Trabalhar em cozinha de bar não costuma ser o sonho de quem está em início de carreira. Mas, de uns tempos para cá, chama a atenção o movimento de chefs que já passaram por restaurantes e escolhem fazer parte de uma operação menos glamourosa e complexa. Isso coincide com a demanda do público, que tem buscado experiências mais informais e descontraídas. Afinal, estamos em Belo Horizonte, a capital dos botecos.
Para entender qual caminho seguiria na profissão, Bruna Rezende passou por vários restaurantes de BH – Birosca e Cozinha Tupis estão entre eles. Mas assume que sempre teve vontade de abrir um bar. “Sempre fui frequentadora, cresci no bar. Meus pais me levavam quando eu era criança e eu dormia na cadeira enquanto eles bebiam cerveja. Então, isso faz parte da história de uma belo-horizontina nata”, comenta uma das sócias do A Porca Voadora, que completou um ano recentemente.
Apesar de ter amado as experiências, Bruna concluiu que nada daquilo era a sua “praia”. E, na hora de empreender com dois amigos, idealizou uma operação mais simples, leve e alegre. Por isso, um bar.
É claro que nada se descarta. Tudo o que ela viveu em cozinha de restaurante ajuda – e muito – no dia a dia do negócio. “Sinto que as pessoas diminuem por ser um bar. Sim, é uma operação menor, mas, para você não falir, tem que ter um planejamento muito certo, fazer gestão de pessoas e isso é muito trabalhoso, assim como na alta gastronomia. Não é porque é um bar que pode ser uma bagunça”, pontua.
O conhecimento adquirido também se transporta para dentro da cozinha. A chef emprega muita técnica nas receitas, não apenas por entender que a construção de sabor vem da complexidade dos preparos, mas pela evidência de que isso evita desperdício e otimiza a operação.
O jiló recheado com joelho de porco e empanado, que causa rebuliço por onde passa, é um exemplo. O petisco está longe de ser “só” um jiló. Leva-se, no mínimo, três dias para vencer todas as etapas: cozinhar, tirar a polpa, resfriar, preparar a carne, desfiar, temperar, rechear o jiló, empanar e fritar. Essa é uma receita que une um ícone belo-horizontino (o jiló) a uma paixão de Bruna (o joelho de porco).
Para quem deseja explorar mais o cardápio, a chef indica a coalhada, refrescante e inusitada por ter picles de uva, que entrega sabores ácidos e doces numa mordida. Fora a presença da castanha de pequi adicionando textura e perfume. “Se fosse cliente, pediria a coalhada e um prato de charcutaria. Esse é o tipo de comida que gosto de comer tomando cerveja. Você belisca e não precisa comer tudo de uma vez.”
Mais confiante
Como Bruna já sente os clientes mais abertos ao diferente, confiantes de que ali é o lugar para colocar o paladar à prova, vem propondo “loucuras”. Nesta semana, começou a primeira mudança no cardápio, que promete fortes emoções.
A linguiça agora é de pato e chega à mesa com mandioca frita e calda de laranja. Já a tulipinha de frango frita ganha a companhia de alho frito e melado de cana. Língua com polenta frita de canjiquinha ao curry e coração de galinha com pimenta fermentada também deixam claro os novos rumos da cozinha.
Ter um restaurante não está nos planos de Bruna, tanto que ela já assumiu a operação de outro bar. Há três meses, foi inaugurado no Mercado Novo o Mezcla, uma mistura de cervejaria e taqueria. A massa é produzida artesanalmente com milho crioulo, através da técnica ancestral de nixtamalização (deixar o milho por horas submerso em solução alcalina) e de recheios que transitam entre o México e o Brasil. Entre as opções, taco de língua.
Frequentador de bar
Verdade seja dita, nunca foi o sonho de Daniel Tassi estar à frente de uma cozinha de bar. No início da carreira, assim como a maioria dos jovens, ele admirava o serviço de restaurantes finos e era onde queria trabalhar. “Depois de anos, acabei ficando cansado dessa pompa e rigor todo e comecei a entender que gostava mesmo de um serviço mais solto e casual que o bar possibilita. Sempre gostei de estar em bar e comer comida de bar”, pontua o chef do Padrin, com passagens por casas como Osso, Alma Chef e Pacato.
Coincidiu que, enquanto ele repensava a vida, seu primo Thiago Tassi disse que estava a fim de empreender. Daniel já tinha decidido trabalhar como consultor, mas se convenceu quando soube que a ideia era abrir um bar. A proposta agradou não só pelo serviço descomplicado, mas pela liberdade criativa.
Inaugurado há oito meses, o Padrin (o nome homenageia o pai de Thiago, que era padrinho de batismo de Daniel) é definido como um bar de tapas. Lá não tem prato principal nem sobremesa, só entradas para compartilhar. O chef acredita antecipar o que enxerga como tendência na gastronomia: uma experiência que amplia os horizontes, incentivando o cliente a conhecer vários pratos do cardápio e entender melhor a proposta do lugar.
Quando avançamos para o estilo de cozinha, fica mais difícil de encontrar uma definição. “Não consigo definir, porque o nosso trabalho envolve muitas técnicas e gastronomias. Falo que é cozinha de mescla, é o que tenho vontade de fazer. Gosto de servir o que gosto de comer. Acho legal essa diversidade de, ao mesmo tempo, servir um asiático, uma milanesa e um crudo. Não existe barreira para a criatividade.”
O que dá para dizer (e sentir) é que a influência asiática domina. Daniel decidiu levar para o cardápio moela de pato, por ser “mais carnuda e mais gostosa que a de frango”, com molho à base de shoyu, mirin e nam pla, riquíssimo em umami. Já o sabor do tonkatsu clássico (lombo de porco marinado, empanado na farinha panko e frito) se eleva com mel de pimenta sriracha e maionese da casa à base de leite. Pronto, assim ele criou os pratos de maior sucesso da casa.
Pratos impactam
Por mais que a operação seja mais informal, o chef diz que emprega o conhecimento que acumulou nos restaurantes. Segundo ele, o bar preza por técnica, sabor e empratamento. “A pessoa senta, pede uma cerveja e sente um grande impacto quando os pratos chegam à mesa, porque tudo é muito bem-apresentado. Depois, na primeira garfada, vem todo aquele sabor.” Agilidade, organização, capacidade de gerenciamento e criatividade também foram ensinamentos das casas por onde passou.
Daniel fala isso até como um incentivo para os jovens, porque percebe que ainda existe um desinteresse em trabalhar em bar. “Você não sabe a dificuldade que é achar funcionários para a cozinha. Aluno de faculdade busca fine dining, quer ver como funciona menu degustação, trabalhar de dólmã, toda a pompa que a TV mostra. Acha que num bar não vai aprender técnica nem nada, só fritar mandioca. Mas não tem nada disso, ainda mais com a onda de novos bares”, aponta.
No início, hambúrguer
O caminho natural era trabalhar em restaurante. Depois de se descobrir cozinheiro na Austrália, Pedro Mendes passou por Vecchio Sogno, Alma Chef e La Palma até receber o convite para fazer hambúrguer no Guaja. Mais tarde, ele entrou para o grupo do bar Redentor e não saiu mais. “Acabei me encontrando nesse tipo de cozinha, mais leve e que permite brincar com as receitas”, comenta.
Pedro participou de todo o processo de construção do Moema, onde está como chef-executivo. Segundo ele, os restaurantes foram grandes escolas, que ensinaram processos e técnicas para agregar sabor. O chef entende que isso é ainda mais importante quando se trata de fazer receitas que outros tantos fazem.
Croquete de costela pode ter em todo lugar, mas ele garante que o do Moema tem uma quantidade absurda de carne. Veja agora o steak tartare: em vez de ficar por cima, a gema de ovo, curada no shoyu, mistura-se à carne e de acompanhamento o nada convencional creme azedo. A coxinha tem recheio de pastrami e o jiló, depois de ser cozido no caldo de frango, é recheado com bacon, empanado e frito. Mexe com os sentidos até de quem diz não gostar de jiló.
As experiências anteriores também contribuem para a organização da equipe e do serviço. E olha que estamos falando de 28 pessoas em uma cozinha que funciona 24 horas e chega a atender mais de 500 pessoas num dia. “Bar e restaurante são mundos completamente diferentes, mas temos muito cuidado com os petiscos. Como temos que servir um número grande de pessoas em uma velocidade muito rápida, a finalização é mais acelerada, mas não menos cuidadosa. Temos que encontrar o equilíbrio entre rapidez e cuidado.”
Criatividade sem limites
Na visão de Pedro, talvez seja realmente bom começar a carreira pela alta gastronomia, onde você aprende de tudo, e com rigor. Mas isso, definitivamente, não faz mais sentido para ele. Hoje, se alguém oferecer uma vaga em um restaurante três estrelas Michelin, ele agradece, prefere continuar onde está. “A cena gastronômica de grandes restaurantes com chefs estrelados acaba limitando a criatividade. Por experiência própria, tinha que fazer o que mandavam e acabou. Então, o bar acaba atraindo depois de um tempo trabalhando em cozinhas restritivas.”
O trabalho no grupo só cresce. Em breve, será inaugurada a expansão do Moema, que vai ocupar também a casa ao lado. Em comemoração aos dois anos, entrará no cardápio o dadinho de mandioca cremoso com pulled pork, geleia de pimenta e quiabo frito. No ano que vem, estão previstas duas aberturas: um bar com pegada oriental e outro de braseiro.
Movida a desafios
Samira Lyrio nunca fez distinção entre bar e restaurante. Para ela, no fim das contas, tudo se resume ao ato de cozinhar. Logo, não viu problema nenhum em assumir as panelas de um boteco de estufa, o Nada Contra. “Gosto de fazer comida e esse é o meu trabalho. Nunca tinha me envolvido com esse universo e achei muito bom o desafio. Só me acrescentou”, destaca a chef, que, no mês que vem, completa cinco anos de casa.
Quando voltou para BH, depois de uma temporada de cinco anos nos Estados Unidos, seu plano era abrir um bistrô à luz de velas. E assim foi com o Flores, que funcionou por uma década. Encerrado esse ciclo, a vida se encaminhou para consultorias e eventos. Trabalhar em bar nunca tinha passado pela sua cabeça, mas ela reafirma: “Qualquer trabalho com comida me move. Quando sinto que vou aprender, topo.”
Não faltou aprendizado nessa caminhada. A chef visitou muitos bares e estudou a fundo o funcionamento de uma estufa para entender o que poderia colocar ali e por quanto tempo. A apetitosa vitrine do Nada Conta tem 12 recipientes de vidro. Muitas receitas envolvem carnes de longos cozimentos, sem forno combinado nem panela de pressão. “Tudo o que aprendi em restaurante coloco em prática. Produzo toda semana, então minha comida é sempre fresca e vai sendo renovada de acordo com o movimento”, explica.
Com o tempo, Samira foi levando sua assinatura para pratos clássicos. A rabada tem um toque de canela por influência do Oriente Médio. Pelo mesmo motivo, o cupim se transforma com o kummel, especiaria muito usada no Leste Europeu. Outra estrela sacramentada da estufa é o costelão braseado com mandioca na manteiga de chimichurri. Cada carne tem seu próprio caldo, o que garante sabores únicos e mordidas sempre suculentas.
Para quem preferir, as frituras podem ser preparadas na hora. Entre elas, os bolinhos de bacalhau com batata-doce e sálvia (invenção bem ousada que agradou um legítimo português) e de mandioca com ragu de linguiça (sem nada de farinha de trigo). Um salve também para os pastéis, um com recheio de rabada e outro de queijo provolone. Ainda tem o aclamado torresmo de barriga pururucado (o “segredo” está no fornecedor, que abate porcos todos os dias) e a moela de frango frita.
Status é “bobagem”
Samira revela que ainda existe um estranhamento quando os clientes descobrem que ela é a chef do bar. “Quando saio da cozinha e vou conversar com as pessoas, perguntam se sou dona ou mulher de algum dos donos. Aí tomam aquele choque ao descobrir que sou a cozinheira, custam a entender, mas levo na brincadeira”, conta a chef, que enxerga uma virada: os cozinheiros de bares estão sendo mais vistos e valorizados.
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Apesar disso, ela reconhece que trabalhar em restaurante continua a ser mais sedutor, ainda mais para os jovens, certamente pela questão do status, o que considera “uma grande bobagem”. Mas isso se reflete na ponta, porque é difícil alguém querer trabalhar em boteco. “É preciso desgourmetizar a cozinha. O ato de servir e cozinhar está dentro de nós e, se você escolher essa profissão, nada vai te desviar”, defende Samira, que se orgulha do título de cozinheira de boteco.
Crudo de carne
Daniel Tassi – Bar Padrin
Ingredientes
- 200g de lagarto bovino;
- 50g de beterraba cozida picada em cubos;
- 25g de cebola roxa picada em cubos pequenos;
- 50ml de azeite extravirgem;
- 10g de furikake;
- alface frisée (quanto baste);
- queijo canastra 90 dias de cura ou parmesão (quanto baste);
- 1 unidade de cogumelo Portobello salteado;
- 3g de sal fino;
- 3g de pimenta preta moída na hora;
- zest de 1 limão siciliano;
- ciboulette (quanto baste);
- 20g de molho de ostra
Modo de fazer
- Congele a peça de lagarto bovino previamente para facilitar o corte da carne em cubos.
- Lamine a carne em fatias de 2mm de espessura.
- Pique em cubos e reserve.
- Cozinhe a beterraba em água.
- Resfrie e pique em cubos como os da carne.
- Faça o mesmo com a cebola roxa.
- Corte em cubos pequenos para que a textura fique melhor na boca.
- Adicione todos os ingredientes em um recipiente e misture.
- Adicione o azeite, acerte o sal e finalize com a ciboulette e as raspas de limão siciliano.
- Para guarnecer, tempere a salada de alface com sal e azeite e rale o queijo por cima.
- Monte o crudo de carne em um prato da sua escolha e coloque a alface temperada por cima.
- Sirva com torradas ou com a base que preferir.
- Aproveite.
Serviço
A Porca Voadora (@aporcavoadorabar)
Rua do Ouro, 1709, Serra
(31) 99172-2593
Bar Padrin (@barpadrin)
Rua Campanha, 11, Carmo
Moema (@moema.bar)
Rua Sergipe, 1370, Savassi
(31) 3568-3555
Boteco Nada Contra (@boteconadacontra)
Rua dos Aimorés, 629, Funcionários
(31) 98988-6857