Em uma cidade onde a mesa de bar é tão sagrada quanto a mesa da cozinha, Belo Horizonte tem alma de boteco. Para fazer um brinde a essa essência, a prefeitura, por meio da Belotur, mergulhou no passado e trouxe à tona 30 joias da boemia belo-horizontina que, há pelo menos três décadas, servem, não só petiscos e bebidas, mas também memórias e amizades inesquecíveis. Mais do que simples fachadas ou balcões, são lugares que traduzem o que é ser um “bar com alma” a cada copo de cerveja gelada.
“O projeto tem como objetivo reconhecer e valorizar estabelecimentos, com pelo menos 30 anos de funcionamento, que contribuíram para a formação da identidade da capital. Eles se destacam por manter, ao longo do tempo, atividades marcadas por autenticidade e relevância para suas comunidades”, informa a Belotur sobre o “Bares com Alma”.
Em meio ao agito do Bairro Funcionários, na Região Centro-Sul, uma fachada amarela com uma placa já desgastada pelo tempo resiste à modernidade e convida os belo-horizontinos a entrar em outro ritmo. Fundado em 1986, o atual Tonel da Pinga funcionava como bar Meadolandes. Foi nessa época que o recém-chegado do interior, Derley Tibúrcio Gonçalves, hoje com 59 anos, encontrou no balcão um apoio. “Entrei nesse ramo por acidente, ou até mesmo por falta de opção. Caí aqui e decidi ficar”, relata.
Posteriormente, em 1996, ele assumiu o ponto, junto ao sócio Márcio, e o rebatizou. “Como sempre foi um boteco e vendia muita cachaça, achávamos que deveria se chamar Barril de Pinga, mas, quando fomos registrar na Junta Comercial, já havia outro estabelecimento com esse nome, então optamos pelo sinônimo, tonel”, explica.
A dupla conduziu o pequeno bar até 2023, quando Márcio teve um problema de saúde e não resistiu. Desde então, Derley se desdobra para tocar o negócio sozinho: recebe, serve, repõe, cobra e ainda supervisiona a cozinha.
Com 36 anos de dedicação ao espaço, o dono conta que já presenciou muitas histórias e criou um vínculo especial com cada cliente fiel. “As pessoas viram nossa família, vêm todo dia e começam a virar amigos. Em fevereiro deste ano, perdi um cliente que morreu aos 105 anos. Ele era professor da Escola de Música da UFMG e sempre frequentava o bar”, conta, emocionado.
Perto de se aposentar
Apesar do reconhecimento e carinho conquistado, o futuro do Tonel da Pinga é incerto. Sem herdeiros e começando a pensar na aposentadoria, Derley sabe que o fechamento será inevitável quando decidir “pendurar o avental”.
“Estou querendo me aposentar, então, foi um brinde estar entre os ‘Bares com Alma’. Mas, quando virei dono, não comprei o bar, o antigo proprietário o alugou para mim e tem uma cláusula no contrato que não me permite vendê-lo. Então, quando eu me cansar, preciso só tirar minha mobília e ir embora”, diz.
Por outro lado, o refúgio ainda está de pé e de braços abertos para receber aqueles que não dispensam um gole de cerveja e um bom tira-gosto. O cardápio, embora simples, reflete a alma de um boteco genuíno. Entre os característicos azulejos azul-bebê, são encontradas 25 marcas de cachaça que dividem espaço com uma estufa de “secos e molhados”, com opções como frango, torresmo, linguiça e salsichão. Aos amantes do “prato cheio”, Derley serve PFs como o bife acebolado com quiabo e angu.
“O bar funciona de segunda a sexta-feira, das 7h às 21h, sábados, domingos e feriados, das 9h às 19h. Aqui é 365 dias por ano”, conclui.
Legado e agilidade
Desde 1977, o Bar do Tatu é um verdadeiro ponto de encontro no coração do Barreiro. Fundado por João Maurício de Souza, o lugar carrega o nome em sua homenagem. Ele foi carinhosamente apelidado de “Tatu” pelos amigos, que enxergavam uma semelhança com o icônico personagem de “Ilha da Fantasia”, programa de televisão da época.
Hoje, sob comando da família, especialmente das filhas Graziele Souza e Viviane Aurora, e do genro Bruno Faleiro, o estabelecimento continua motivado a honrar o legado do patriarca. Por essa razão, participar do “Bares com Alma” é motivo de orgulho para os familiares.
“A sensação é totalmente satisfatória de participar de um projeto que visa destacar a originalidade, a tradição, a história e até mesmo a decoração dos bares. Estamos felizes por nutrir a simbologia do Bar do Tatu”, comemora Graziele.
Aberto de segunda a sexta, das 7h às 22h, e aos sábados, das 7h às 15h, o bar combina pratos fartos e um ambiente acolhedor. “Os carros-chefes do bar são o angu à baiana, que pode ser pedido com costela de boi ou miúdo, o caldo de mocotó e a vaca atolada. Todos têm grande rotatividade”, destaca.
A filha diz que o segredo do sucesso está na dedicação ao público. “Nosso objetivo primordial é manter nossos clientes satisfeitos, por meio da qualidade e agilidade dos nossos pratos, que são servidos fartos e robustos”, promete. Por lá, as bocas do fogão e as panelas estão sempre a postos e, raramente, as pessoas esperam mais de cinco minutos por seus pedidos e são sempre recebidas com simpatia.
Ao olhar para o futuro, Graziele não esconde os planos para uma possível expansão. A ideia é abrir uma nova unidade e atender outras regiões de BH. “Mas a matriz do Bar do Tatu sempre será aqui no coração do Barreiro, onde tudo começou. Seguimos firmes na tentativa de manter todo o legado do meu pai”, pontua.
Os caldos da Cida
Em uma das esquinas do Bairro Floramar, no Norte da cidade, clássicas cadeiras amarelas de plástico dispostas na calçada chamam a atenção de quem passa. É que dali sai um aroma irresistível de caldo de feijão e da canjiquinha com costela. Fundado em 1989, o dono dessa alma é o Bar da Cida.
Nascido da necessidade e determinação de Maria Aparecida da Silva Chagas, a Cida, de 66 anos, o local ganhou popularidade de diversas gerações graças aos caldos, que são servidos todos os dias, e ao ambiente rústico e familiar.
“A ideia veio da necessidade mesmo. A Cida trabalhou em vários empregos até decidir abrir o bar. O nome acabou vindo de seu próprio apelido. Ficamos muito felizes e realizados com o novo título, uma sensação de trabalho sendo bem-feito. Esse prêmio coroou tudo que viemos construindo”, conta o filho, Gabriel Chagas, que ajuda na administração.
O bar já atravessa gerações de moradores locais e visitantes de toda a cidade. “Várias famílias cresceram durante todos esses anos. Antes vinha o pai, que trouxe a namorada, que trouxe o filho e, em alguns casos, já estão trazendo até mesmo os netinhos”, diz Gabriel.
Independentemente da idade, os clientes fazem fila para provar as iguarias de Cida. “As pessoas amam os nossos tradicionais caldos e nossas porções com moela, pescoço e língua. A tilápia frita também tem sido sucesso nos dias mais quentes, além do nosso campeão do Comida di Buteco de 2008, o torresmo”, afirma o filho.
Para “matar a sede”, a caipirinha e aquela cerveja de garrafa trincando são prioridades no bar. “Nós trabalhamos de quarta a sexta, das 18h às 23h30, e aos fins de semana, das 13h às 23h30”, acrescenta Gabriel.
De tudo um pouco
Uma raríssima e autêntica mercearia de bairro ainda sobrevive à pasteurização da cidade no Bairro Pompéia, Região Leste de BH. Na administração, está José Quintino de Souza, de 57 anos, que nasceu praticamente dentro da mercearia da família, a Pérola do Atlântico.
“A mercearia surgiu em 1956. Começou com os meus pais, de Abreu Souza e Maria Zélia Correia. Eles vieram da Ilha da Madeira, parte do arquipélago da Madeira, uma região autônoma de Portugal em frente à costa noroeste de África. Eles a nomearam assim porque o lugar é considerado uma joia do oceano, já que possui um clima tropical perfeito para frutificar todo tipo de alimento”, descreve o filho.
A Pérola do Atlântico ajudou a sustentar os nove filhos do casal. O caçula, Seu Quintino, foi quem herdou a responsabilidade de tocar o negócio, que nasceu 10 anos antes dele. Hoje, uma clientela cativada em quase sete décadas de disciplina comercial ajuda a manter as portas abertas. Seja para beber cerveja ou para comprar frutas e utensílios domésticos, jovens e idosos do bairro passam por ali quase que por hábito.
“Heróis da resistência”. É como o próprio dono se autodenomina, ao falar da raridade de se encontrar mercearias ainda hoje. Ele acredita que a tendência destes lugares é se perder no tempo. “Os grandes vão engolindo os pequenos. Ninguém mais quer ficar no balcão, é quase uma prisão de porta aberta, é desgastante, já que trabalho de domingo a domingo”, alega Seu Quintino.
Simpatia e força de vontade
Por outro lado, sua simpatia e força de vontade transformam o trabalho árduo em prazer. “Aqui é muita brincadeira todo dia. A freguesia é muito boa, alguns já acompanham há anos. Sempre tem alguém que chega e fala 'já prepara a minha cerveja aí' e de vez em sempre aparecem uns pescadores contando umas mentiras”, ri, ao contar.
Na Pérola do Atlântico, Quintino trabalha com todos os tipos de frutas e legumes e serve petiscos fritos aos fins de semana. Na estufa, comidas de boteco como costelinha, chouriço, linguiça, frango frito e bolinho de feijão enchem os olhos dos clientes. “No meio da semana, improviso uma salada fria de palmito com tomates, queijo com azeite e orégano ou salsicha”, acrescenta.
O prato, feito na hora, é um junta-junta de alguns artigos da organizada prateleira, que, inclusive, têm tudo o que se espera de uma vendinha de bairro: produtos de limpeza, utensílios domésticos e um belo hortifrúti.
A mercearia funciona de segunda a sábado, das 7h às 19h, e domingos e feriados, das 7h às 14h, mas é como o próprio Seu Quintino diz: “de saideira em saideira, o horário sempre acaba se estendendo”.
Três gerações
Outra mercearia também mantém sua essência, mesmo com a influência dos shopping centers e grandes supermercados. O que começou em 1963 como uma pequena venda de produtos simples cresceu ao longo dos anos, mantendo o espírito de proximidade com a comunidade do Bairro Santa Cruz, na Região Nordeste. A Mercearia e Bar Zé Correia é um ponto de referência para gerações de moradores, que encontram ali produtos de qualidade, como frios, queijos e até peixe fresco.
O fundador, José Correia, trouxe consigo do interior de Minas Gerais o espírito empreendedor. “Ele começou vendendo pouca coisa, como banana, pinga, queijo e legumes. Era de forma rústica. O pessoal veio da roça, então era muito humilde. O nome foi dado em sua homenagem, mas, no princípio, era 'Bar Mixto Zé Correia', com x mesmo, como se escrevia na época”, relembra o filho mais velho, Zezinho.
A simplicidade é uma marca registrada: desde a placa na fachada escrita à mão com os dizeres “Temos peixe” até o balcão de madeira, que serve tanto para atendimento quanto para a troca de histórias com os clientes. “Nós trabalhamos com nossa família para servir a sua.” Essa é a alma do estabelecimento da família Correia, que já passou por três gerações. Além de Zezinho, seus irmãos Edvar e Dércio fazem parte do time.
A mercearia também é famosa por seus tira-gostos simples e saborosos. Entre as opções mais pedidas, os queijos com presunto, o salaminho e o frango frito viraram tradição. A rotina do bar é intensa. Funcionando de segunda a segunda, das 9h às 22h, só fecha mais cedo aos domingos e feriados.
Legado duradouro
O “Bares com Alma”, projeto da Prefeitura de Belo Horizonte, em parceria com o Sebrae Minas, nasceu como um marco dos cinco anos da conquista do título de Cidade Criativa da Gastronomia, concedido pela Unesco em 31 de outubro de 2019. A inspiração veio do programa argentino “Bares Notáveis”, política instituída pelo Ministério da Cultura da Argentina que busca valorizar e apoiar bares e cafés notáveis de Buenos Aires, reconhecidos pela sua antiguidade, cultura e relevância social.
Outras iniciativas similares espalhados pelo mundo foram usadas como referência para a proposta da ação em BH, como o “Bares são Patrimônio”, de Santiago (Chile); “Lojas com História”, em Lisboa (Portugal); “Bares Tombados”, no Rio de Janeiro (RJ) e o “Prêmio Bairro da Cultura”, em Londres (Inglaterra).
A curadoria foi feita pelo designer e pesquisador Rafael Quick, também responsável pelo movimento de revitalização do Mercado Novo, no Centro da capital, com a Cervejaria Viela e o Cozinha Tupis.
Segundo a Belotur, a seleção ainda passou por um júri composto por representantes da Secretaria Municipal de Cultura; da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico; do Sebrae Minas; da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL); da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel); do Conselho de Desenvolvimento Econômico, Sustentável e Estratégico (Codese-BH); do Sindibebidas; do Senac em Minas e da Frente da Gastronomia Mineira. Também estiveram envolvidos jornalistas e influenciadores especializados, além de lideranças comunitárias.
Para que serve esse título? A ideia é criar uma rede de colaboração e interação entre os bares e um apoio popular que estimule a criação de políticas públicas e legislações que ouçam suas demandas. “Esses estabelecimentos são identificados por uma sinalização específica, constituindo a primeira fase da rede de bares históricos da cidade”, garante a PBH.
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Ainda de acordo com a Belotur, os 30 “Bares com Alma” dão início ao projeto que promete deixar um legado duradouro. “A ideia é que mais estabelecimentos sejam contemplados. Neste primeiro momento, funcionou como um piloto. Para as próximas etapas, será necessário implementar novos processos de curadoria. Ainda não há frequência e datas definidas para o futuro”, informa.
Serviço
Tonel da Pinga
Rua Sergipe, 129 - Funcionários
(31) 3226-8716
Bar do Tatu (@bardotatu_rei_do_anguabaiana)
Rua Des. Ribeiro da Luz, 135 - Barreiro
(31) 3384-3266
Bar da Cida (@bardacida)
Rua Numa Nogueira, 287 - Floramar
(31) 3434-8715
Pérola do Atlântico (@perola.do.atlantico)
Rua Iara, 300 - Pompeia
(31) 98248-1994
Mercearia Zé Correia (@zecorreiamerceariaebar)
Rua São Leopoldo, 100 - Cachoeirinha
(31) 3423-2989
*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino