No mesmo dia em que se comemora os 134 anos da Proclamação da República no Brasil, uma das manifestações culturais brasileiras mais ricas e fortes – mas também muito estigmatizada – celebra um marco de 115 anos: o Dia Nacional da Umbanda. Cercada de misticismo e dúvidas para muitas pessoas, a religião “transborda” brasilidade, de acordo com especialista.
A data, que já era consagrada às comemorações da umbanda há décadas, passou a ser politicamente reconhecida apenas em 2012. A Lei de N° 12.644, que decreta o Dia Nacional da Umbanda a ser comemorado anualmente em 15 de novembro, foi assinada pela então presidente Dilma Rousseff em maio daquele ano, e seu simbolismo se fortalece desde então.
A história mais difundida sobre a “criação” da Umbanda é a de que, no dia 15 de novembro de 1908, o jovem Zélio Fernandino, um garoto branco de 17 anos, acometido de uma doença misteriosa, foi encaminhado para a Federação Espírita de Niterói. Lá, foi tomado pelo espírito indígena Caboclo das Sete Encruzilhadas, que ditou a criação da nova religião em conflito com o elitismo do espiritismo kardecista.
Esta narrativa, no entanto, tem sido revista e criticada por pesquisadores e religiosos contemporâneos da Umbanda, já que apaga um histórico diverso da religião brasileira – formada de maneira orgânica – e embranquece sua estrutura.
Marco importante, mas ilegítimo
De acordo com Rodrigo Queiroz, sacerdote da Umbanda, filósofo e escritor de livros sobre a religião, apesar da importância da data que marca a criação da religião, sua construção não é legítima e apaga boa parte da história de povos originários e escravizados.
“A Umbanda é uma religião constituída, predominantemente, pela influência afro-indígena, e historicamente, tudo o que vem do preto e do indígena é cercado pelo racismo, pelo preconceito e pela perseguição. No âmbito das religiões, a gente chama isso de racismo religioso”, explica ele.
Queiroz afirma que a concepção do que hoje é entendido como a Umbanda foi criada ao longo de séculos e de forma orgânica. Ter uma data em que se crava a criação de uma religião, então, é dar visibilidade, mas também é apagar histórias muito mais antigas.
“Sessões de transe dessa mistura mística entre as tradições religiosas africanas e indígenas em território brasileiro misturados com o catolicismo foram se forjando ao longo dos séculos no Brasil. Então, quando aconteceu aquilo em 1908, passaram a chamar de Umbanda, porque já existia um ritual em Angola que usava esse termo para definir um ritual bem parecido com o que a gente faz aqui”, conta o filósofo.
“Com marco, eu quero dizer que surge uma nova forma de fazer um espiritismo de umbanda, um espiritismo de terreiro, mas até então, não tinha se falado a palavra ‘Umbanda’, que apareceu alguns anos depois para definir aquilo que estava acontecendo em paralelo há séculos”, complementa ele.
Ainda assim, Queiroz explica que a história de Zélio ajudou a consolidar a Umbanda e a dar força à religião. “O marco do dia 15 de novembro de 1908 separa o espiritismo de um novo modelo que já existia no gueto carioca, por exemplo. Hoje, há muita influência do modelo que o Zélio ajudou a formar, mas é importante enfatizar que essa é uma construção produzida, que não é legítima. Não existe um dia em que tudo começou, porque aconteceu de forma muito orgânica ao longo dos cinco séculos de colonização do país”, finaliza o sacerdote de Umbanda.
A história de 1908
Zélio Fernandino era filho de uma família tradicional de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Em 1908, aos 17 anos, o jovem branco se preparava para seguir carreira militar na Marinha, quando ficou paralisado do quadril para baixo e ficou acamado por dias.
Pouco tempo depois, declarou que estaria curado no dia seguinte, o que de fato teria acontecido, surpreendendo os médicos que o atendiam. Surpresos e suspeitando de um “distúrbio espiritual”, seus familiares decidiram recorrer a padres católicos e exorcismos, que não tiveram efeito.
A última esperança estava, então, no espiritismo. Zélio foi levado até a Federação Espírita de Niterói e o médium presidente da entidade teria organizado uma sessão com o jovem, tomado por um espírito indígena, o Caboclo das Sete Encruzilhadas.
Outras manifestações de espíritos ancestrais – pretos-velhos e caboclos – também foram observadas, segundo relatos da época, e classificados como “atrasados” pelo dirigente da sessão.
“Isso criou uma discussão entre os dirigentes e os espíritos. Afinal, por que esses espíritos, apesar de não serem o diplomado europeu, não teriam o que ensinar para eles? Por que essas pessoas simples não poderiam se manifestar naquele local?”, questiona Rodrigo Queiroz.
“Resumidamente, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, então, teria dito que ‘já qu não podemos vir aqui, a partir de amanhã, na casa deste rapaz [Zélio], a gente iniciará uma reunião em que todos serão bem-vindos. Todo mundo que quiser se manifestar terá espaço para falar. Quem sabe mais, ensinará, e quem sabe menos, será acolhido, porque essa é a vontade de Deus’. No dia seguinte, de fato, Zélio incorpora esse espírito novamente e a casa estava lotada de gente, e ali se criava a Umbanda”, relata o filósofo.
Umbanda e identidade nacional
De acordo com Queiroz, a Umbanda é a religião que “transborda brasilidade”, já que foi construída a partir da diversidade cultural presente no país.
“Ter um dia reconhecido politicamente como o Dia Nacional da Umbanda é fundamental para trazermos essa pauta para a discussão. A Umbanda é uma religião genuinamente brasileira, é um construto da brasilidade religiosa do nosso território. Essa forma de religiosidade só acontece e só se formou por conta desse encontro de culturas que só aconteceu no Brasil”, diz ele.
O escritor afirma conhecer a religião é muito importante para que os estigmas e os preconceitos a respeito da Umbanda passem a deixar de existir – ou, pelo menos, reduzam. Em seu lançamento mais recente de Queiroz, o livro “Umbanda para Iniciantes”, publicado pela Editora Citadel, o sacerdote responde às perguntas mais básicas que são feitas quando uma pessoa visita um terreiro pela primeira vez com a ajuda de realidade aumentada.
Para ele, o preconceito é a prova de que a população se distancia cada vez mais da brasilidade e de sua identidade nacional. “O preconceito, a intolerância religiosa e o racismo religioso revelam justamente um afastamento do sujeito brasileiro da sua própria identidade cultural, espiritual e social, que é o que a Umbanda transborda e materializa na sua religiosidade”, explica.
O sacerdote de umbanda reforça: “Quando estamos falando sobre Umbanda, estamos falando sobre uma religião como qualquer outra e que, por ser religião, só acredita que o único caminho existencial é o caminho de amor, de acolhimento, de conexão com a natureza e com o sagrado. Espero que todos possam criar uma noção de que uma sociedade cada vez mais potente só pode acontecer se a gente se pautar no reconhecimento do valor do outro pelo que ele é e na manifestação do seu melhor”.