A JUSTIÇA ELEITORAL COMO VOCAÇÃO

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A entrevista central dessa edição do D&J Minas traz a ministra Edilene Lobo, cuja trajetória profissional se confunde com o desenvolvimento da Justiça Eleitoral no Brasil. Advogada, professora, pesquisadora, mestre e doutora na matéria, ela discorre sobre a evolução da Justiça Eleitoral, os avanços tecnológicos, que visam “facilitar e agilizar o exercício do voto livre e seguro”, aborda temas polêmicos como o controle sobre redes sociais, a influência das fake news nos processos eleitorais, as novas ferramentas digitais, que poderão impactar no pleito de 2026 e da representação feminina e negra nos espaços políticos. Além disso, projeta  metas e o legado que pretende deixar no Tribunal Superior Eleitoral. 

A Sra. sempre atuou na Justiça Eleitoral, tendo, inclusive, sua dissertação de mestrado e tese de doutorado relacionadas à matéria específica. Como nasceu o seu interesse pelo tema e o que a levou a se especializar nessa área?


Desde que, adolescente, participei dos Comitês pró-Constituinte, nos anos de 1985/1986, comecei a me interessar pela política e pelo direito. Depois, quando do meu ingresso na Faculdade de Direito na Universidade de Itaúna, ao compreender a importância da implementação de direitos fundamentais como o grande objetivo coletivo, e que os direitos políticos, exercitados também durante as eleições, auxiliam a estruturação do modelo democrático, identifiquei o campo em que atuaria. E assim o fiz como advogada, professora, pesquisadora, e, agora, mais recentemente, como ministra substituta do TSE.

A Sra. foi advogada da ex-presidente Dilma Roussef, quando esta foi candidata ao Senado, por Minas Gerais, em 2018. De lá para cá a Justiça Eleitoral mudou muito? Qual o impacto da proliferação das redes sociais na instituição?


A Justiça Eleitoral, desde sua criação em 1932, vive frequentes evoluções, bem destacado seu papel permanente na organização das eleições, elaboração de resoluções específicas para cada pleito, além do julgamento das ações judiciais, que lhes são submetidas, objetivando garantir eleições limpas, seguras e democráticas, fazendo valer o mandamento constitucional de que todo o poder emana do povo.
Merece realce o forte investimento na modernização dos variados sistemas eletrônicos utilizados para facilitar e agilizar o exercício do voto livre e seguro, com enfoque no grande invento tecnológico, aplicado desde as eleições de 1996, produto da inteligência nacional, a urna eletrônica.


O uso das redes sociais digitais, reconhecidas como veículos de comunicação social, enfrenta paradoxos. É que, ao tempo em que oportuniza visibilidade e difusão de propostas políticas de grupos sociais secularmente excluídos, como mulheres e pessoas negras, por exemplo, têm servido para a desinformação, o discurso de ódio e a manipulação. Por isso mesmo, identificado o impacto no processo eleitoral, caberá à Justiça Especializada, em casos específicos, que lhes forem submetidos, examinar eventual abuso das redes sociais e aplicar o ordenamento vigente.

A Sra. é partidária de um maior rigor quanto à fiscalização do uso das redes sociais nas campanhas eleitorais? Como se combater as fake news no processo eleitoral?


Na medida em que impactar o processo democrático, atentando contra a liberdade de escolha, por exemplo, o controle das redes sociais, em casos específicos levados ao Judiciário, deve ser feito.
A propósito, o TSE tem uma excelente Resolução, com determinações bastante precisas no que tange ao uso das redes e mesmo da tecnologia aplicada à propaganda eleitoral. Menciono a Resolução de nº 23.610/2019, que merece ser conhecida e difundida. Nela se tem, por exemplo, que a propaganda eleitoral deve cuidar de informar o eleitorado, para que este possa fazer escolhas conscientes, não admitindo, por nenhum meio, a desinformação, muito menos fake news turbinadas pela inteligência artificial.


O combate à desinformação, fenômeno multifatorial, exige intervenções variadas, como a aplicação da lei para responsabilização das pessoas envolvidas; investimento na educação política para que o povo aprenda a identificar e rejeitar a manipulação; desaguando na regulação adequada do uso das ferramentas digitais, que têm sido utilizadas por alguns grupos, para a disseminação de mentiras, manipulações, discursos de ódio e outras táticas para captura do poder político.

Em 2026, possivelmente, teremos o ápice da utilização das ferramentas digitais de comunicação nas eleições. A Justiça Eleitoral está preparada para enfrentar tal situação? De que forma?


As transformações tecnológicas, com a ampliação da capacidade computacional, o processamento ilimitado aos dados pessoais e a melhoria dos serviços da internet, atingem todos os quadrantes da vida. E segue em ciclos cada vez mais curtos e velozes.


Possivelmente, 2026, ano das eleições nacionais e estaduais, também seja atravessado por novas ferramentas digitais, o que impõe a necessidade de constante acompanhamento da revolução digital. Pari passu com estas mudanças, a Justiça Eleitoral segue investindo no aperfeiçoamento de seu pessoal, no reforço de parcerias institucionais, inclusive com as plataformas digitais, para o enfrentamento à desinformação e o estímulo ao bom uso da tecnologia. Frequentemente, o TSE difunde campanhas educacionais, além de disponibilizar canais de busca por informações autênticas, como os de checagem de fatos. Enfim, o TSE vem atuando fortemente para que o direito ao voto não seja maculado. Cabe, além dessas medidas, que a sociedade se envolva nesse processo, porque a tarefa é coletiva, não é mesmo?

Como é vista a utilização da inteligência artificial no âmbito da Justiça Eleitoral?
A já aludida Resolução do TSE, de nº 23.610/2019, deixa bastante nítido que o uso da inteligência artificial é permitido para a difusão da propaganda eleitoral. Entretanto, realça de modo contundente a proibição de usá-la para a desinformação, a manipulação de imagens, sons e vídeos, produzindo as denominadas deepfakes. De novo, vale leitura atenta desse importante regramento, acessível na plataforma do TSE, no endereço: tse.jus.br, para constatar que a IA, como produção humana, deve servir aos propósitos de ampliar o debate e o acesso dos cidadãos e cidadãs às propostas políticas para sua comunidade. Nunca para distorcer e enganar.

 

Em 2023, a Sra. foi nomeada ministra do Tribunal Superior Eleitoral, órgão máximo da Justiça Eleitoral brasileira. Quais os principais desafios que a Sra. tem enfrentado na nova e importante missão?


Recebi a nomeação bastante honrada e ciente de que se trata de um trabalho coletivo em prol da democracia que, para vicejar, precisa de escolhas conscientes e trabalho diuturno não só individual, mas das variadas instituições da sociedade e da cidadania, para que o poder que emana do povo seja o alimento da República.

Qual o legado a Sra. pretende deixar no TSE?


Eu acredito no trabalho coletivo.


Quando tomei posse no cargo de ministra substituta do TSE, jurei cumprir a Constituição e as leis do meu país. Por isso, na primeira vez em que fui à bancada de julgamento, em setembro de 2023 - e aqui é importante dizer que só participo das sessões de julgamento, quando convocada pela presidência da Corte, diante da ausência ou impedimentos dos juristas titulares -, pude destacar que é crucial, para fazer valer esses mandamentos, garantir acesso democrático à função judicial, onde deve haver mais mulheres, marcadamente mais mulheres negras, considerando que se trata da maioria (cerca de 28% da população brasileira é de mulheres negras) de dentro da maioria (aproximadamente 52% da população é de mulheres), e não se encontra contemplada nesse importante espaço de poder.


Ainda, realcei que a potência feminina negra, que se encontra atravessada por opressões de gênero e de raça, submetida a múltiplas violências, deve ser estimulada, para que permaneça contribuindo, com ainda mais vigor, para a construção da sociedade livre, justa e solidária com a qual sonhamos. Também destaquei que se fazia fundamental tratar da sub-representação feminina nos espaços políticos, enfrentando a violência política de gênero, registrando a necessidade dos julgamentos com a perspectiva de gênero e de raça, com atuação firme no enfrentamento às fake news e ao discurso de ódio difundido pelas milícias digitais, vitimando principalmente as mulheres e com ainda mais vigor as mulheres negras.
Trata-se, como disse naquela oportunidade, de um trabalho conjunto, quotidiano, de todas as pessoas. Não só da magistratura, não só meu.


Por isso, mais que legado, precisamos manter de pé o projeto de construção da sociedade próspera com o qual a Constituição se comprometeu. Nessa direção, eu sigo firme, dialogando com muitas pessoas e instituições pelo Brasil afora. São inúmeras palestras, reuniões, eventos, rodas de conversa, grupos de pesquisa etc.


É extremamente desafiador manter de pé o trabalho de enfrentar as desigualdades sociais, econômicas, políticas, de gênero, de raça, enfim, que é de toda a sociedade, não é mesmo?

Quais são seus planos para o futuro, após completado o período no TSE?


Por ora, me parece muito oportuno falar da missão que me foi confiada.


Sou uma mulher negra do norte de Minas, que percebeu muito cedo o quão violenta e injusta é a pobreza, que se abate com mais força contra as mulheres e meninas negras. Daí meu compromisso de longa data, de lutar por democracia econômica, especialmente para o acesso à educação transformadora e a distribuição justa da riqueza. Minha tática foi me tornar professora, profissão que desempenho, com muito gosto há mais de 30 anos, inclusive em cátedras internacionais. E pretendo permanecer, ao lado da magistratura, também nessa atividade por muito mais tempo, inclusive acompanhando os trabalhos das Escolas Judiciárias Eleitorais de todos o país.


Desde cedo, por igual, constatei que a abolição da escravatura segue inconclusa no Brasil, com o racismo negando o mais básico dos direitos às pessoas negras, e, em opressão ainda mais agressiva contra as mulheres, vítimas frequentes de toda sorte de violência, particularmente o feminicídio. E com isso firmei meu compromisso interior de seguir lutando pela promoção de meninas e mulheres negras aos espaços decisórios para ecoar suas vozes e virar o jogo. Nessa direção, cuido, há muito tempo, de caminhar pelo Brasil, denunciando essa realidade perversa e apontando que a sétima economia do mundo tem que pagar sua dívida com as pessoas negras, reconhecendo que mais de 300 anos de escravidão apagaram a vida e a história de muitas, mas não pode seguir exterminando o presente e o futuro de tantas. Por isso, falo de mais mulheres negras em todos os espaços possíveis, com especial ênfase nas ciências, na tecnologia e nas carreiras jurídicas. Sou advogada há 30 anos e sigo com as minhas atividades profissionais desde então, destacando que o outro nome da justiça é equidade. E sem equidade, especialmente a racial, não há porvir! No âmbito da Justiça Eleitoral, permaneço travando o debate e estimulando ações para a promoção da igualdade racial, principalmente exortando a criação e intervenção firme das Comissões de Promoção da Igualdade Racial em cada tribunal do Brasil. Outra ação, que venho desenvolvendo é de chamar a atenção das várias instituições democráticas, inclusive partidos políticos, da importância de cumprir com transparências as cotas para o registro da candidatura das mulheres e pessoas negras, distribuindo adequadamente o dinheiro, o tempo de propaganda eleitoral e todos os outros recursos disponíveis para que haja igualdade nas disputas. Investir na ascensão das mulheres e das pessoas negras na política é mais que um dever. É estratégico para continuar merecendo confiança do povo e se fazer inserir na realidade, que reclama mudanças estruturais, reais, para além do discurso.


Acredito na ciência e invisto parte do meu tempo na pesquisa acadêmica, na publicação de livros e artigos destinados à comunidade jurídica e política.


Dou ênfase ao estudo das transformações tecnológicas e na necessidade de fazer valer todas essas conquistas da humanidade para melhorar a vida das pessoas. Me entusiasmo em falar de tecnologia e combate à discriminação algorítmica, à compreensão do funcionamento dos sistemas algorítmicos e seus impactos na democracia e, ultimamente, à inteligência artificial aplicada ao sistema de justiça, para garantir o direito fundamental de acesso à inovação tecnológica para que possamos falar de direitos para todos.


Em suma, como dizia Alda Lara, poetisa africana, ainda sou a mesma, filha eterna da rebeldia, que me sagrou e sigo por aqui! 

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