Antônio Augusto Anastasia, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) -  (crédito: reprodução)

Antônio Augusto Anastasia, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU)

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Ele dispensa apresentações por ser homem público de largo espectro e professor de várias gerações. Dotado de rara qualificação, dono de biografia invejável, Antônio Augusto Anastasia carrega um punhado de ex no volumoso currículo. Todos em postos a bem do serviço público. Na sua opinião, servir à administração pública é antes de tudo um sacerdócio, verdadeira vocação. Fiquemos por ora com seu último cargo: o de ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). Ao longo dessa conversa, o mineiro sexagenário, com disposição invejável, atleticano doente, o que é pleonasmo, se mostra cada vez mais apaixonado por Minas Gerais, agora à distância. Sua leitura nunca está em dia, mas ultimamente deliciou-se com o livro “Os Náufragos do Wager”, de David Grann, uma história de motim e assassinato. E curtiu à beça os três capítulos do seriado "A bilionária, o mordomo e o namorado", na Netflix.

 

Conte-nos um pouco de sua trajetória no direito antes de embrenhar-se pela vida pública.


Na verdade fiz a Faculdade de Direito da UFMG. Me sinto devedor com a instituição. A minha vida profissional foi baseada lá. Meus relacionamentos profissionais, a inspiração e o apoio, que tive dos professores na indicação de diversas funções. A dedicação e a vocação para o serviço público tiveram um ambiente favorável. No meu caso, entrei na faculdade cogitando fazer a magistratura, mas gostei tanto do direito público, que acabei enveredando por essa área da administração pública. A formação em direito exige o mestrado. Fiz o administrativo e praticamente não advoguei. Tive participação ativa na vida estudantil, no Centro Acadêmico Afonso Pena, como também no Departamento de Assistência Judiciária, participando da vida universitária com os alunos. Sempre digo: o melhor período de nossas vidas é o da faculdade. Nunca mais se repete. Tive a honra de receber o prêmio, o que muito me orgulha, medalha Barão do Rio Branco de melhor aluno. Isso me estimulou demais. Tenho um pleito de gratidão e de dívida no sentido social e intelectual com a faculdade que me formou. Tive a honra de ser professor durante muitos anos da Faculdade de Direito da UFMG, de 1993 até o ano passado, quando fui nomeado para o TCU.

 

Fale um pouco de seu guru, doutor Paulo Neves de Carvalho.


É o chamado tipo inesquecível de minha vida. Uma pessoa que inspirou não só a mim, mas a uma legião de seguidores, totalmente focado no ensino, na educação e no espírito público, de ensinar o que é a verdadeira administração pública. Formou escola imensa de discípulos. Eu me incluo nela, entre professores, advogados e servidores, defendendo apenas teses dele, quais sejam: a luta pelo interesse público e os princípios da administração. Ele foi uma aula viva para mim, que além de ser professor, tive a oportunidade de acompanhá-lo no seu cotidiano como advogado, como consultor de municípios, em palestras, nas muitas viagens. Fui uma espécie de assistente informal do professor Paulo Neves. Na minha gestão no Palácio da Liberdade tive a satisfação e alegria de atribuir a ele o nome da Escola de Governo, cujos conceito e origem tiveram sua concepção. Uma inteligência acima da média. Uma facilidade de trato, uma empatia. Era pessoa vocacionada para uma coisa que gosto muito: resolver problema. Não adianta apenas discorrer sobre teorias. Estou com ele! Administração pública exige resolver o assunto.



Seu primeiro cargo foi de secretário-adjunto do Planejamento de Minas. Foi nesse momento que descobriu a vocação para a administração pública?


Antes disso, eu fui técnico da Fundação João Pinheiro. Tive a oportunidade rara de também ser assessor pessoal, antes do governo Hélio Garcia, do relator da Constituinte Mineira, deputado Bonifácio Mourão. Trabalho intenso, com o corpo técnico da Assembleia Legislativa, de altíssima qualificação. Menciono ainda a professora Maria Coeli Simões Pires, minha amiga a vida inteira, minha secretária da Casa Civil. Essa bagagem me ajudou no governo Hélio Garcia, porque a ideia era implantar a Constituição Mineira. E assim o fizemos.

 

O senhor tem uma carreira exemplar, tendo passado por secretaria de estado, secretaria executiva de ministério, vice-governador e governador de Minas, senador e agora ministro do TCU. É tido como disciplinado e organizado. Estas duas características diferenciam o administrador público?


Temos que lembrar que no governo Fernando Henrique fui para Brasília com Paulo Paiva. Trabalhei como secretário geral nos ministérios do Trabalho e da Justiça. Quando voltei a Minas foi para coordenar o plano de governo do Aécio Neves no primeiro mandato. Fui secretário do Planejamento, depois vice-governador e governador. Essas características ajudam o administrador público. O que é atividade de administração? Tomar conta de algo que não é seu. O privado toma conta de uma coisa privada e o público toma conta do que é de todos nós. Tem que saber se autotutelar. Tem que ser organizado, ser pontual, cortês, não se perder nos papéis, na confusão do dia a dia. Essa disciplina sempre me ajudou muito. Não só na academia como profissionalmente. Tive sempre boa memória, mas mantenho tudo anotado, acompanho, registro, comandando grandes equipes, mas fazendo com cortesia e jeito as cobranças necessárias. No Brasil, aí não é crítica, é constatação, nossa sociedade como um todo é menos organizada no dia a dia. O perfil latino, ao contrário dos perfis escandinavo ou nórdico ou mesmo oriental, que são focados, é disperso. Isso na minha visão acaba atrapalhando um pouco a administração e cito como exemplo a pontualidade. Basta uma comparação entre o Japão e o Brasil em termos de pontualidade nas coisas da administração pública.

 

 

É um orgulho dirigir um estado com as tradições de Minas?


Para um mineiro sem dúvida nenhuma não há orgulho maior. Ainda mais um mineiro como eu, que prezo e honro as tradições de Minas, suas histórias. Tenho satisfação em conhecer sua história política, ler sobre a formação de seus municípios, a vida das grandes figuras mineiras, as características dos governos da República Velha, Bueno Brandão, Wenceslau Brás, Melo Vianna, Antônio Carlos Andrada e outros grandes e gigantes, além dos modernos de Benedito Valadares para cá. Isso é importante: prestigiarmos a nossa história. Por isso, no meu governo eu quis restaurar sempre os prédios históricos. Governar seu estado para qualquer brasileiro é relevante e Minas, claro, para nós tem um valor ainda maior.

 

Elaborar leis como senador ou executá-las como governador?


Ambas são funções nobres e importantes. Ambas difíceis e com responsabilidade. Claro que ao governar a responsabilidade direta é maior, porque a sua ação impacta ali no momento, de imediato. Enquanto elaborar uma lei é algo abstrato, mais genérico, também com responsabilidade imensa. Tive as duas oportunidades como senador e governador. Em termos de carga e responsabilidade, governar o Poder Executivo é penoso, dá mais trabalho. A vantagem é que no Poder Executivo você vê a realização rápida. No Legislativo, tudo é lento por natureza e deve ser, porque ninguém deve aprovar lei de modo açodado. Isso gera uma certa aflição.

 

O senhor foi um governador bem avaliado, entusiasta da gestão baseada na meritocracia, que ajudou a implantar no estado. Esse tipo de gestão consegue sobreviver aos interesses políticos?


Isso é o futuro, mas já devia ser o presente. Não é ainda na totalidade. Em algumas carreiras sim, mas na maioria, não. No Brasil, estamos atrasados em termos de carreiras profissionais na administração. A meritocracia, que considero imprescindível para o desenvolvimento do Brasil, tem que ser mais reforçada. No Brasil não gostamos da palavra burocracia, que, a exemplo da palavra colesterol, cabe em dois sentidos: tem o bom e o ruim. A burocracia boa é fundamental. Aquela que organiza o estado, quem faz o quê, protege o servidor, protege o cidadão, dá ordem às coisas. O excesso, o controle demasiado, a demora e a lentidão levam a uma burocracia ruim. Precisamos de fato de ter mais planejamento, disciplina, para oferecermos políticas públicas eficientes à população em todos os níveis.

 

Como senador, o senhor foi relator de diversos projetos de leis importantes e presidiu comissões complexas. O que relembra como mais marcante em seu mandato?


Fiquei sete anos no Senado, quase um mandato inteiro, e foi intenso. Fizeram um levantamento na Casa e, nos últimos anos, fui o senador com mais relatoria de projetos aprovados, o que muito me honra, embora este seja um trabalho coletivo, com outros colegas. Ninguém é senador sozinho. Fui relator de temas complexos a começar do impeachment da presidente Dilma Rousseff, uma enorme responsabilidade, por ser assunto técnico. Outros temas: o orçamento de guerra no tempo da pandemia, de altíssima complexidade; a nova lei de licitação, agora vigente; sou autor da chamada Nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que versa sobre segurança jurídica para os gestores, que me dá muita honra. Ajudou por demais a segurança jurídica na administração pública brasileira.

 

O Brasil tem medo de novas ideias?


É algo interessante. Não podemos ter preconceitos contra ideias. Sempre defendi isso. Mesmo que as ideias não sejam boas, devem ser debatidas. O que faz uma sociedade plural, aberta, que tem divergências e tem de ter mesmo, nos últimos anos, pelo que se observar. Eu me afastei do debate político, não estou mais dentro da arena. Ainda há muito preconceito, muitas ideias ultrapassadas. A criatividade é fundamental para tudo, inclusive na administração pública, tanto que quando há excesso de controle e burocracia, isso inibe a criatividade. Não é bom.



Atualmente na alta Corte de contas, quais ensinamentos angariados como governador e senador forjaram sua atuação no TCU?


Tenho o privilégio de ter chegado maduro ao TCU, com 60 anos, e ao mesmo tempo com experiência no Executivo e Legislativo. A sensibilidade é importante nas funções do TCU. Por que motivo? Aqui discute-se questões da União, estados e municípios, que envolvem a responsabilidade do gestor. Nessa lei que fui autor, a LINDB, tem lá um artigo que diz quando o gestor público for julgado pelos seus atos deve ser encontrada a circunstância da sua decisão, o ambiente que levou-o a tomar tal medida. Nisso posso contribuir. Tenho feito isso aqui no tribunal para mostrar o seguinte: não podemos isolar o controle da execução. O controle deve ajudar a execução. O controle não é só mais uma questão de forma, procedimento, mas de resultados. Avançarmos para resolvermos os problemas. Paulo Neves nos ensinava há 40 anos atrás o que aplicamos hoje no tribunal. O TCU é menos punitivista e mais orientador. Tudo aquilo que envolve dolo, má fé, crime, é claro, precisa ser punido com rigor. A maioria dos equívocos é consequência de erros. Repito o ex-governador Hélio Garcia: só não erra quem não faz. Se não faz nada não erra. Se faz alguma coisa é claro que tem maior chance de errar. Este um erro que não é doloso. Não tem a má fé. Não pode ser punido por isso, mas orientado.

 

Por que os órgãos de controle parecem agir tardiamente, depois do delito acontecido, agem depois de virar notícia?


Nós temos processos que se desdobram sobre fatos do passado. São as chamadas tomadas de contas especiais, cujo fato já aconteceu, e até punido se houve desvio, mas precisa ser apurado, mas temos também ação concomitante, porque avaliamos as políticas públicas, as representações em processos de licitação, as cautelares, suspendemos licitações, no dia a dia. Criamos agora algo novo que é a Secretaria do Consenso, no sentido de estimular as partes no estabelecimento de acordos em razão de temas que ainda não estão encerrados. O TCU evoluiu muito neste aspecto, para otimizar o máximo a sua estrutura, em prol de bons resultados na administração pública.

 

O gestor público não deveria ser premiado pelas boas contas apresentadas?


A maioria é correta. Existem prêmios de instituições privadas nesse sentido, aplausos para aqueles que agem corretamente dentro da legislação. As pessoas acabam ficando com percepções ruins, porque os fatos negativos é que são notícia, embora minoritários.

 

Muitos afirmam que Minas tem perdido muito em termos de representação nacional nos últimos anos. A que o Sr. atribui o fato?


Gosto do prestígio de Minas na Federação. Somos o segundo estado em população, orçamento, eleitorado, segunda bancada, proeminência na República. De fato, nos últimos anos tem havido aí uma diminuição. Felizmente neste momento temos o presidente do Congresso, a figura aplaudida e reconhecida de Rodrigo Pacheco. No Governo Federal, a presença do ministro Alexandre Silveira, com dedicação e eficiência, mas um ministro só em quase 40 ministérios. Acho que Minas mereceria participação maior. Nos tribunais, aqui mesmo no TCU, sou o primeiro de Minas, depois de mais de 20 anos. O último mineiro foi Humberto Souto, que se aposentou no início do século. Então fica sempre este sentimento. Nós temos um capital humano muito bom, de excepcional valor. Onde você quer que vá no Brasil ou no exterior tem mineiro se destacando. Na natureza administrativa e política devemos ousar mais e participar mais.


Qual conselho o professor Anastasia daria a seus alunos?


Depende da vocação da pessoa. Ela sabe que se for para o setor público, para o quadro funcional do estado ou para a política de modo lícito não vai enriquecer. Fui governador, ocupei todos esses cargos, e só tenho um imóvel onde moro, em BH. Levo vida tranquila, normal, sem exageros. Então veja bem: não vai ficar rico. Agora se quiser fazer dinheiro tem que ir para o setor privado, que corre risco, etc. Depende da vocação. Formei muitos alunos que se dedicam à administração pública. A escola da Fundação João Pinheiro, que nós fundamos, tem este objetivo. Depende, portanto, do perfil da pessoa, do que ela gosta, qual sua identidade, se gosta de fato de servir ou de resultados, o que também é legítimo, e ir para a carreira privada e fazer o que gosta.