A modernidade líquida esfacelou as relações sociais retirando a força de coerção dos instrumentos de controle social como a moral, a ética, a religião e as regras de trato social, levando para o Direito a responsabilidade de ser a panaceia para a resolução de todos os conflitos sociais e individuais, embora muitos deles não estejam ao seu alcance.
O que antes era matéria de moral autônoma ou intimidade religiosa, passa a tomar conta do imaginário coletivo e passivo de regulação, pois se esfacela a privacidade, a intimidade e o direito de estar só.
Afinal, vivemos na liquidez alimentada pelo esbanjar, da falsidade dos filtros, da busca desenfreada pela estética definida pelo status quo e pela falta de preocupação com o conteúdo fincado no conhecimento.
A tecnologia vulgarizou a verdade e a rede mundial de computadores se encarregou de pulverizar mundialmente a desinformação e as notícias fraudulentas, antes com repercussão comunitária e diminuta, já que feita em mesas de bares ou janelas de casas do interior.
Agora, vivemos o risco global da desinformação e da antifraternidade, já que a violência causada por elas é sempre aceita no outro, já que a alteridade se foi há muito.
Nada é novo. Arthur Bernardes quase perde a eleição de 1922 para Nilo Peçanha por uma fake news: cartas divulgadas como se fossem dele, atacando militares. Isso criou uma polarização enorme em seu governo e alguns dizem que foi a origem da coluna Prestes. Pasmem: mesmo com perícia grafotécnica atestando que a letra não era do ex-presidente, o efeito devastador já fora criado. A reparação do dano, nesses casos, costuma ser inversamente proporcional ao efeito devastador criado pela fraude.
Não é à toa que o fórum social mundial colocou no topo dos riscos globais de 2024 a desinformação.
As chamadas fake news (embora esse termo não seja o mais adequado) são notícias de conteúdo falso, fraudulento e enganoso, transvestido de verdade e compartilhado como tal, causando prejuízo alheio e incentivada por uma imprensa marrom, que vive de atos antidemocráticos, já que democracia exige desacordos razoáveis e não polarização violenta e mentirosa.
Mas, o que fazer para combater esse mal?
Os desafios são enormes.
O primeiro seria definir o conceito de verdade. Daria uma discussão interessante entre defensores do dogmatismo, ceticismo ou relativismo, já que para cada um a verdade tem um viés.
O segundo é controlar um ambiente desterritorializado como a internet, em que todos são informantes sem preocupação com a fonte, isto é, a total desestabilização da fonte da notícia combinada com a falta de confiança e uma pitada de pulverização em um ambiente líquido que gera opacidade do real.
E o terceiro é a busca de um equilíbrio entre regulação e emancipação, uma vez que quando se regula demais, engessa-se demais. E quem teria o poder de definição do que e como regular? A teoria do etiquetamento ou labelling approach tem a resposta. O detentor do poder etiqueta e regula quem o incomoda na gramática dos conflitos sociais.
Mas, não podemos ficar parados. A solução prática e racional perpassa por algumas diretrizes como repensar a reserva de jurisdição, isto é, não ser o juiz a atuar na primeira linha de combate.
A segunda seria inverter a dinâmica do controle com estímulo à autorregulação privada, ou seja, o controle contratual efetivo e dinâmico.
A terceira é o poder de autotutela em casos extremos como terrorismo e pornografia infantil. Se for o caso, moldar canais de mediação com foco na resolutividade.
Portanto, dentre as possibilidades que temos a educação digital é o mote da prevenção primária contra as notícias fraudulentas, além da busca da transparência algorítmica e da autorregulação privada.
Como já dito, o combate à desinformação é uma tarefa hercúlea, mas perpassa pela educação digital na internet morta (controlada por algoritmos), pelo aumento da transparência algorítmica, pela autorregulação privada como protagonista, pelas regras de compliance com foco nos riscos de segurança cibernética e desinformação, pelo poder de cautela inverso (do juiz para as plataformas na primeira linha de combate), pela assunção pessoal do conflito e pela subsidiariedade do Estado.
Mentiras, engodos e fake news sempre existiram e existirão, o que precisamos é criar uma política austera, rápida e eficiente de redução de danos, já que evitar a ânsia humana pela antifraternidade é missão impossível.
Como diria Millôr Fernandes: “as pessoas que falam muito, mentem sempre, porque acabam esgotando seu estoque de verdades”.