“Tenho por insustentável a tese da recorrente, de que atuaria apenas como intermediária”. A citação, extraída do voto do Ministro Mauro Campbell Marques, a quem coube a relatoria do REsp n. 2.093.778/PR, bem sintetiza o entendimento que veio a ser adotado à unanimidade pelos integrantes da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto à realidade da atividade econômica praticada pela Buser, ao explorar o serviço de fretamento eventual sob a modalidade que vem denominando de “fretamento colaborativo”.
Nesse paradigmático julgamento, pela primeira vez, um órgão colegiado do STJ adentrou o mérito da controvérsia envolvendo a (in)compatibilidade do “fretamento colaborativo” com as normas jurídicas que definem as características, requisitos e limitações atinentes à prestação do serviço de fretamento eventual. Para a Segunda Turma, o contraste entre a narrativa da empresa e a realidade de sua prática comercial torna mais do que evidente que o papel da Buser não se limita ao de mera intermediadora do fretamento.
Efetivamente, está a um clique de distância de qualquer usuário a constatação de que a Buser se apresenta como verdadeira empresa prestadora do serviço regular de transporte coletivo rodoviário (embora, na verdade, não o seja). Seja no site ou no app, sequer é dado aos passageiros conhecer o nome do “fretador parceiro” que os transportará até o destino final. Além disso, a usual caracterização dos veículos utilizados pela empresa indica, claramente, quem é o agente econômico que, de fato, está a explorar a atividade.
Enquanto reduz sua participação na dinâmica do “fretamento colaborativo” à posição de simples intermediadora, a Buser busca se esquivar, de um lado, das (frequentes) demandas indenizatórias propostas por usuários vítimas de acidentes rodoviários ou de outros prejuízos; e, de outro, pretende furtar-se à ação sancionadora dos órgãos incumbidos de fiscalizar a higidez do serviço de transporte coletivo, como a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e o Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DER/MG).
Afinal, como seria apenas uma “plataforma digital”, nenhuma responsabilidade teria sobre as infrações decorrentes, sobretudo, da exploração do fretamento eventual em desconformidade com as normas regulatórias incidentes sobre a atividade (notadamente, o requisito do circuito fechado). Aqui, os riscos e ônus da prestação do serviço sem observância das balizas legais e regulatórias recaem apenas sobre as empresas que a Buser afirma serem suas “parceiras”. Esse “novo” modelo de negócios, de fato, chama a atenção por sua vantajosidade: a plataforma digital oferece, comercializa e se remunera da exploração do fretamento; tenta se eximir, judicialmente, da responsabilidade pelos danos sofridos por seus usuários; e não assume os riscos da prestação da atividade em descompasso com a lei, porque seu papel seria apenas “conectar” passageiros e fretadores.
Entretanto, embora seja possível mudar o nome dado às coisas, não se pode alterar a sua própria natureza. Assim, dizer que não se trata de bilhetes de passagem, mas de “rateio de vagas”; que não se cuida de subcontratação do serviço de transporte coletivo, mas de “parceria com fretadores”; e que a Buser não é uma empresa que explora ilegalmente o serviço de fretamento eventual, senão mera “plataforma de intermediação”, pode até ser uma ideia engenhosa, mas a narrativa – enfeitada pelos predicados da inovação, da disrupção e da liberdade – não é capaz de mudar a real natureza do “fretamento colaborativo”.
De fato, como entendeu o STJ, cuida-se de modo ilegal de exploração do fretamento eventual, porque a sua prestação se dá nos moldes do transporte regular, produzindo graves repercussões sobre a sistemática do serviço público de transporte coletivo – que, como se sabe, ostenta natureza de direito fundamental social –, essencial ao atendimento de milhões de cidadãos brasileiros (sobretudo aqueles que habitam em localidades mais afastadas dos grandes centros urbanos e de conhecidas rotas turísticas, porque, nesses locais, a única opção é o serviço prestado pelas empresas que operam o transporte regular).
É que, ao balizar suas operações comerciais pela lógica econômica de maximização dos lucros – inerente ao mercado de livre concorrência e iniciativa –, e em se sujeitando ao regime jurídico de direito privado, a Buser direciona o oferecimento de viagens aos itinerários mais procurados pelos passageiros (mais rentáveis, portanto). Faz isso, contudo, em aberta inobservância do requisito do circuito fechado, que impõe o retorno do veículo, com o mesmo grupo de passageiros, ao local de partida.
Ao assim proceder, equipara-se (em termos operacionais, mas não jurídicos) às empresas que receberam do Estado a incumbência de prestar o serviço público de transporte coletivo. Absorve, desse modo, importante contingente dos usuários do serviço regular, comprometendo gravemente o equilíbrio que permite às empresas delegatárias do serviço público manter sua operação – independentemente de dia, horário ou quantidade de assentos preenchidos – em itinerários que atendem milhões de passageiros residentes em localidades que jamais despertarão o interesse econômico da Buser.
Em boa hora, portanto, o entendimento da Segunda Turma do STJ, a ser observado pelos demais tribunais do país, na tutela de um direito fundamental, de um lado, e no controle do “abuso das vantagens decorrentes da inovação tecnológica”, de outro, ainda nos termos do voto condutor do acórdão unânime prolatado pela Segunda Turma do STJ.