Mineiro de Juiz de Fora, o entrevistado do D&J Minas, nesta 7ª edição, ministro Rogério Schietti é unanimidade entre seus pares do Superior Tribunal de Justiça, em termos de conhecimento técnico na ciência do Direito Penal. Precoce, ele iniciou sua vida profissional aos 14 anos. Aos 24 anos já havia sido aprovado em concurso para o Ministério Público. Reservado, cordato, estudioso, Schietti, como é tratado, completa nesse mês de agosto 11 anos de STJ. A infância em Brasília, o aprendizado como “menor estagiário” e “caixa” no Banco do Brasil, até se tornar uma das referências do Direito Penal, o ministro Rogério Schietti aborda, nessa entrevista, temas complexos da realidade brasileira, como a violência urbana, a população carcerária, a profusão de cursos de direito e a qualidade do ensino, o relaxamento da lei das drogas e até fala sobre o futebol e a sua paixão incontida pelo estrelado time do Cruzeiro.

O Sr. é mineiro de Juiz de Fora, mas reside em Brasília desde os quatro anos. Por que a mudança? O Sr. manteve laços com seu estado de origem e a cidade natal? Como foi a sua infância e a juventude na capital federal, então recém inaugurada?
Embora eu tenha muito orgulho de ser mineiro, fato é que todos os meus parentes, paternos e maternos, são de outros estados, a maioria de São Paulo. Meu pai era representante de vendas de uma grande empresa da área automobilística e foi designado para a região de Juiz de Fora, onde nasci. Porém, com 4 anos de idade meus pais e eu nos mudamos para Brasília, onde resido até hoje. Eu me recordo que Brasília tinha muita terra, pois estava ainda em processo de urbanização. Existiam poucas opções de lazer, o comércio era incipiente, a vida era mais pacata. Mas foi uma infância e adolescência como a de qualquer garoto habitante de uma cidade relativamente grande.


Antes de se formar em Direito o Sr. foi “menor estagiário”, “escriturário” e “caixa” no Banco do Brasil. De “menor estagiário” a “ministro do STJ”. Qual o conselho o Sr. dá para o jovem que está iniciando no mercado de trabalho?
De fato, comecei a trabalhar com 14 anos no Banco do Brasil. Foi um período muito importante para meu amadurecimento, pois, desde cedo, passei a desenvolver valores e hábitos que me ajudaram mais tarde na fase adulta. Dedicação ao trabalho, honestidade, disciplina e determinação foram alguns dos fatores que me pautaram desde essa fase de minha vida. Acho que todos os jovens passam por esse momento de definição de seu futuro e tudo aquilo que semeiam na adolescência quase sempre vai repercutir na sua vida como adultos. Eu sempre fui muito caseiro, pois gostava de estudar e de ler desde meus 12, 13 anos. E as coisas aconteceram muito cedo na minha vida. Casei-me com 21 anos e com 24 já era promotor de justiça e com meu primogênito para criar.

Depois de se formar foi advogado por três anos e promotor de Justiça por outros 16 anos, tendo sido promovido a procurador de Justiça em 2003, cargo que exerceu por 10 anos, chegando a procurador geral de Justiça do Distrito Federal de 2004 a 2006. Em 2013, foi nomeado ministro do STJ, onde é um dos mais respeitados na matéria de Direito Penal. Sua predileção sempre foi o Direito Penal? Um dos problemas mais graves do país é a violência e a segurança pública. Nossas leis são brandas ou mal aplicadas?
Quanto ao meu apreço pelas ciências criminais, confesso que não foi um “amor à primeira vista”. Dizem que os estudantes de Direito namoram o Direito Penal e, depois, quando vão atuar profissionalmente, se casam com o Direito Civil. Comigo foi o inverso. Eu era um excelente aluno de Direito Civil e mediano em Direito Penal e Processual Penal. Não tinha tanto interesse assim nas questões criminais. Então, após um estágio no Ministério Público, decidi fazer o concurso para essa carreira. Passei nas provas e ingressei na função de defensor público (na época era o Ministério Público que desempenha as vezes de defensor). Comecei a atuar em processos criminais, mas ainda assim meu foco era o Civil. Tanto que fiz uma especialização em Direito Processual Civil, em Roma. Quando voltei (com 29 anos), fui convidado para lecionar na Escola Superior do Ministério Público do DF e Territórios. Achei que o convite seria para Processo Civil, mas foi para Processo Penal. Ali começou minha paixão por esse ramo do direito e tem sido um casamento duradouro desde então. A segunda parte da pergunta demandaria umas boas páginas para tentar oferecer alguma resposta. Mas, bem resumidamente, eu posso dizer que, sim, a violência generalizada em nossa sociedade e a deficiência dos serviços de segurança pública são talvez nosso maior desafio como nação. Enquanto não reformularmos nosso modo de nos relacionar com outras pessoas e enquanto a Segurança Pública for tratada de modo tão militarizado e com uma ótica acentuadamente de confronto, não melhoraremos nossos índices alarmantes de violência urbana. Acredito que nossas leis precisam sempre ser aprimoradas, mas considero que, em geral, nosso problema não está no plano normativo, e sim no das práticas diárias e na nossa herança autoritária, que dificultam a construção de uma sociedade mais pacífica e ordeira.

 

O Sr. tem mestrado e doutorado em Direito Processual pela USP e especialização em Direito Processual Civil pela Universitá di Roma La Sapienza. É professor de Direito Penal e Direito Processual Penal. No Brasil existem mais faculdades de direito (cerca de 1.250) do que em todo o resto do mundo capitalista somado. Como enxerga essa proliferação dos cursos de direito no país e seus efeitos no âmbito da aplicação do Direito Penal nos procedimentos e processos criminais?
Com toda a sinceridade, vejo com muita preocupação essa profusão de novos cursos jurídicos no país. O reflexo tem sido visto nos processos que recebemos, nem sempre condizentes com o que se espera de um profissional do direito, especialmente no uso do vernáculo e no conhecimento das normas constitucionais e legais.

Somente nos cinco primeiros meses do ano o STJ recebeu 37.552 pedidos de Habeas Corpus, 13% a mais que no mesmo período de 2023. Isto quer dizer que está havendo excesso nas condenações ou crescente desrespeito aos direitos fundamentais?
Não há dúvidas de que existe um excesso de judicialização, em todos os níveis (civil, trabalhista, criminal) e o resultado está demonstrado pelo número de processos que tramitam no sistema de justiça brasileiro (cerca de 80 milhões). Mas precisamos reconhecer que, no âmbito da jurisdição criminal, ainda há muito o que avançar, sobretudo na consideração, por parte de agentes estatais que integram o sistema de justiça criminal, de que os meios empregados para se obter a condenação dos culpados não pode transigir com avanços civilizatórios e conquistas de direitos fundamentais, os quais protegem todos, e não apenas os que violam as leis.

Os EUA são o país com a maior população carcerária do planeta (1,3 milhão), enquanto o Brasil possui cerca de 850 mil presos. Mas enquanto este número representa um crescimento no país, de 44% em uma década, nos EUA houve uma queda de 21,7% no mesmo período. Este fenômeno, segundo especialistas, demonstra “o abandono de um ideal de ressocialização e uma opção pelo encarceramento como solução única” no Brasil. Como o Sr. enxerga isso? A solução passa pelo “encarceramento massivo”?
Nosso encarceramento crescente decorre, em boa parte, do nível de violência presente em nossa sociedade, especialmente nas grandes cidades e em locais de baixa presença do estado. Um país com os piores índices de desenvolvimento humano como o nosso é um convite para uma série de problemas sociais como o analfabetismo, a falta de oportunidades, a desigualdade de tratamento, o desrespeito pelos direitos das pessoas em geral e a violência como meio de solução de conflitos intersubjetivos. Creio que a quantidade de armas – e a facilidade de sua obtenção – e o crescimento assustador das facções criminosas também repercutem nos elevados índices de criminalidade. E, infelizmente, não temos sido capazes de encontrar respostas ou alternativas mais civilizadas, menos custosas e menos dolorosas para o fenômeno criminoso além do cárcere, que deveria servir apenas para os casos de maior gravidade.

Uma das causas da redução da população carcerária nos EUA está relacionada a um relaxamento da lei das drogas em vários estados norte-americanos. O Sr. foi um dos autores da reforma da Lei de Drogas. E, atualmente, há toda a discussão em relação à descriminalização, pelo STF, do porte de maconha para uso pessoal. Com tal entendimento não se está estimulando o uso e o comércio de drogas?
A questão das drogas tem sido enfrentada de modo muito preconceituoso e enviesado no Brasil. É evidente que o crime de tráfico é gravíssimo e agrega outros crimes ao seu redor (uma boa parte dos homicídios no país é cometida por acertos de contas, eliminação de concorrentes etc), mas precisa ser enfrentado com maior inteligência pelo estado brasileiro. Fato é que, no âmbito do uso de drogas, estamos muito atrasados em relação ao resto do mundo. Todos perceberam que não se pode tratar o usuário de drogas – sejam quais forem – como um criminoso, a merecer sanção penal. A questão é mais de saúde pública do que criminal. Vejam que temos drogas tão ou mais pesadas e responsáveis por inúmeras doenças e até por outros crimes (um exemplo é o álcool) e nem por isso criminalizamos quem as utiliza, seja para uso recreativo e muito menos para uso medicinal. No Brasil ainda há pessoas que, para aliviarem uma dor ou para diminuírem sintomas de doenças psíquicas ou físicas, são perseguidas pelo sistema de justiça criminal ao buscarem uma solução caseira a partir de substâncias derivadas da planta cannabis sativa. O Poder Legislativo não avançou nesse tema, ao contrário, propõe seu endurecimento. O Poder Executivo também carece de avanços, especialmente na regulamentação do plantio de cannabis para fins medicinais. Assim, o Poder Judiciário, quando provocado, vê-se impelido a decidir processos e tutelar direitos de pessoas que acabam sendo vítimas do próprio sistema de justiça.

Dos atuais quatro ministros mineiros no STJ, três são cruzeirenses (o Sr. e os ministros João Otávio de Noronha e Afrânio Vilela), e um atleticano (o ministro Sebastião Reis). Por ser nascido em Juiz de Fora a tendência não era ser torcedor de algum clube carioca? Como nasceu a paixão pelo Cruzeiro? Está animado com a nova fase ?
Essa é uma pergunta que me faço sempre: o que me levou a torcer por um time com o qual eu não tinha uma relação mais próxima? Digo isso porque meu pai não torcia para o Cruzeiro (até hoje é fanático pelo Palmeiras), eu não tinha amigos ou parente algum que torcesse para o Cruzeiro; os jogos de times mineiros nem eram transmitidos para Brasília (onde sempre houve predominância do futebol carioca) e, mesmo assim, eu me tornei um cruzeirense fiel, desde o início dos anos 70. Fato é que, desde que me entendo por gente, as cinco estrelas do maior de Minas batem forte no meu peito, orgulhoso por suas conquistas. Tudo bem que já são distantes no tempo (rsrs), mas espero que retomemos em breve o caminho dos títulos e vitórias. 

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