Militar que não marchou em campos de batalha, foi pintor, desenhista, professor e jornalista. Também foi líder operário, abolicionista e republicano em um Brasil escravista e que vivia sob uma monarquia. Vereador em Salvador, deixou a política e se tornou pioneiro nos estudos afro-brasileiros.

Manuel Raymundo Querino foi um intelectual negro de múltiplas facetas. Nadou contra a corrente, abraçou oportunidades e deixou sua marca no Brasil do final do século 19 e início do século 20, um país profundamente desigual e ancorado no racismo. Morreu há 100 anos, em 1923, sem ver sua obra reconhecida.

Nascido em 1851 em Santo Amaro, cidade do Recôncavo baiano, Querino era filho de negros libertos e ficou órfão aos quatro anos, após pai e mãe morrerem em uma epidemia de cólera que assolou a cidade.

Foi tutelado por Manuel Correia Garcia, professor da Escola Normal de Salvador que não transformou o menino negro em criado: Querino foi alfabetizado e fez o curso primário, passos determinantes para sua trajetória intelectual.



Aos 17 anos, foi recrutado a se unir às tropas brasileiras que lutavam na Guerra do Paraguai. Seguiu para Pernambuco, Piauí e depois foi para Rio de Janeiro, onde atuou na escrita do batalhão. Como tinha a habilidade de ler e escrever, coisa rara na época, não foi mandado para o front.

Com o fim da guerra, em 1870, deixou o Exército e voltou para Salvador para retomar os estudos, época em que trabalhou como pintor decorador. Foi da primeira turma do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, e depois estudou desenho e arquitetura na Academia de Belas Artes.

Associou-se à Sociedade Protetora dos Desvalidos em 1877, primeira associação civil formada por negros no Brasil que funcionava como uma espécie de Previdência, mas se afastou da entidade três anos depois. Mais tarde, seria um dos fundadores do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.

Ao mesmo tempo que construía uma trajetória sólida como professor de desenho geométrico, Querino se aproximou da política. Foi um dos fundadores da Liga Operária Baiana, cooperativa que unia operários da construção civil.

"Querino foi um trabalhista à moda tropical. Atuou em defesa da emancipação dos trabalhadores, classe que era composta majoritariamente por negros livres ou libertos", afirma a historiadora Graça Leal, professora da Uneb (Universidade do Estado da Bahia) e autora de "Manuel Querino: entre letras e lutas".

A política também o aproximou do jornalismo. Lançou o jornal A Província e escreveu para o Gazeta da Tarde, onde deixaria clara sua faceta abolicionista e republicana. Em 1890, foi um dos fundadores do Partido Operário, um dos primeiros do país formado por trabalhadores, que teve vida curta.

Aliado aos liberais, se tornou conselheiro municipal, posto equivalente ao de vereador. No cargo, esteve envolvido em debates sobre educação, obras de urbanização e ordenação dos serviços públicos. Assumiu um segundo mandato entre 1897 e 1899, quando deixou a política.

Organizador do livro "Manuel R. Querino: seus artigos na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia", o historiador Jaime Nascimento afirma que Manuel Querino se afastou da política pelo temperamento indomável e pouco dado aos conchavos da atividade.

"Querino deixou o mundo político porque viu que ali ele teria pouca chance. Muda a estratégia e vai se dedicar à pesquisa e discutir com os intelectuais. Sua trajetória mostra que ele foi homem múltiplo, que teve várias vidas em uma só", afirma Nascimento.

O afastamento da política também é resultado da sua desilusão com a República, proclamada em 1889. Na avaliação de Querino, a nova forma de governo não entregou o que prometeu e não trouxe mudanças estruturais, sobretudo para os trabalhadores e negros no pós-abolição.

Seu trabalho intelectual resultou em uma série de livros e artigos que analisam manifestações populares e da cultura afro-brasileira. Em 1909, ele lançou "Artistas Bahianos" e "Artes da Bahia", livros que contam a história da pintura, escultura e arquitetura da Bahia por meio da trajetória de seus artistas.

São obras que fazem de Querino uma espécie de fundador da história da arte baiana, conforme explica Luiz Freire, professor da Escola de Belas Artes da UFBA: "Ele queria tirar esses artistas da poeira do esquecimento e fez um trabalho de fôlego. Não fosse por ele, muita coisa teria se perdido."

Querino produziu estudos sobre o candomblé, religião da qual era adepto, e foi um dos pioneiros em estudos da antropologia culinária, lançando o livro "A Arte Culinária na Bahia". Também foi um memorialista das festas da Independência na Bahia.

Dedicou-se à pesquisa sobre a contribuição dos negros na formação da civilização do Brasil. Assim, tornou-se um dos pioneiros nos estudos afro-brasileiros em uma época em que predominava uma lógica do racismo científico e de defesa de um "branqueamento" da sociedade.

Um de seus artigos mais importantes foi "O Colono Preto como Fator de Civilização Brasileira", apresentado no Sexto Congresso Brasileiro de Geografia em 1918, e que destacou o trabalho do negro e do mestiço como fator essencial da riqueza econômica do Brasil.

"Ele foi o primeiro intelectual a mostrar importância dos negros na construção na sociedade brasileira. De certa forma, Querino é uma espécie de predecessor de Gilberto Freyre", afirma o pesquisador e produtor cultural Benito Juncal, que planeja um documentário sobre a trajetória do intelectual baiano.

Querino publicou dez livros em vida. Não ficou rico, mas não passou por privações na vida adulta. Morava no bairro do Matatu, em Salvador, quando morreu em decorrência de uma malária em fevereiro de 1923.

Seu trabalho foi resgatado nos últimos anos pelo empenho de intelectuais como Graça Leal, Jaime Nascimento, Jeferson Bacelar, Luiz Freire e Sabrina Gledhill. Em 2022, o nome do intelectual foi inspiração para batizar o Projeto Querino, podcast coordenado pelo jornalista Tiago Rogero, que revê a história do Brasil sob a perspectiva dos negros brasileiros.

Os livros sobre as artes e artistas da Bahia foram relançados mais de um século depois, em 2018, em iniciativa da Câmara Municipal de Salvador. O centenário de sua morte foi rememorado em uma missa na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, cuja irmandade ele foi um dos membros.

Sua vida e obra, diz o historiador Jaime Nascimento, merece ser conhecida e reconhecida: "Querino foi um homem que foi salvo pela educação e combateu o sistema por dentro. Sua trajetória é a imagem do improvável, do impossível".

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