Cidade Criativa da Gastronomia. Há exatos cinco anos, Belo Horizonte comemorava o título chancelado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). De 2019 para cá, o reconhecimento internacional vem movimentando o setor e ajudando a posicionar a capital mineira como um destino turístico gastronômico. Mas, no momento em que se faz um balanço, a conclusão é de que o belo-horizontino ainda precisa se apropriar desse título e incorporá-lo ao seu dia a dia.
Com o perdão do trocadilho, BH tem a faca e o queijo na mão para fazer desse título uma conquista ainda maior. Como destaca a presidente da Belotur, Bárbara Menucci, que assumiu a pasta há seis meses, a gastronomia está entre as três experiências que mais atraem os turistas a nível global. E, ninguém duvida, essa é a nossa vocação: receber bem, e com comida boa.
“Em BH, tudo acontece ao redor na mesa, amizades, negócios, reuniões familiares, a nossa cultura é forte nesse sentido. Além disso, somos a capital dos botecos e temos uma diversidade de experiências únicas, desde o tradicional pão de queijo até pratos assinados por chefs premiados. Em qualquer lugar, você vai acessar boa comida, e esse é um grande diferencial da nossa cidade”, destaca Bárbara.
A conquista do título envolveu a construção coletiva de um dossiê, a partir de 2017, que resumia os atributos gastronômicos da cidade. Na primeira tentativa, em 2018, não deu certo. Em 31 de outubro de 2019, a candidatura foi aprovada. O que isso significa exatamente? BH passou a fazer parte da Rede Mundial de Cidades Criativas da Unesco, que promove um intercâmbio de experiências com o objetivo de impulsionar o desenvolvimento sustentável através da cultura e, na ponta, promover o turismo.
“Já representei BH em encontros das cidades criativas e é muito interessante ver como somos referência. Dá um orgulho danado escutar pessoas falando da nossa cidade, reconhecendo nosso potencial e querendo saber o que fazemos e como fazemos”, comenta a presidente da Belotur.
Bárbara explica que, com o título, a cidade deixa de ter projetos isolados de gastronomia para tratar o assunto de forma mais transversal, envolvendo, não só o turismo, mas áreas como desenvolvimento econômico e social, segurança alimentar e cultura. E a ideia é ampliar cada vez mais o diálogo, incluindo toda a cadeia produtiva, para que as ações estejam conectadas com as demandas do setor, que é bastante amplo, e resultem em políticas públicas efetivas.
Projetos em andamento
Nesses cinco anos, alguns projetos nasceram e se desenvolveram. Criado dois meses depois do título, o “Territórios e Redes Criativas” mapeia e estimula negócios criativos em diferentes regiões da cidade. Lagoinha e Pampulha já foram contempladas. No fim do mês, será a vez de apresentar o guia virtual do Mercado Central. Outro lançamento previsto para novembro é o “Bares com Alma”, que vai dar visibilidade a endereços considerados patrimônios da cidade. Não podemos deixar de falar da Bienal da Gastronomia, realizada em 2023 e que deve se repetir em 2025.
Há três edições, o Arraial de Belo Horizonte passou a ter uma importante frente de gastronomia, com o Concurso Prato Junino e a Vila Gastronômica. A Belotur quer fazer o mesmo com o carnaval no ano que vem. Bárbara adianta que eles estão mapeando bares para criar um circuito para os foliões. Haverá, também, um espaço gastronômico na passarela dos desfiles das escolas de samba, blocos caricatos e Kandandu.
Cidade surpreendente
Agora falta incluir de vez uma pessoa importante nessa conversa: o próprio belo-horizontino. “Tenho muito orgulho de saber que a nossa cozinha tem esse reconhecimento, que nos posiciona em âmbito internacional, mas, antes de entrar na Belotur, não tinha dimensão disso. Por isso, sempre falo que esse título não é da Belotur, é da cidade, e as pessoas precisam se apropriar dele”, afirma Bárbara.
Na visão dela, o desafio está em fazer o morador reconhecer BH como cidade turística para que ele possa “vender” seus atrativos, convidando pessoas de fora, seja para conhecer um boteco ou para experimentar um jantar de oito tempos. “Vejo como nós, belo-horizontinos, podemos nos surpreender com BH e partir disso mostrar para o turista como a nossa cidade é surpreendente.”
Minas como um todo
Edson Puiati participou da construção do dossiê de candidatura desde o início. Em 2019, quando estava no Centro Universitário Una, ele se lembra das reuniões com vários representantes da cozinha mineira. Atualmente diretor de hospitalidade e gastronomia do Senac Minas e coordenador da Frente da Gastronomia Mineira, o chef considera o título uma conquista importante para BH e para Minas Gerais, afinal, a capital é uma síntese do que se encontra em todo o estado.
“O título carrega a tradição, os modos de fazeres, sabores e aromas de uma cultura alimentar que atravessa fronteiras. Do campo à mesa, os ingredientes e os pratos estão dentro desse título. Acredito que essa é uma forma de valorizar e divulgar a nossa cozinha – leia-se: salgados, doçaria, quitandas e bebidas típicas – por meio de homens e mulheres que se dedicam a perpetuar nossa tradição”, avalia.
Quando faz um balanço desses cinco anos, Puiati concorda que falta aproximar o título do belo-horizontino. “Vejo que muitos ainda não sabem e alguns sabem, só que não entendem a dimensão e importância deste título para a cidade e o estado. Mas posso garantir que todos defendem nossa cozinha como a melhor do país”, diz, certo de que os nativos naturalmente se orgulham da sua cozinha. Pelo lado de chefs e empresários do setor, ele vê que existe um consenso de que devemos explorar mais esse título.
Impactos no setor
Para Karla Rocha, que contribuiu com o dossiê enviado à Unesco por estar à frente do Bolão, o reconhecimento cria oportunidades para BH consolidar sua identidade gastronômica mundialmente. E ela sente os impactos disso, tanto como sócia do tradicional negócio quanto como a atual presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes em Minas Gerais (Abrasel-MG).
No dia a dia, Karla observa que o título vem aumentando o número de visitantes interessados em conhecer o Bolão, que é um ícone da gastronomia local, com o seu famoso “Rochedão”. Em consequência, ajuda a manter vivas receitas que fazem parte da cultura e da história de BH.
“Sob a ótica da Abrasel, o título incentiva todo o setor a elevar seus padrões de qualidade e inovação. Restaurantes, bares e estabelecimentos de BH estão ampliando o foco na experiência gastronômica para não apenas atrair, mas fidelizar o turista. É uma oportunidade para o setor crescer, diversificar suas ofertas e se preparar para um fluxo turístico mais consistente”, comenta.
Segundo Karla, o setor tem feito avanços importantes em infraestrutura e atendimento. A oferta gastronômica está cada vez mais diversificada e muitos bares e restaurantes já adotaram práticas de atendimento multilíngue e de adaptação cultural. “Queremos que o mundo experimente um pouco da nossa história e do nosso afeto. Além disso, buscamos destacar a sustentabilidade, a valorização dos ingredientes locais e o talento dos nossos chefs, revelando uma cidade inovadora que, ao mesmo tempo, honra suas tradições.”
A presidente da Abrasel-MG reconhece, no entanto, que existem muitos desafios, principalmente em temas como segurança, sinalização turística e treinamento de pessoal.
Destinos gastronômicos
Dois chefs representantes da cozinha belo-horizontina. Os pratos são totalmente diferentes, mas a essência da nossa cultura alimentar está saborosamente preservada. Ambos recebem muitos turistas em seus restaurantes e já participaram de intercâmbios entre as Cidades Criativas.
Um deles é Flávio Trombino, do Xapuri, que participou da candidatura ao título como embaixador. Posto mais que merecido para quem comanda um dos restaurantes mais tradicionais de BH. “Tropeiro você acha em outros lugares, mas o nosso diferencial está no jeitinho de receber, de servir, esse aconchego. Isso está no nosso DNA. Por isso, falo que não é só um prato de comida”, aponta o chef, que esteve em encontros das Cidades Criativas em Santos (sua mãe, Nelsa, nasceu em Cubatão) e Burayda, na Arábia Saudita, maior polo de produção tâmaras do mundo, no meio do deserto.
Segundo Flávio, o movimento no Xapuri acaba sendo um termômetro para avaliar os impactos do título. E ele percebe que o turismo se fortalece cada vez mais na cidade. Diz isso “de carteirinha”, porque o seu restaurante recebe muitas pessoas de fora. Ao lado de outros endereços considerados ícones da cidade, costuma estar no topo da lista de lugares para conhecer e entender a gastronomia local.
Uma informação interessante é que, mesmo com o grande fluxo de turistas, metade dos clientes são moradores da cidade. Sabe por quê? “Se você pede uma dica para um conhecido em São Paulo, ele te passa e você vai sozinho. Aqui não, o mineiro te leva, vai junto, é uma questão cultural.”
Linguiça aberta
Sobre pratos do cardápio que representam o título, Flávio aponta clássicos que nasceram no Xapuri. São muitos, então vamos falar de um exemplo que tem um caso bem engraçado: a linguiça aberta com cebola e pimentão na chapa.
“Quando abrimos o Xapuri, eu era responsável pela praça de carnes. Como o restaurante teve uma ascensão muito rápida, no começo passava muito aperto. Meu pai me xingando para soltar a linguiça rápido e, quanto mais ele me apertava, mais eu me atrapalhava. Aí a linguiça começava a voltar, porque estava mal passada. Resolvi partir e ela ficou pronta muito mais rápido”, conta.
Flávio vê muitos motivos para comemorar, mas reivindica ações urgentes, como em mobilidade urbana. De acordo com o chef, o “apagão” de mão de obra está diretamente relacionado ao transporte público (a qualidade e os horários). “Como queremos ser a Cidade Criatividade da Gastronomia e capital mundial dos botecos se tudo fecha cedo? Essas questões são muito importantes”, alerta.
Algo a mais
Juliana Duarte ainda nem tinha aberto o Cozinha Santo Antônio quando BH se tornou Cidade Criativa da Gastronomia. Mas ela entende que o conceito da casa se conecta com o título. “O restaurante oferece uma mistura de tradição e criação. Parto das raízes mineiras para criar pratos, sempre com algo a mais, uma firula, alguma subversão na forma de fazer”, destaca.
Como exemplo, ela cita o torresmo e o jiló empanado servidos com limão capeta cortado ao meio. Simples, mas com muita identidade, por trazer um ingrediente do nosso quintal. A chef também fala do Maria Cruz (carne serenada, requeijão moreno, mandioca, milho, pequi e pimenta), prato que considera uma síntese da nossa comida, e do Minha Vida de Menina (bacalhau, angu, abóbora, feijão e couve), combinação que, segundo relatos em livro homônimo, era comum em dias de jejum no século 19.
Nos pratos do dia a dia, sempre tem arroz, feijão, carne, legume e verdura, que traduz o jeito de comer do mineiro e chama a atenção de quem não é daqui. “Aqui é o lugar onde as pessoas sabem que sempre tem alguma coisa característica da nossa gastronomia. Então, elas querem trazer quem é de fora para apresentar a comida belo-horizontina”, conta.
Receber bem
Por essas e outras, o restaurante tem um movimento frequente de turistas, muito interessados em conhecer a nossa cozinha. E Juliana não tem dúvida de que o título nos coloca em um roteiro de cidades onde se come bem. Soma-se a isso a hospitalidade, ponto que ela entende ser muito importante para um destino gastronômico. No seu caso, um atendimento cordial e afetuoso, que acolhe os clientes.
A chef esteve no mês passado em Santa Maria da Feira (Portugal), que faz parte da rede de Cidades Criativas. Segundo ela, foi um momento de muito aprendizado e de entender a responsabilidade que é representar a comida da sua cidade – os anfitriões acharam curioso, no feijão-tropeiro, misturar feijão com ovo. Juliana voltou com vontade de falar mais sobre o título e batalhar por melhorias que vão impactar a experiência dos turistas. “Ainda temos um caminho para percorrer, de hospitalidade, serviço, infraestrutura, transporte, mas olho com otimismo, porque as coisas estão acontecendo.”
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O valor da criatividade
Criada em 2004, a Rede de Cidades Criativas da Unesco é um programa internacional que promove o desenvolvimento sustentável por meio da cultura. Os integrantes estão divididos em sete áreas: gastronomia, design, artesanato e artes populares, música, cinema, artes midiáticas e literatura. Atualmente, 14 cidades brasileiras fazem parte desse grupo. Além de Belo Horizonte, Belém (PA), Florianópolis (SC) e Paraty (RJ) representam a gastronomia.
Minha vida de menina
Juliana Duarte – Cozinha Santo Antônio
Ingredientes
- 4 postas de lombo bacalhau Gadus morhua dessalgado;
- 200ml de azeite;
- 200g de cebola cortada em meia lua;
- 8 dentes de alho com casca;
- 4 ramos de tomilho;
- pimenta-do-reino em grão a gosto;
- semente de coentro a gosto;
- raspa de limão capeta;
- 200g de fubá de milho crioulo ou de fubá de moinho;
- 400ml de água;
- 30g de manteiga;
- 4 fatias de 2mm de abóbora pescoço ou manteiga (sem sementes para formar um círculo completo);
- 100g de feijão-preto cozido;
- 1 dente de alho picado;
- 20g de cebola cortada em cubinhos;
- 4 folhas de couve
Modo de fazer
- Prepare uma salmoura com 2 litros de água e 50g de sal.
- Deixe o bacalhau de molho por 2 horas.
- Forre um tabuleiro com as fatias de cebola.
- Esprema bem o bacalhau para retirar o excesso de água e disponha as postas com a pele para cima sobre a cebola.
- Distribua o alho, as ervas e as especiarias.
- Cubra com azeite.
- Pré-aqueça o forno na temperatura mínima (entre 98 e 120 graus).
- Tampe o tabuleiro com papel-alumínio e deixe confitar por 30 minutos ou até as postas começarem a se separar em pétalas.
- Para o angu, dissolva o fubá em água fria.
- Tempere com sal a gosto.
- Leve ao fogo e mexer até que se forme uma casquinha no fundo da panela (de 20 a 30 minutos).
- Finalize com a manteiga.
- Para o feijão, refogue a cebola e o azeite e acrescente os grãos.
- Quando ferver, desligue e espere esfriar.
- Bata o feijão no liquidificador até obter um caldo grossinho.
- Para a couve, aqueça uma frigideira e coloque a folha inteira até que fique crocante.
- Para a abóbora, aqueça um fio de azeite em uma frigideira.
- Quando estiver bem quente, coloque a fatia de abóbora e deixe até dourar.
- Não mexa para que ela fique com as bordas douradas.
- Para a montagem, espalhe o angu no fundo do prato, formando um círculo de cerca de 10cm.
- Coloque a fatia de abóbora em cima do angu.
- Retire a pele do bacalhau e coloque em cima da abóbora.
- Coloque as cebolas sobre a posta com um dente de alho.
- Raspe limão por cima da cebola.
- Coloque a folha de couve ao lado do bacalhau.
- Sirva o caldo de feijão em uma canequinha separada.
Serviço
Xapuri (@xapurirestaurante)
Rua Mandacaru, 260, Trevo
(31) 3496-6198
Cozinha Santo Antônio (@cozinha_santoantonio)
Rua São Domingos do Prata, 453, Santo Antônio
(31) 98218-6427