Afrânio Vilela
Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
O entrevistado da 6ª edição do D&J Minas, ministro Afrânio Vilela, chegou ao Superior Tribunal de Justiça no final de 2023. Ele é o mais recente mineiro empossado na instituição. Durante o périplo para conquistar o posto, o presidente Lula, que nomeou-o, chegou a comentar com uns e outros que Vilela era uma unanimidade, tal a quantidade de lideranças que intercedera a seu favor. Obteve, do pleno do STJ, 26 votos dos 30 possíveis para integrar a lista quádrupla para preenchimento das vagas deixadas pelos ministros Jorge Mussi e Paulo de Tarso Sanseverino. De sua Ibiá, a Terra das Cabeceiras Altas, como gosta de dizer, onde atuou como menor aprendiz, até chegar ao chamado Tribunal da Cidadania, foi advogado, procurador municipal e exerceu a magistratura por 35 anos, 18 dos quais como desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Como marido, não esconde o amor e a absoluta afinidade com sua inseparável Gisela, que foi quem o incentivou a ingressar na magistratura. Pai atento, busca na família seu porto seguro. Este mineiro típico tem na lhaneza e na fidalguia duas de suas características principais. Como magistrado, é entusiasta do uso da inteligência artificial e incentivador das autocomposições como meio hábil para reduzir os litígios.
O Sr. é natural de Ibiá, município de aproximadamente 25 mil habitantes na mesorregião do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Ao completar seu centenário, no ano passado, Ibiá ganhou de presente um filho seu chegar a ministro do STJ. Quais os costumes e características da infância e juventude no interior mineiro contribuíram para essa caminhada e na formação de sua personalidade?
Ibiá é a Terra das Cabeceiras Altas, onde tive uma infância feliz com futebol, nado e pesca no rio, e responsabilidade. Aos 12 anos, cuidava dos jardins do Colégio São José em troca de aulas de datilografia. Dos 14 aos 17, fui menor aprendiz no serviço fazendário e contábil. Aos 17, deixei Ibiá para estudar na UFU e sou grato a Uberlândia por me acolher como um filho. Tive excelentes professores em toda minha formação, sobretudo no ensino público, além do apoio rigoroso da minha família, o que me aculturou. Minas Gerais, com suas regiões fronteiriças, teve grandes nomes no STJ. A indicação do meu nome ao Tribunal no último ano uniu forças administrativas e políticas de Minas em torno da indicação de um representante do Estado. Acredito que a tradição mineira na aplicação do direito é importante para um tribunal voltado à uniformização da interpretação da lei.
Formou-se em direito pela Universidade Federal de Uberlândia, em 1985, e exerceu a advocacia de 1985 a 1989, tendo sido advogado dos antigos Bemge, Credireal e Minascaixa, além de procurador de Ibiá. Hoje, por levantamento do censo da OAB, temos mais de 1.3 milhão de advogados no país. Como o Sr. enxerga o exercício da advocacia atualmente se comparado com a época em que militou?
O direito convocou-me para a advocacia como passagem à magistratura. A família Vilela tinha uma ação contra o estado de Minas Gerais desde 1951. Foram 90 anos esperando por justiça. Trabalhei junto com minha esposa nessa ação. Fui advogado de causas complexas no Tribunal do Júri, cujas sessões acompanhava desde a infância. A experiência na área da fazenda municipal, na contabilidade do município e no Banerj, contribuiu para a minha formação como profissional do direito. Advogar é desafiador, mas hoje os profissionais estão se especializando cada vez mais. Nos anos 80, a advocacia dependia de processos manuais e documentos físicos, com comunicação feita por telefone e correspondência. A tecnologia revolucionou a profissão. O advogado é essencial à justiça.
O Sr. ingressou na magistratura em 1989 e, em 2005, foi promovido a desembargador do TJMG. São 35 anos de magistratura, 18 dos quais como desembargador. Conte-nos um pouco de sua trajetória até chegar a ministro do STJ em 2023.
Foi minha esposa, Gisela, que me incentivou a fazer o concurso da magistratura. No início da minha carreira fui juiz em Resende Costa, uma cidade culta, ordeira e religiosa. Depois em São Joao del-Rei, Entre Rios, Conselheiro Lafayette e Bom Sucesso, uma terra querida, e em Contagem. Atuei nos Juizados Especiais de Belo Horizonte. Depois, tive a felicidade de suceder meu querido professor, o juiz Ernani Fidelis, na 2ª Vara de Fazenda Pública, quando ele foi promovido ao Tribunal de Alçada. Em 2003, fui promovido à Alçada e ao TJMG em 2005, tomando assento na seara de Direito Público. Sempre admirei o formato técnico, objetivo e efetivo de julgamento do STJ. Integrei a lista de candidatos à vaga de ministro em 2013 e 2016, sem êxito.
Nesse período recebi muito apoio dos membros mineiros daquela Alta Corte. Não pensava mais em integrar o STJ, quando houve a aposentadoria do ministro Mussi e o lamentável passamento do ministro Sanseverino. Dessa feita, o pleno do STJ concedeu-me a honra de integrar a lista com 26 dos 30 votos possíveis. Recebi honrado a indicação feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Uma alegria para mim e uma jornada que faço em nome do Judiciário Mineiro e do estado de Minas Gerais.
Os levantamentos do Conselho Nacional de Justiça mostram que, atualmente, existem mais de 82 milhões de processos judicializados no país. Como o Sr. enxerga as medidas autocompositivas e a utilização de precedentes como instrumentos para se reduzir esse número? A judicialização é cultural no Brasil?
A judicialização representa a confiança do cidadão no Poder Judiciário. O acesso à justiça é garantido pela Constituição, sem custos para os hipossuficientes. Aprendi a importância da conciliação quando fui monitor na UFU e vi a importância da autocomposição no projeto de conciliação desenvolvido, anos depois, nas comunidades de Belo Horizonte e entorno. A igreja cedia o espaço e comunicava aos moradores sobre as audiências. Um desembargador e eu comparecíamos toda semana para mediar os acordos. Votos de casamento eram renovados, amores revividos e famílias reconciliadas. Um caso me marcou: um pai, demandado por alimentos, ofereceu aos filhos o que podia, um pacote de 5 quilos de arroz por mês. A mãe aceitou, desde que acompanhado de outro tanto de feijão. Senti o que era a carência. Sempre enalteci o papel da conciliação. Integrei a primeira turma julgadora dos Juizados Especiais a funcionar no Brasil e auxiliei na estruturação dos Juizados Especiais Criminais. Enquanto desembargador e primeiro vice-presidente, o TJMG intermediou com o estado a conciliação fundiária em benefício dos moradores do Conjunto Izidora, com a qual mais de 30 mil pessoas receberam a legitimação da posse. Também intervimos através do CEJUSC quando do rompimento da barragem de Brumadinho. Essa atuação ecoou na recomposição dos danos. Há instrumentos efetivos no CPC/15 para fazer frente ao grande número de feitos semelhantes, que podem gerar resultados mais satisfatórios se aliados ao uso da tecnologia. Esses instrumentos se relevam em uma estrutura de pirâmide. O juiz na comarca ocupa a base e tem a possibilidade de julgar conjuntamente ações com pedidos idênticos e mesma causa de pedir. Nos Tribunais Estaduais e Regionais Federais, as massas processuais podem ser solucionadas através do IRDR e as divergências por meio do IAC. Nos tribunais superiores, as teses definidas no recurso repetitivo, na repercussão geral e as súmulas são de cumprimento obrigatório. Isso possibilita a atuação isonômica do Judiciário nacional.
Como o Sr. enxerga a utilização de soluções tecnológicas, como a inteligência artificial, na solução de conflitos e para se buscar maior celeridade dos processos judiciais?
Sou entusiasta do uso da inteligência artificial para a melhoria da gestão judiciária. É importante pensar o Judiciário segundo premissas de gestão, compreendendo o sistema como um todo, o que significa criar condições para produzir mais e melhor em menos tempo e com menos custo; promover a separação de dados conforme sua seara de solução, a simplicidade e a objetividade. O juiz não deve ser apenas presidente do processo, mas um gestor eficaz, identificando e solucionando problemas para garantir celeridade, isonomia e segurança jurídica. Precisamos nos preparar para as demandas que virão com o novo Código Civil, como a regulamentação dos direitos da pessoa no ambiente digital, o patrimônio e a herança digital. Mudanças como essas exigem a modernização do Judiciário, a exemplo do que têm feito os Centros de Inteligência dos tribunais, que identificam e monitoram situações e ações inovadoras. A inteligência artificial é um instrumento de grande relevância para operacionalizar as funções administrativas nos órgãos do Poder Judiciário.
Como ministro, o Sr. ocupa a vaga do saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino, falecido em abril de 2023. E substituiu a também mineira, ministra Assusete Magalhães, na presidência da 2ª Turma do STJ. Qual o legado a ministra Assusete deixou?
Permita-me dizer que não é possível substituir esses dois grandes nomes da magistratura nacional. O ministro Sanseverino e a ministra Assusete marcaram o direito brasileiro com seu vasto e estimado repertório jurisprudencial. Além de grande jurista, o ministro Sanseverino foi um exemplo de cidadão e magistrado, culto, competente, sério e equilibrado, e um amigo que a vida me proporcionou. O destino determinou que eu viesse a ocupar a sua cadeira no STJ, o que é para mim uma grande responsabilidade. A ministra Assusete, mineira do Serro, possui uma história inigualável, e sua atuação permitiu a construção de decisões que afirmaram a cidadania para muitos brasileiros. É uma mulher de crença e de fé, firme de propósitos e leal à sua consciência. Suas lições de julgamento isento, justo e voltado para o social são a marca da sua carreira.
Um de seus colegas de 2ª Turma é o ministro Mauro Campbell Marques, que assume a Corregedoria Nacional de Justiça a partir de setembro. O que, na visão do Sr., o Judiciário pode esperar da Corregedoria Nacional sob a batuta do ministro Mauro Campbell?
Continuo a pensar que ser magistrado é ouvir os clamores das partes e da sociedade na busca dos seus direitos. Ao chegar ao STJ recebi o convite para integrar a 2ª Turma e a 1ª Seção, responsável pela consolidação da jurisprudência nacional em Direito Público. A par de ser juiz há mais de 35 anos, tive receio. Encontrei em meus pares, ministro Francisco Falcão, ministra Assusete Magalhães, ministro Herman Benjamin e ministro Mauro Campbell Marques, verdadeiro porto seguro. Todos mostraram solidariedade e confiança quando passei a presidir a turma. Sou grato a todos, inclusive pelo apoio quando integrei a lista tríplice. A Corregedoria Nacional de Justiça, missão de relevância constitucional, estará bem alocada nos ombros do ministro Mauro, um grande magistrado e excelente administrador, forjado e talhado no cerne amazônico. Seu preparo técnico e jurídico é notável. Podemos esperar uma atuação firme, com ênfase no papel social da magistratura e atenção à realidade dos juízes e das comarcas, com o rigor e a serenidade que lhe são peculiares. Fará uma grande gestão.
Em setembro tomam posse, também, outro seu colega de 2ª Turma, o ministro Herman Benjamin, como presidente do STJ e o ministro Luiz Felipe Salomão como vice, ambos muito experientes. Qual a expectativa do Sr. para o perfil e a postura do Superior Tribunal nessa nova gestão?
Tenho a honra de presidir uma turma de portentosos juízes, de conhecimento técnico e experiência inigualáveis, junto com a felicidade de ser amigo de todos. O ministro Herman será um grande presidente para o STJ. Integrei a comitiva de intercâmbio com o Judiciário da China presidida por ele e pude testemunhar o quanto é admirado como doutrinador de Direito Público, em especial o Direito Ambiental, e pela judicatura. Respeitabilíssimo! Na jurisdição, o ministro Herman é daqueles magistrados que, durante os julgamentos, esgota a si e a temática do recurso. Seus votos sãos profundos, completos e de fácil compreensão. O ministro Salomão tem reconhecida capacidade técnica e fez uma gestão histórica à frente da Corregedoria de Justiça, de modo que podemos esperar o mesmo comprometimento e dedicação ao Poder Judiciário. A expectativa com essa nova gestão do STJ é a implementação do filtro da relevância, que posicionará o STJ como um tribunal vocacionado para o julgamento de coletividades, continuando a caminhada constitucional de um Judiciário integrado aos direitos do povo.