Poucos conhecem tão bem a estrutura, o funcionamento e a importância da Justiça Militar, como o entrevistado central do D&J Minas, ministro José Coêlho Ferreira, do Superior Tribunal Militar. Natural de Novo Oriente, no sertão do Ceará, ainda adolescente se transferiu para Brasília, de onde nunca mais saiu. Casado com uma mineira, Genoveva, filha do ex-deputado e presidente da Câmara dos Deputados de 1970 a 1971, Geraldo Freire, de Boa Esperança, o ministro José Coêlho Ferreira pode-se dizer que é um mineiro por adoção, tal sua afinidade com o sul de Minas, região que frequenta há décadas e que abraçou como seu porto seguro. Com mais de 23 anos como ministro do Superior Tribunal Militar, já foi seu presidente de 2017 a 2019 e é o atual vice-presidente da Côrte e corregedor da Justiça Militar, cuja história se confunde com a própria história da República. Conheça os detalhes dessa justiça especializada, desde sua criação, que “remonta ao ano de 1808, logo após a instalação da Corte Real portuguesa no Rio de Janeiro”, nessa entrevista inédita.
O Sr. chegou em Brasília aos 14 anos, em 1964, vindo do sertão dos Crateús, no Ceará, onde nasceu na cidade de Novo Oriente. O que motivou essa mudança e como foi a infância no sertão nordestino?
Minha infância foi como a de qualquer criança em uma cidade do interior. Morávamos em uma rua na qual residiam diversos parentes e assim, após as aulas, reunia-se a meninada e brincávamos. Lembro bem que nas férias e feriados prolongados a família ia para o sertão, no município de Independência, ou para o “pé da serra”, no município de Novo Oriente, onde meu pai e também meus parentes tinham terras. Foi uma infância muito feliz! Minha vinda para Brasília se deu no começo da formação da cidade, cerca de apenas quatro anos de sua criação. O meu irmão mais velho e padrinho vivia na cidade e vim morar com ele, em busca de melhores oportunidades de estudo e de possibilidades de evoluir em termos de educação e de trabalho, em relação à minha cidade no interior, sertão do Ceará. Essa mudança mostrou-se muito feliz, não apenas em relação a estudos e oportunidades de trabalho, mas porque aqui me casei com uma colega de faculdade e, como sói ocorrer no Distrito Federal, ela é de outro estado, de Boa Esperança, sul de Minas, e aqui constitui família. Brasília é uma cidade na qual sou muito realizado, feliz mesmo.
No ano passado o Sr. completou 50 anos de formatura em direito pela Universidade de Brasília e, por 25 anos, foi do jurídico do Banco do Brasil e procurador-geral do Banco Central de 1995 a 2001, quando, então, foi indicado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso para ministro do Superior Tribunal Militar. Os leitores, em sua maioria, têm pouca afinidade com a história da Justiça Militar. Qual sua importância histórica, em sendo a instituição do gênero mais antiga do país?
A Justiça Militar da União, por seu Superior Tribunal Militar (STM), é a mais antiga Corte do Brasil, tendo celebrado 216 anos de profícua existência, neste ano de 2024. Sua origem remonta ao ano de 1808, logo após a instalação da Corte Real portuguesa no Rio de Janeiro. Há de ser ressaltado que o estabelecimento efetivo do Poder Judiciário no Brasil somente adveio bem depois, com a Constituição Republicana de 1891, que permitiu a separação dos poderes nacionais e a criação efetiva do Poder Judiciário. Na Constituição Federal de 1934, a Justiça Militar da União (JMU) passou a integrar o Poder Judiciário. Até então, ela integrava o Poder Executivo, como este, aliás, é o caso da maioria das Justiças Militares em outros países. Portanto, pela Constituição de 1934, a JMU migrou da esfera administrativa para o ambiente da Justiça Penal, de maneira efetiva e integral, evitando-se dessa forma riscos de corporativismos ou influências hierarquizadas. Passou, desde então a ter, constitucionalmente, a sua competência alterada para exclusivamente processar e julgar crimes militares, o que perdura até hoje. No Brasil, somos um ramo de justiça especializada, com sua estrutura, orçamento e organização peculiares, ao lado de outros dois segmentos de justiça especializadas existentes dentro da estrutura do Poder Judiciário brasileiro, que são a Justiça do Trabalho e a Justiça Eleitoral. A atual organização, composição e competências dos Tribunais e Juízes Militares da União foram recepcionadas e consagradas pela Constituição Federal de 1988, tendo a sua jurisdição no âmbito federal, portanto, exclusivamente naquele das Forças Armadas. As polícias militares e os bombeiros militares estaduais são jurisdição das justiças militares estaduais. Observando-se os demais tribunais brasileiros, podemos dizer ainda que o Superior Tribunal Militar é órgão único na estrutura do Poder Judiciário. Aquele órgão de 1808, criado pelo príncipe regente Dom João, é a origem retilínea do Superior Tribunal Militar de hoje, ressalto, sem hiato de continuidade. Um marco ímpar em termos de instituição pública no Brasil! Quanto à importância histórica da Justiça Militar da União, relevo que, ao longo dos seus mais de 216anos de existência, este ramo de Justiça tem trabalhado para prestar serviços jurisdicionais de relevância para a sociedade brasileira, tendo papel destacado na garantia do devido processo legal e dos direitos humanos. O legado histórico mostra que a Justiça Militar da União tem pautado sua atuação pelo princípio geral do direito. Foi assim que, por exemplo, reformou sentenças do Tribunal de Segurança Nacional, órgão de exceção instituído por Getúlio Vargas, e concedeu Habeas Corpus (na época, como representação) durante a vigência do Ato Institucional nº 5. Decisões históricas importante de contribuição do STM à jurisprudência brasileira, a liminar em Habeas Corpus, concedida pelo ministro do Superior Tribunal Militar almirante de esquadra José Espíndola, pela primeira vez no Brasil, em 1964. Através da sua história, nunca jurisdicionou como uma justiça de exceção. Vale invocar o período do regime militar, cuja isenção, independência e probidade na prestação jurisdicional levaram juristas, advogados e jornalistas como Heleno Fragoso, Sobral Pinto, Aliomar Baleeiro, Técio Lins e Silva, Paulo Brossard e jornalista Carlos Castello Branco a se manifestarem publicamente elogiando a correção, altivez e serenidade de sua atuação.
Como está estruturada a Justiça Militar e como é formado o Superior Tribunal Militar e quais as suas atribuições?
A estrutura da Justiça Militar da União é prevista na Lei da Organização da Justiça Militar - LOJM (Lei no 8.457, de 1992) que complementa a norma constitucional. Nela se encontram um Tribunal Superior, o Superior Tribunal Militar - STM, e uma primeira instância representada pelas auditorias, com seus juízes e Conselhos de Justiça. O Tribunal Superior existente na Justiça Militar da União, na verdade, é mais uma característica ímpar no judiciário brasileiro. O Superior Tribunal Militar (STM), que é localizado em Brasília, tem as atribuições típicas inerentes a este tipo de tribunal, mas a ele cabe, também, apreciar os recursos advindos da primeira instância. É este tribunal, ainda, quem processa e julga, originalmente, os oficiais generais das Forças Armadas. Este Tribunal Superior tem em sua composição uma representação mista, ou seja, um colegiado de ministros formado por civis e militares - o chamado escabinato. Este tipo de composição foi adotado desde a sua criação, em 1808, e mantido até os dias atuais. Ele é composto por 15 ministros, nomeados pelo presidente da República, após aprovação do Senado Federal, sendo dez militares e cinco civis. Dos ministros militares, três são da Marinha, quatro do Exército e três da Aeronáutica, todos oficiais da ativa, do quadro suplementar de cada força, e do último posto da carreira. Os ministros civis são três oriundos da advocacia, com mais de dez anos de atividade, notório saber jurídico e conduta ilibada; um quarto vem da carreira de juízes federais, da própria Justiça Militar da União; e o quinto é escolhido dentre os integrantes do Ministério Público Militar. A esta composição mista, como falei antes, dá-se o nome de escabinato, configuração que tem o propósito de aliar o conhecimento jurídico aportado pelos civis com a experiência peculiar que os militares trazem da caserna. Compõe, ainda, a estrutura da JMU a Corregedoria da Justiça Militar, sediada no mesmo prédio do STM, em Brasília, que tem jurisdição em todo o território nacional, e é exercida por um ministro corregedor, que é o ministro vice-presidente da Corte, tendo a assistência de um juiz-corregedor auxiliar. É um órgão de fiscalização e orientação judiciário-administrativa, cuja competência está fixada na Lei de Organização da Justiça Militar. E a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados da Justiça Militar da União (ENAJUM), também sediada em Brasília. Tenho que me referir ainda ao Ministério Público Militar, com sua estrutura independente, a Defensoria Pública da União que, observo, nasceu dentro da Justiça Militar da União, e os advogados, que garantem os princípios essenciais para assegurar ao réu a sua defesa no processo judicial: o do contraditório e o da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
O Sr. já foi presidente do STM de 2017 a 2019 e, atualmente, é vice-presidente, acumulando também as funções de corregedor da Justiça Militar. Quais são os maiores desafios da instituição nesse momento?
Posso dizer que a Justiça Militar da União está comprometida com a modernização e está atenta às possibilidades do emprego da tecnologia, que vemos avançar numa celeridade impressionante, para sempre melhorar a qualidade e celeridade de seus ritos processuais e de julgamentos. Quando assumi a presidência da Corte, em 2017, decidi por implementar um moderno sistema eletrônico, o e-Proc/JMU, oriundo e adaptado do sistema e-Proc desenvolvido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região - TRF-4, que entrou em plena operação em toda a Justiça Militar da União em 2018. Além de benefícios no campo da ecosustentabilidade, a implementação do sistema e-Proc/JMU facilitou muito a atividade judicante e a atuação de todos os operadores do direito na Justiça Militar da União e dos seus jurisdicionados e agentes da Polícia Judiciária Militar. Como outras modernizações então implantadas, menciono ainda a transparência da transmissão integral dos julgamentos do plenário do STM via Youtube, aberto publicamente, a sustentação oral por advogados via videoconferência, que possibilita a um advogado em qualquer lugar do país, para defender sua causa na JMU, o faça sem a necessidade de se deslocar para Brasília, evitando gastos elevados com viagens do defensor, além do tempo perdido em deslocamentos. Estas inovações foram fundamentais para o perfeito funcionamento contínuo da Justiça Militar da União no período da pandemia que vivenciamos e que paralisou o mundo. Um grande desafio descortina-se, aliás para todo o Judiciário, não somente no Brasil, e que nos envolve, que é o emprego da Inteligência Artificial. O STM está atento e já se engajou em projetos neste campo. Lembro que a par das grandes possibilidades deste recurso, há questões éticas ainda a serem avaliadas, como sabemos, objetos de debates e reflexões, mas que, tenho fé, superaremos.
Não raro se vê opiniões favoráveis à extinção da Justiça Militar ou sua aglutinação ou absorção por outras esferas do Judiciário. Mas, o fato é que a Justiça Militar tem se mantido atuante há mais de 200 anos no sistema de justiça brasileiro. Qual a importância de se manter a Justiça Militar em nível de futuro? Ou o Sr. entende que ela possa vir a ser incorporada como um braço especializado da Justiça Federal, por exemplo, como alguns já sugeriram?
Entendo, da mesma forma daqueles que bem conhecem a Justiça Militar, que esta justiça é a pedra angular da hierarquia e da disciplina, atributos basilares constitucionais das Forças Armadas, indispensáveis a sua própria sobrevivência como instituição permanente do estado e responsável pela defesa da pátria, da garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem, como reza o artigo 142 de nossa Carta Magna. A essencialidade da Justiça Militar decorre do simples fato de que não há como se esperar da Justiça Comum, por mais competente que seja o juiz, vivenciando em meio ao genérico, o perfeito conhecimento das especificidades da vida militar, a ponto de colocá-lo em condições de ponderar a influência do ilícito penal sobre a organização, o ambiente singular vivido pelos jurisdicionados nessas instituições, com os valores que cultuam, as exigências a que necessariamente estão submetidos e o funcionamento das organizações militares com sua estrutura hierarquizada. Tal responsabilidade exige uma justiça especializada, mas não só isso, há de ser essencialmente uma justiça que atue com a celeridade necessária no processamento e julgamento de seus feitos, para evitar danos irreparáveis à hierarquia e à disciplina, que lhe cabe tutelar. É importante ressaltar, quanto à celeridade processual, que é uma característica essencial da Justiça Militar. No meio castrense, uma duração acima do razoável dos processos e de seus julgamentos influi negativamente na tropa e nas tripulações; e ainda traz prejuízos individuais às carreiras. Não se pode esperar por longos tempos pela apuração da culpa e pela aplicação da pena em um cenário fundado na hierarquia e na disciplina. No ambiente militar, a demora no processar, julgar e decidir, é condição de instabilidade da disciplina, cujo rompimento, sabemos, é o caos! Uma força, uma tropa de detentores das armas sem disciplina, não é uma tropa e sim um bando armado, o que seria um perigo para a instituição militar e para a própria sociedade. A questão é simples, a importância da Justiça Militar está definitivamente associada ao fato de que existem Forças Armadas.
Quais avanços as mudanças implementadas pelo presidente Michel Temer, ao sancionar a Lei 13.774/18, trouxeram para o funcionamento da Justiça Militar e para a tramitação dos processos perante essa justiça especializada?
A Lei 13.774/18 trouxe diversos avanços para a JMU. Em um breve resumo, cito, entre as principais mudanças, começando por mencionar a corregedoria. A antiga auditoria de correição foi reestruturada passando a constituir-se em corregedoria da Justiça Militar, chefiada por ministro corregedor, cargo exercido pelo ministro vice-presidente do Superior Tribunal Militar, com novas atribuições. Na primeira instância, o antigo juiz-auditor passou a ser juiz federal da Justiça Militar. Os conselhos de justiça, colegiados formados em escabinato, assim como o plenário do STM, e que efetuam os julgamentos na primeira instância da JMU, passaram a ser presididos pelo juiz federal da Justiça Militar ou pelo juiz federal substituto da Justiça Militar, e os civis passaram a ser julgados pelo magistrado togado, não mais pelo colegiado, como era antes. Estes juízes também, passaram a julgar os habeas corpus, habeas data e mandados de segurança contra ato de autoridade militar praticado em razão da ocorrência de crime militar, exceto o praticado por oficial-general.