O período de inscrições para o primeiro Concurso Nacional Unificado (CNU) já foi iniciado na última sexta-feira (19/1), mas ainda ficaram algumas dúvidas a respeito do processo de heteroidentificação, que, aparentemente, apresenta falhas e dificulta a aprovação de candidatos pardos. É o que explica Israel Mattozo, advogado e professor especialista em direito administrativo.

Para ele, os critérios adotados pelo Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) e pela Fundação Cesgranrio, responsável pela organização do CNU, estimulam discussões sobre colorismo e afroconveniência, enfraquecendo os propósitos da Lei 12.990/14 – que estabelece a reserva de 20% das vagas dos concursos públicos para pessoas negras – e da criação das cotas.



“É inegável que fraudes precisam ser coibidas a qualquer custo. Mas em um país que pela primeira vez teve a maioria de sua população se declarando parda, como mostrou o Censo 2022 do IBGE, é fundamental que a autodeclaração e o sentimento de pertencimento à raça negra – que inclui pretos e pardos – não sejam limitados por um processo sem um mínimo de clareza. Do contrário, o combate ao racismo, que deve ser perene, ficará enfraquecido”, afirma Mattozo.

O advogado explica que é importante que o CNU tenha todas as instruções muito claras, principalmente por ser o primeiro desse modelo e que, apesar de parecer inclusivo por tratar de política de cotas, é mais provável um processo de heteroidentificação que ignore ou omita informações como ancestralidade e aprovação em outros concursos seja excludente.

“Há uma gigantesca mobilização no país pela afirmação da identidade, motivada pelo próprio governo federal, justamente para tentar corrigir as falhas históricas contra o povo preto e pardo, e isso teve um reflexo muito positivo. Até então, as pessoas pardas negavam essa identidade, mas com essa mobilização elas começaram a se reconhecer como tal”, diz ele.

“Mas o grande problema desse concurso unificado é que, quando ele [governo federal] publica este edital que cita validação única e exclusivamente por aspecto fenótipo, cria um ambiente que dificulta a aprovação de pessoas pardas pelas bancas de heteroidentificação, porque nega ancestralidade, documentos, aprovações em outros concursos. Uma pessoa parda sem traços negróides ainda pode ter pai ou mãe que tenham esses traços, o que certamente impactou diretamente na sua formação, mas ainda assim corre o risco de não poder participar dessa política [de cotas]. É um tiro no pé que pode, inclusive, afetar todas as políticas públicas em nível federal, estadual e municipal, porque outros concursos podem querer adotar o mesmo método”, complementa.

De acordo com os textos dos editais do CNU, os candidatos que quiserem concorrer às vagas reservadas terão que se autodeclarar negros no momento da inscrição. Com a aprovação nas provas discursivas, haverá uma convocação por meio de novo edital para aferição presencial da autodeclaração diante de uma Comissão de Heteroidentificação formada por cinco membros e seus suplentes.

Apesar de a presença da comissão de heteroidentificação ser comum e regulamentada em concursos públicos após o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade da Lei 12.990/2014 pelo STF (ADC-41), os editais do CNU não estipularam como será feita a avaliação, determinando apenas que “utilizará exclusivamente o critério fenotípico” e que “não serão considerados quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados, inclusive imagens e certidões referentes à confirmação em procedimentos de heteroidentificação” realizados em outros concursos, nem será admitida “prova baseada em ancestralidade”.

Mattozo explica como os oito editais divulgados no dia 10 de janeiro trazem uma série de dúvidas que, se não forem sanadas ou corrigidas a tempo, poderão resultar em milhares de questionamentos judiciais do concurso.

“Já lidamos com centenas de outros casos em que a negação da autodeclaração por parte da banca foi reformada pela Justiça porque as bancas não adotam critérios transparentes e objetivos em seus julgamentos”, comenta ele.

“Não tenha dúvida de que, se o edital não for alterado, haverá uma enxurrada de judicialização. Serão de 2 a 3 milhões de inscritos, então imagine quantas pessoas serão prejudicadas por este critério de aprovação exclusiva por avaliação de fenótipo”, acrescenta.

O jurista também questiona sobre a necessidade de a avaliação se dar de forma presencial, já que, por se tratar de um concurso nacional, muitas pessoas podem não ter acesso facilitado aos locais de prova e ao processo de heteroidentificação.

“O MGI estipula que o CNU deverá ter de 2 a 3 milhões de inscritos, com provas realizadas em 220 cidades. Na coletiva de lançamento do certame, a ministra Esther Dweck garantiu 95% da população brasileira está a no máximo 100 km – o que já é muita coisa – de uma das cidades escolhidas. Mas isso dificilmente vai se repetir no processo de heteroidentificação. Deveria ter sido prevista a possibilidade de o procedimento ser feito sob a forma telepresencial, como, inclusive, está disposto no artigo 18 da Instrução Normativa do MGI”, afirma.

Apesar das falhas, Mattozo afirma que ainda dá tempo de retificar o edital, implementando outras formas de comprovar se um candidato é, ou não, pardo.

“É muito importante diminuir a chance de injustiça, e ainda bem que o edital não tem força no sentido legislativo. Nós sempre dizemos que o edital é a Bíblia do concurso público, mas uma lei tem mais poder do que está escrito lá. Numa situação como essa, é importante lembrar que tudo aquilo que é federal serve como referência para aquilo que é estadual e municipal, correndo o risco, ainda, de haver remodulação do funcionamento das bancas de heteroidentificação, influenciando o país inteiro em todos os concursos públicos. Isso é sério, mas ainda dá tempo de fazer uma retificação”, completa o advogado.

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