Marcos Paulo de Souza Miranda
Promotor de Justiça. Coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias Criminais - CAOCRIM

 

Corria o longínquo ano de 1748, quando o célebre filósofo francês Charles Louis de Secondat (1689-1755), o barão de Montesquieu, publicou o seu clássico livro denominado “L’Esprit des lois”, em que advertia de forma sábia que:

 

Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.

 

A necessária tripartição das funções estatais apregoada por Montesquieu, por seu acerto e relevância, ganhou ampla adesão dos mais diversos países ao longo dos séculos e foi expressamente agasalhada pela Constituição Brasileira de 1988, que estabeleceu em seu art. 2º que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

 

No campo do Direito Penal a Carta Magna foi expressa ao determinar que compete ao Poder Legislativo Federal legislar em tal seara (art. 22, I), ou seja, toca ao Congresso Nacional definir as regras relacionadas à criminalização de condutas e aos meios de processá-las.

 

Contudo, apesar da clássica advertência de Montesquieu e da clareza do nosso texto constitucional, percebemos que a necessária separação das funções estatais não vem sendo obedecida em nosso país nos últimos tempos, havendo, em nossa opinião, uma indevida intromissão do Poder Judiciário em temáticas afetas aos Poderes Legislativo e Executivo, o que contribui para um indesejado cenário de fricção institucional, perplexidade social e consequente insegurança jurídica.

 

Parece evidente que muitos dos julgadores integrantes, sobretudo, de nossas cortes superiores, divergem pessoalmente do conteúdo das normas vigentes em sede de Direito Penal, razão pela qual deixam de aplicá-las, às vezes adicionando anomalamente em nosso ordenamento jurídico regras criadas por eles próprios, em nítido exercício de competência que não lhes toca.

 

Exemplo concreto de tal fato foi o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da descriminalização do porte de maconha para uso próprio, ocorrido em 26 de junho do corrente.

 

Conquanto o Brasil seja signatário da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, elaborada em Viena, no ano de 1988, e tenha consequentemente optado, pelo Poder Legislativo, considerar criminalmente ilícita a conduta de portar cannabis para consumo próprio, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659, houve por bem o STF descriminalizar tal conduta. Indo além, definiu critérios abstratos de diferenciação da conduta de usuários e traficantes, inovando o ordenamento jurídico brasileiro em detrimento do que havia sido positivado pelo Congresso Nacional por meio da Lei 11.343/2006, seguindo as regras estabelecidas constitucionalmente.

 

Não bastasse, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle administrativo interno do Poder Judiciário, tem reiteradamente se arvorado em legislador na área criminal e produzido, por meio de Resoluções, normas que afrontam o ordenamento legitimamente positivado pelo Poder Legislativo. Reconhecimento de pessoas, medidas de segurança, expedição de mandados de prisão e destinação de prestações pecuniárias são apenas alguns dos muitos assuntos que foram "normatizados" pelo CNJ nos últimos tempos, à revelia da Constituição Federal.
É certo que alguma coisa está fora da ordem.

 

Enfim, vivemos tempos de desnecessárias incertezas, o que nos faz desejar que o equilíbrio e a racionalidade no exercício das funções estatais apregoados por Montesquieu no século XVIII logo se transformem em realidade em nosso país.

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