UNIÃO DOS PALMARES, AL (FOLHAPRESS) - "Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo", a frase do poeta José Carlos Limeira é bem comum de ser ouvida em saraus, mobilizações e atos que envolvam temáticas relacionadas à luta contra a desigualdade racial. Mas as citações ao mais famoso quilombo brasileiro não param aí.
O local já inspirou filmes, feriado, peças de teatro, livros, teses de mestrado, sambas e uma infinidade de outras manifestações culturais. Mas porque Palmares se tornou tão emblemático?
"O movimento negro foi capaz de trazer a história de Palmares para uma discussão política e acadêmica", afirma Zezito Araújo, professor aposentado de história da Universidade Federal de Alagoas.
Além de pesquisar o local, ele fez parte da comissão que propôs a criação da Fundação Cultural Palmares, em 1988. O órgão é o responsável, entre outras coisas, por reconhecer as comunidades quilombolas.
Segundo o professor, foi importante esse processo de resgate da história de Palmares, que ficou por muitos anos esquecida e foi mal analisada ao longo de todo o período colonial e nas décadas que antecederam o fim da escravidão.
"Quando você coloca Palmares nessa perspectiva, dá uma dimensão que vai além dessa ideia de fuga, que vai além dessa briga constante de colonizador e escravizados", diz. Zezito afirma que a ideia sobre liberdade já estava presente na cabeça daquelas pessoas.
Após a década de 70 do século passado, a atuação do movimento negro ajudou a dar vigor para a relevância da história do local. Desde 2011, o dia 20 de novembro passou a ser feriado em diversos estados e cidades do Brasil, como o Dia da Consciência Negra.
A data remete à morte do maior líder do quilombo, Zumbi dos Palmares (1655-1695), e busca reforçar a resiliência contra a escravidão e o protagonismo dos negros no processo de abolição. Também virou símbolo de luta contra as desigualdades raciais atuais, ainda sequela dos mais de 300 anos de regime escravagista.
"Palmares, para mim, é um espaço de reconstrução da trajetória dos afrobrasileiros. Nós reconstruímos a nossa história negra a partir desses referenciais", diz o pesquisador.
Outro ponto para entender o simbolismo de Palmares é que, para além de ser uma comunidade de escravizados fugidos, o local se tornou um ponto importante de experiências vividas entre grupos étnicos e linguísticos diferentes, especialmente os bantos.
Muitas vezes, esses grupos distintos eram rivais na África pré-colonização. Trazidos ao Brasil e misturados, tiveram que desenvolver uma relação comunitária e adaptar as diferentes culturas à nova realidade da diáspora. Esse processo pode ter inspirado a formação de outros quilombos.
"Palmares vai além da historiografia oficial. Eu vejo Palmares como a base da formação da sociedade brasileira. Nos trouxe uma experiência, entre muitas outras, até das micropropriedades que se contrapunham ao grande latifúndio", analisa.
A comunidade durou quase cem anos. Entre 1597 e 1695, resistiu a investidas da coroa portuguesa e de delegações holandesas, que tentaram por muitas vezes destruir o local, sem sucesso.
O quilombo reuniu na serra da Barriga ?na época em Pernambuco, hoje região pertencente ao estado de Alagoas? milhares de pessoas. Os números não são precisos. Algumas estimativas chegam a falar na presença de até 20 mil quilombolas no auge da formação.
"Palmares tem particularidades. Foi sem dúvida alguma o quilombo mais longevo da história das Américas. Tinha uma extensão territorial muito significativa e uma relação entre os mocambos [comunidades menores dentro dos quilombos] sofisticada", diz Ynaê Lopes dos Santos, professora de história da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Em sua maioria, a população palmarina era formada por africanos que fugiam do processo de escravidão. Entretanto, ao longo de um século de existência, muitas pessoas negras nasceram e estiveram durante toda a vida em Palmares, ou seja, tiveram uma experiência de liberdade, mesmo em meio ao período escravagista.
Ynaê aponta que pesquisas mais recentes têm mostrado que, talvez, o termo "quilombo" nem seja o mais adequado para pensarmos a magnitude do que foi esse local. "Palmares poderia ser visto muito mais como um reino africano", afirma a professora da UFF.
"À medida que vai se criando um mocambo populoso, tem-se uma percepção de que há uma chance de uma disputa mesmo, de uma organização estatal, [inspirada] pelos princípios de chefiatura de vários povos quibundos, da África Central."
A constituição de Palmares, e seu posterior crescimento populacional, está atrelada a um duplo movimento. Primeiro foi a intensificação do tráfico transatlântico, sobretudo de pessoas da África Central, região dos atuais Congo e Angola, para essa região do nordeste brasileiro, durante o século 16, para a produção de açúcar.
Outro ponto é que essa intensificação do tráfico ocorreu no momento em que essa parte do Brasil era controlada pelos holandeses, após uma invasão. Isso, em grande medida, desestabiliza as forças coloniais portuguesas e é lido pelos escravizados como uma oportunidade.
Vale ponderar que existe pouca informação sobre como os próprios quilombolas se definiam e viam a sua situação. Por isso, a maior parte do que se sabe sobre eles é fruto de documentações elaboradas pelas forças coloniais, ou seja, a partir da visão de quem operava o escravismo e queria destruir essas comunidades.
Pela duração, tamanho e incômodo que causou nas autoridades escravagistas que atuavam no Brasil, Palmares foi tema de muito documentos oficiais e cartas entre brasileiros e portugueses ?o que também ajudou o quilombo a ser mais conhecido do que outros na história do Brasil.
"Onde houve a escravidão, houve resistência. Sejam revoltas, quilombos, fuga individual, coletiva, busca por alforria. E a gente tem uma história de 'uns Palmares' por aí, pós-Palmares, que a gente não sabe muito bem", avalia Danilo Marques, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Universidade Federal de Alagoas.
Segundo ele, o legado de Palmares é, justamente, a ideia de construção de uma sociedade livre para a população negra, mas também para os povos originários, na qual seja respeitado o direito à terra.
"Atualizando isso para essa cultural política dos últimos 50 anos que o Brasil teve, estamos falando dessa busca de fato de uma sociedade constituída por um projeto de nação, em que não se sobreponha uma minoria com poder em cima da maioria. Estamos falando de trabalhadores, particularmente trabalhadores negros, que construíram esse país", avalia.
O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford.