois”, resume o chef.
Cada lugar na Itália usa um tipo de recheio. Lucas comeu as azeitonas com carnes de coelho, boi, porco e mortadela. Aqui, por uma questão de facilidade, trocou o coelho pelo frango. “Puxo o trio de carnes junto com vegetais, como se estivesse fazendo um fundo de molho. A mortadela entra como um ingrediente curinga bem legal. Depois coloco pão, tomate, manjericão, azeite e deixo esfriar. Uso ovo para dar liga na massa, ela precisa ficar em ponto de bico”, detalha.
Depois de muito pesquisar, o chef conseguiu um fornecedor de azeitonas maiores e sem caroço. Isso facilita o trabalho, mas, mesmo assim, o processo é bem trabalhoso, por ser totalmente manual. Uma a uma, elas vão sendo cortadas e recheadas com bico de confeiteiro.
A etapa seguinte é empanar. “Em São Paulo, já vi essas azeitonas empanadas com farinha panko, mas, estudando a fundo a receita, vi que tem que ser farinha de rosca para manter a tradição. Os italianos não desperdiçavam nada. Quando tinha excesso de pão, eles tostavam e faziam farinha”, explica. No caso da Olive All´Ascolana, a farinha vai na massa e no recheio, para que ele fique mais úmido.
Igual pipoca
Diferentemente das entradas, o couvert é uma microporção e de rápida execução (chega quase que de imediato à mesa). “Não é para encher barriga, é para abrir o apetite. O couvert prepara as papilas gustativas para o que vai vir na noite”, pontua Lucas.
Lá no Dal Grano funciona assim: sentou, o garçom já oferece o couvert. Metade dos clientes aceitam começar a refeição por essa etapa. As azeitonas são fritas na hora, bem rapidamente, em tempo suficiente para aquecer o recheio. Elas chegam à mesa com limão e aioli de coentro. Para o chef, fritura e maionese são como arroz e feijão, feitos um para o outro. Com a mesma rapidez com que são preparadas, são devoradas. Todo mundo acaba comendo igual pipoca.
Outro dia, o chef foi questionado por que não disponibiliza as azeitonas no delivery. Até que eles gostaria, mas, como o processo é muito minucioso, ainda não tem uma linha de produção que consiga atender as duas operações ao mesmo tempo.
Na Itália, coperto
Até uma pizzaria pode ter couvert, por que não? É o que mostra o chef Henrique Gilberto no menu da Forno da Saudade. Como a casa carrega a influência italiana na sua identidade, segue a escola mediterrânea de hospitalidade, em que o básico que uma mesa precisa ter para receber alguém são talheres, guardanapo, pão, azeite e sal.
“Acredito que a hospitalidade, a maneira como recebemos as pessoas dizem muito sobre o que esperar da experiência completa”, destaca o chef, que escolheu escrever no cardápio coperto, como se fala na Itália.
O couvert da Forno da Saudade combina sabores e texturas que se complementam. Boa parte dos preparos são feitos no forno a lenha, o mesmo usado para fazer as pizzas. Como é o caso do pão de fermentação, que pode ser de alho ou aliche. Mesma massa das redondas, só muda o formato. O molho romesco, mistura de pimentões, anchovas, cebolas e amêndoas e óleo de oliva, também passa pelo forno a lenha, assim como a abobrinha sott'olio, grelhada e marinada em azeite.
A manteiga noisette cítrica, caramelizada e emulsificada com limão, adiciona um toque de leveza e acidez ao couvert. Completam a experiência azeitonas selecionadas em conserva de laranja e ervas e alcaparrões, versões maiores das conhecidas alcaparras.
Um belo começo
Agnes Farkasvölgyi tem a seguinte opinião: “ou você serve o melhor possível ou é preferível não servir.” Para a chef do restaurante A Casa da Agnes, o couvert não é um item obrigatório e nem sempre está no cardápio. Mas, quando coloca, ela se empenha para entregar o que tiver de mais fresco no dia.
A chef segue a conversa dizendo que não faz sentido colocar um “pãozinho” só para ter couvert. Se você não tem um pão de qualidade para servir, ou algum item que esteja dentro do contexto da sua cozinha, não faz sentido oferecer essa opção para os clientes. “Couvert bom tem que ter a assinatura do lugar, senão você já começa errando e causa uma péssima impressão”, acrescenta.
O couvert é chamado de abre-alas no A Casa da Agnes, porque é para abrir o apetite, e não para matar a fome. Tanto que é bem menor que uma entrada. “Couvert simplesmente faz o papel de trazer algo que a pessoa possa comer enquanto não chega a entrada que ela pediu.” No máximo, Agnes pondera, pode virar acompanhamento para a entrada ou o prato principal. A chef acha delicioso ter um pãozinho para comer com uma salada ou o molho de uma massa, por exemplo.
No último menu, o seu couvert era composto por pão de grãos, patê de foie gras, mousse de pepino com limão e manteiga. Atualmente, não existe essa opção descrita no cardápio, mas, se o cliente quiser, ela consegue servir o que tem de fresco no dia. Além dos pães, que, como deixou claro, considera indispensável, uma boa manteiga (que pode ou não ser saborizada com pequi, ervas e outros ingredientes), patê de foie gras ou de campagne da casa são uma ótima pedida para começar a refeição.
Como o restaurante só abre para o almoço, o couvert não costuma ter tanta saída. Quem pede, normalmente, está com tempo para curtir todas as etapas.
Queijo com goiabada
Chef do restaurante O Jardim, Willian Oliveira concorda que o couvert funciona como uma porta de entrada para o que o menu pode oferecer. Por isso, caprichou para que a sua sugestão tivesse identidade e sabores atrativos. Ao mesmo tempo, fosse leve, rápido de fazer e servir e fácil de comer.
“Pensei no chips de pão de queijo com queijo Canastra, que são triângulos de massa desidratada bem fina e crocante, acompanhados de chutney de goiaba e especiarias. Essa combinação faz alusão ao nosso queijo com goiabada”, comenta.
Willian parte da receita de pão de queijo tradicional, com polvilho, queijo da Serra da Canastra, leite e óleo, só que, em vez de bolear, abre a massa em tapetes antiaderente e assa em temperatura baixa. O salgadinho do chips se junta ao agridoce do chutney de goiaba, que leva um pouco de goiabada e um monte de especiarias, como cravo, canela, páprica, e noz-moscada.
Todo dia o couvert tem muita saída. Enquanto os clientes chegam e se acomodam na mesa, o garçom já sugere essa opção. De qualquer forma, ele é o primeiro item do cardápio, então, as pessoas acabam passando por ele (e se interessando) até que decidam o que vão beber e pedir de entrada ou prato principal. Se o cliente está com muita fome e tem pressa, é a melhor forma de começar a refeição.
Anote a receita: Chips de pão de queijo com chutney de goiaba, por Willian Oliveira, de O Jardim
Ingredientes
- 500g de polvilho;
- 400g de queijo canastra;
- 100g de queijo parmesão;
- 2 ovos;
- 100ml de água;
- 100ml de leite;
- 150ml de óleo;
- 1 colher de chá de sal;
- 500g de goiaba sem casca e sem semente e picada em cubos;
- 120g de pimentão vermelho em cubos;
- 15g de pimenta dedo-de-moça;
- 80g de cebola branca em julienne;
- 10g de alho picado;
- 100g de goiabada cascão em cubos;
- 3 unidades de cravo da Índia;
- 1 pitada de coentro em pó;
- 1 pitada de cúrcuma;
- 1 pitada de cominho;
- 3 sementes de cardamomo;
- 1 pitada de canela em pó;
- 100ml de suco de laranja;
- 80ml de suco de limão;
- 200ml de vinagre de arroz;
- 30g de açúcar mascavo;
- 450g de açúcar cristal;
- 60g de uvas-passas brancas;
- 10g de gengibre ralado
Modo de fazer
- Leve ao fogo o óleo, leite, água e sal.
- Deixe ferver e escalde o polvilho.
- Com o polvilho escaldado e ainda morno, adicione os ovos e o queijo e misture até que fique homogêneo.
- Abra a massa em um tapete de silicone ou em uma folha de papel-manteiga.
- Com uma faca, marque o formato que desejar.
- Leve ao forno a 170° por 10 minutos, ou até dourar.
- Para o chutney, em uma panela, coloque todos os ingredientes (da goiaba ao gengibre) e cozinhe em fogo baixo por 40 minutos, ou até que fique em ponto de geleia.
Serviço
Instituto Ivo Faria (@institutoivofaria)
Rua Modesto Carvalho de Araújo, 652 – Belvedere
(31) 97158-1768
Dal Grano (@dal_grano)
Avenida Presidente Antônio Carlos, 7456 – Pampulha
(31) 3505-9240
Forno da Saudade (@fornodasaudade)
Rua Patrocínio, 1 – Carlos Prates
A Casa da Agnes (@acasadaagnes)
Rua Paulo Afonso, 833 – Santo Antônio
(31) 98738-7066
O Jardim (@ojardimrestaurante)
Avenida Cônsul Antônio Cadar, 117 – Santa Lúcia
(31) 3318-7787