“Acho impossível não começar celebrando, porque todo e qualquer avanço ou conquista em prol da diversidade e a favor do diálogo, de aceitação e de amor precisa ser celebrado”, comemora o agitador cultural e artista Rafa Ventura sobre a decisão do Vaticano em permitir que padres católicos romanos administrem bênçãos a casais homoafetivos e em situação irregular.
O documento foi assinado pelo cardeal Victor Manuel Fernandez, chefe do Dicastério para a Doutrina da Fé do Vaticano, e aprovado pelo Papa Francisco em uma audiência privada com o cardeal e outro funcionário do escritório doutrinário na segunda-feira (18/12).
Dentre as determinações, está o direito de recusa dos padres a não concederem a bênção – ainda que estejam proibidos de impedir "a entrada [em igrejas] de pessoas em qualquer situação em que possam procurar a ajuda de Deus através de uma simples bênção” –, e a não vinculação com o Sacramento do Matrimônio e/ou cerimônia de casamento civil, devendo ser realizada sem nenhuma das “roupas, gestos ou palavras próprias de um casamento”.
“Esse documento, na verdade, esclarece uma dúvida sobre dar a bênção casais homossexuais ou a casais em situação irregular – que é um termo usado para pessoas que já foram casadas, se divorciaram e tiveram uma nova união, ou para casais hetero que estão juntos, mas não contraíram o matrimônio na Igreja. É um sinal do Papa Francisco de abertura, de acolhimento e de sensibilidade aos casais e, consequentemente, às famílias provenientes desses casais”, explica um dos coordenadores do Grupo Diversidade Católica BH, Felipe Marcelino.
De acordo com o Padre Miguel Ângelo Fiorillo, que trabalha há 40 anos na Paróquia de Nossa Senhora da Boa Viagem, em Itabirito (MG), na Região Central do estado, a decisão do Vaticano faz uma distinção entre bênçãos rituais/litúrgicas e bênçãos espontâneas/devoções populares.
“Você compra um carro, ou constrói uma casa, encontra um padre na rua e pede para ele abençoar: isso é a devoção popular. Este documento está se referindo à bênção litúrgica e contempla a possibilidade de acolher, também, aqueles que não vivem de acordo com as normas da doutrina moral cristão, mas que humildemente pedem para ser abençoados. Ele acolhe essas pessoas, contanto que haja divergência com o rito do Sacramento do Matrimônio. Não pode haver nenhuma semelhança entre eles”, afirma.
Avanço da Igreja Católica
A notícia da decisão foi recebida com muita alegria por membros de grupos LGBTQIA+ que atuam dentro da Igreja Católica. Os coordenadores do Grupo Diversidade Católica BH, da Paróquia São Francisco das Chagas, localizada no bairro Carlos Prates, celebraram em conjunto.
“A pauta da diversidade na Igreja Católica é muito delicada, mas percebemos, nesse avanço com o Papa Francisco, uma real acolhida das pessoas na sua totalidade. Entendemos que a Igreja, hoje, faz um exercício de acolhida indiferente da orientação sexual, indiferente de qualquer outra coisa, mas uma das grandes propostas do papa Francisco é justamente uma igreja Sinodal, uma igreja em saída que acolhe todas as pessoas que querem exercer a sua fé”, conta Wendel Santos, um dos coordenadores.
“A gente vem acompanhando o papa e ele já tinha dado muitos sinais de acolhida às pessoas LGBT em diversos âmbitos, e esse é mais um sinal do Papa Francisco de abertura, de acolhimento e de sensibilidade aos casais e consequentemente às famílias provenientes desses casais”, complementa Felipe Marcelino, referindo-se a uma decisão do Papa Francisco anunciada em novembro deste ano permitindo que fiéis transgênero pudessem ser batizados e atuassem como padrinhos durante os batismos na Igreja Católica.
O Padre Miguel Ângelo Fiorillo afirma que o Papa Francisco deve ser elogiado, uma vez que foram as ações dele ao longo dos dez anos de atuação que promoveram a abertura na Igreja e possibilitou a decisão do Vaticano. Para ele, quanto mais acolhedora a Igreja, maior o número de fiéis em busca de viver em conformidade com os seus ideais.
“O grande aplauso é para a visão pastoral teológica do Papa Francisco e para a maneira que ele age nessa abertura. Quem quer a bênção, quer a presença de Deus, e para viver da presença de Deus, é preciso viver em conformidade com aquilo que Deus pede daqueles que nele acreditam. Eu penso que vai ser um ganho, porque se um casal de união irregular, ou do mesmo sexo, me procura, o que vou fazer é abençoá-lo de maneira discreta, como prevê o documento, sem que haja aquela proximidade com o que é usado tradicionalmente na Igreja para matrimônios”, afirma.
Felipe Marcelino conta que vários casais do Grupo Diversidade Católica BH já manifestaram o desejo de reconhecimento por parte da Igreja sempre quando surge a questão da união, e que apesar de a decisão se mostrar positiva para suas circunstâncias, ainda precisarão pensar e maturar a ideia.
“Como a notícia ainda está muito recente, eu acredito que ainda vai precisar de um tempo para amadurecer essa orientação e para romper um certo tabu. Isso é importante para também não haver confusão. Por outro lado, a partir de agora muitos casais LGBT, de dentro e fora da Igreja, vão refletir sobre essa situação”, diz ele.
“Mas é importante comemorarmos porque, se coisa de duas décadas atrás, esse assunto mal era falado e totalmente rejeitado, agora vemos pessoas dentro da Igreja se organizando, propondo essa discussão e mostrando que também fazem parte da Igreja, que passou a mostrar sensibilidade com esse grupo.São indivíduos que buscam a bênção de Deus e não há sentido em se negar uma bênção a quem deseja ela. Deus é o protagonista da bênção, não a Igreja, então não faz sentido ela vetar esse acesso?”, complementa.
“Acredito muito, e não só eu, como todas as pessoas católicas que fazem parte da população LGBT, que foi um avanço, porque agora nós temos um documento oficial da Santa Fé falando sobre essa bênção. Então é um caminho de abertura, e acredito que nos próximos tempos, isso com certeza será visto com muito mais naturalidade”, acrescenta Wendel.
“Também é um espaço para que outras paróquias também possam fazer esse exercício, porque antigamente era uma coisa muito tímida, muito arriscada, e às vezes as pessoas tinham muito medo de se expor. Então, com o aval da Santa Fé, com esse documento do Papa Francisco, é um caminho de abertura e de acolhida para todas as pessoas que queiram participar de uma comunidade de fé católica”, completa.
Limitações
Apesar dos avanços, ainda há uma série de críticas sendo feitas à decisão do Vaticano, já que o documento impõe diversas limitações quanto às bênçãos para casais homoafetivos.
“Obviamente, é importante celebrar e comemorar, mas com um olhar crítico, porque boa ou ruim, essa decisão vem para aproximar – ou reaproximar – os fiéis. Então, entendo [essa declaração] muito mais como uma estratégia ou um artifício para tentar dialogar com essa nova geração, do que como uma mudança de paradigma ou de dogma – o que seria louvável enquanto instituição perante à sociedade”, atesta Rafa Ventura.
Até mesmo nos grupos LGBTQIA+ da Igreja, a pequeneza dos avanços foram pauta de discussões.
“É claro que muita gente pode enxergar que isso ainda era muito pouco, mas na nossa avaliação, percebemos que já é um avanço, porque a gente vai observando gradualmente um reconhecimento e um diálogo maior, além de uma compreensão mútua: nós entendemos que a Igreja é uma estrutura milenar e diversa, sujeita a vários contextos internos, ao mesmo tempo em que a Igreja passa a ter essa sensibilidade dessas pessoas, desses casais, que procuram a Igreja pedindo uma bênção”, diz Felipe Marcelino.
“A doutrina da Igreja não mudou, e acho que isso tem que ficar muito claro para não haver confusão. Esse exercício de acolhida é uma benção que está fora do rito sacramental, e ela não vai ser concedida em horário de celebração. Não tem esse vínculo previsto nos ritos canônicos. O que vai acontecer é que, a partir de agora, as pessoas que quiserem uma bênção, o padre poderá conceder, sim, de forma muito clara e não mais velada com o intuito de que pessoas que achem importante esse exercício da fé, e queiram ser abençoadas, poderão solicitar e serão bem recebidas para essa bênção”, complementa Wendel Santos.
O Padre Miguel Ângelo deixa claro: “A Igreja não tem o poder de mudar o pensamento de Jesus e de Deus. Lá no livro do Gênesis, Deus criou o homem e a mulher, e depois disse ‘crescei-vos, multiplicai-vos e povoai a Terra’. Essa é a concepção e isso é uma verdade Sagrada, e a gente não pode rasgar essa página da Bíblia. Mas se um casal do mesmo sexo me procura, a gente vai agir de coração aberto”.
Espera
Ainda há receio em se comentar sobre a decisão do Vaticano, justamente por conta do medo da reação de retaliações. O próprio papa já foi alvo de diversas críticas de conservadores em outubro, quando havia sugerido a bênção a casais homoafetivos pela primeira vez.
“Muitos padres ainda não vão se manifestar; nesse início vai ter muita prudência, porque existem grupos muito radicais, ligados à extrema direita e a uma ala muito conservadora, que sempre procuram invalidar essas situações, gerando tensões internas e tudo mais”, conta Felipe Marcelino.
“O documento é muito novo, então vamos falar num momento mais oportuno. A pauta ainda será debatida com a comunidade, nos conselhos pastorais, com os agentes de pastoral e com a pastoral da família. O documento nos pegou de surpresa, então ainda vamos estudá-lo, enquanto já aplaudimos essa abertura. Nós, que estamos aqui no campo pastoral no dia a dia, convivemos com essas situações e realidades, então é bom ver que o documento também lembra que, se o relacionamento com Deus está obscurecido pelo pecado, sempre é possível pedir uma bênção”, acrescenta o Padre Miguel.
Para Rafa Ventura, a retaliação de grupos da ala da extrema direita é algo relativamente positivo, já que atesta o progressismo da decisão.
“Os comentários que já vi sobre essa decisão parecem que, na verdade, ter saído do esgoto. As pessoas não estão comentando, mas sim vomitando. Mas acho que isso até reforça o quão importante esse passo é só de provocar essa discussão e de cutucar para que se pense, se fale e se entenda sobre essa situação. Uma retaliação é inevitável, e acho que a potência dessa decisão resida justamente aí”, afirma.
A Arquidiocese de Belo Horizonte também foi consultada, mas ainda não emitiu um posicionamento. A reportagem aguarda retorno.
Distanciamento da Igreja
“Pessoalmente, essa decisão não me cabe e não me sinto representado por ela, até porque pensando na Igreja enquanto instituição e no poder que ela ainda exerce na nossa sociedade, eu espero sempre muito mais. Entendendo essa interpretação bíblica desses dogmas com os quais ela dialoga e representa, ainda acho pouco. Se for levar a palavra ao pé da letra, ainda falta bastante quando se trata de amor e de aceitação”, comenta Rafa Ventura.
Para ele e para seu círculo social, o distanciamento da Igreja Católica é inevitável devido ao histórico da instituição para com a população LGBTQIA+.
“Um dos comentários que mais vi na minha bolha LGBT, é que a decisão não é necessariamente um motivo para se celebrar, porque não queremos buscar a aprovação de uma instituição que, durante anos, nos nega aceitação e que, ainda hoje, tem um discurso muito esquisito e pouco claro”, afirma.
“O que a gente precisa é de ações afirmativas. Eu não quero ser abençoado. Eu quero ser contemplado, quero ser política, social, cultural e verdadeiramente aceito. Então, fica a expectativa de que este tenha sido um primeiro passo para algo maior e verdadeiramente afirmativo”, completa ele.