Oito anos após a instituição de cotas em concursos para juiz, só 2 em cada 5 vagas reservadas a negros foram preenchidas nos Tribunais de Justiça dos estados e nenhuma nos Tribunais Regionais Federais.
A situação deixa o Judiciário ainda mais longe da equidade racial, em um país de maioria negra em que apenas 14,5% dos magistrados se definem como pretos ou pardos.
Para acompanhar o resultado da ação afirmativa, a Folha analisou 32 concursos concluídos desde junho de 2015, quando o CNJ aprovou norma que previa a reserva de ao menos 20% das vagas para candidatos autodeclarados negros.
Entre os Tribunais de Justiça, foram 27 concursos em 19 estados, que ofereceram 327 vagas reservadas a cotistas negros, das quais só 121 foram preenchidas por candidatos alvos da ação afirmativa.
A ociosidade de vagas aconteceu em 15 das concorrências, nas quais houve menos candidatos negros aprovados do que vagas reservadas a eles. Em alguns casos, isso aconteceu também entre os demais inscritos, mas em menor proporção.
Juíza auxiliar da presidência do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), Karen Luise de Souza afirma que é preciso investir na preparação dos candidatos negros para as provas. "Verificamos que existe aprovação para a primeira fase, mas nas subsequentes os candidatos acabam sendo eliminados", diz.
"As desigualdades presentes nas vidas desses candidatos não os colocam nas mesmas condições de competir: precisam trabalhar, não conseguem tantas horas de estudos nem possuem condições de investimento financeiro para realização de cursos, aquisição de livros."
A maior parte das vagas de cotas não preenchidas desde a edição da norma do CNJ está concentrada no Tribunal de Justiça de São Paulo. Foram 170 vagas reservadas para negros em três concursos na maior corte estadual do país, das quais apenas 25 (15%) foram preenchidas.
Nas vagas de ampla concorrência, também houve considerável ociosidade, mas em menor proporção ?42% das vagas nessa modalidade foram preenchidas.
O TJ-SP afirma que segue todas as regras do CNJ e de seus próprios editais e ressalta que candidatos negros com nota para a ampla concorrência são aprovados nessa modalidade, não sendo assim computados nas cotas.
Também nos tribunais de outras nove unidades da Federação houve sobra de vagas para cotistas negros em concursos para juiz. Foram os de Amapá, Amazonas, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Nos tribunais federais, a situação é mais grave. Nenhuma vaga da ação afirmativa foi preenchida nos cinco concursos para juiz concluídos desde a instituição das cotas.
Em dissertação de mestrado, Magai Dantas identificou como principais causas o baixo número geral de aprovados e o fato de a reserva de vagas ser aplicada somente à primeira fase do concurso.
À reportagem ela acrescenta a hipótese de a falta de representatividade no Judiciário amplificar o problema: sem referência de pessoas negras nos cargos de juiz, muitos negros nem sequer se inscreveriam.
"Se a pessoa não tem uma referência, nunca viu alguém na sua comunidade ou relacionamento que seja um magistrado, isso não se apresenta como um cenário possível", afirma ela, que é coordenadora-geral de capacitação de altos executivos da Enap (Escola Nacional de Administração Pública).
"A Defensoria e a AGU [Advocacia-Geral da União] têm muito mais pessoas negras em seus quadros", diz.
Ela também defende investimento na preparação de candidatos às cotas, assim como já ocorre no Itamaraty, no Senado e agora na AGU. Questiona ainda a efetividade de concursos que reiteradamente não preenchem uma parcela considerável de suas vagas.
"Um concurso para 170 vagas que seleciona só 25 é um desperdício de recursos", diz.
Para tentar aumentar a efetividade da ação afirmativa, o CNJ aprovou em agosto resolução que veda o estabelecimento de qualquer cláusula de barreira para candidatos cotistas, sem nota de corte na prova objetiva e bastando nota 6 para que sejam admitidos nas fases subsequentes.
Segundo a juíza auxiliar do CNJ, a resolução já teve impacto em um concurso no Maranhão.
Nesta terça-feira (14), o conselho instituiu outro dispositivo com a mesma finalidade ao aprovar a criação de regras para a implementação de um exame nacional para o ingresso de magistrados na carreira, proposta anunciada no mês passado pelo ministro Luís Roberto Barroso, presidente do órgão.
No caso de candidatos autodeclarados negros ou indígenas, serão considerados aprovados todos os que obtiverem ao menos 50% de acertos na prova objetiva. Para os demais, serão considerados ao menos 70%.
Ao analisar a evolução da proporção de juízes negros no país, relatório do CNJ divulgado no ano passado concluiu que, mantido o ritmo atual, a representatividade só será atingida nos tribunais entre os anos de 2056 a 2059.
O parâmetro de equidade foi calculado a partir da população apta a ocupar o cargo de juiz segundo três critérios: ser brasileiro nato ou naturalizado, ter mais de 18 anos e menos de 70 anos de idade e possuir curso superior em direito. Os negros seriam 22,2% dessa população.
Usando-se o parâmetro por estado, o relatório conclui que só seis Tribunais de Justiça já atingiram o parâmetro local de representatividade racial dos magistrados: os de Amapá, Bahia, Ceará, Piauí, Pará e Tocantins.
Em 15 há déficit de representatividade, e em 6 tribunais o resultado não pode ser calculado por falta de informação (Paraíba, Alagoas, Acre, Amazonas, Mato Grosso e Rio de Janeiro).
Na Justiça Federal, os dois únicos tribunais que encaminharam os dados da magistratura com a informação de raça/cor, o TRF da 4ª e da 3ª regiões, têm percentual abaixo do parâmetro esperado.
A juíza auxiliar do CNJ afirma que é preciso avançar na equidade, mas que ela não deve se resumir à representatividade negra na magistratura.
"Equidade é olhar para as partes, para os fatos, para nossas relações e reconhecer que o racismo pode estar presente", diz. "Reconhecer que o racismo precisa ser eliminado. Eliminar o racismo é promover equidade."