“No Carnaval, as pessoas se permitem dançar, sentir à vontade para serem o que são, e essas coisas, às vezes, ainda são vistas por muitos homens como uma permissão. Mas se eu quero sair de shortinho ou de calcinha na rua, não significa que estou permitindo nada. O respeito tem que existir em todos os momentos”, afirma Polly Paixão, produtora dos blocos Funk You e Baianas Ozadas.

Para ela e muitos outros produtores, a segurança de todos os foliões é essencial, mas o foco nas mulheres continua sendo importante, já que são elas as maiores vítimas de importunação sexual durante este período.



“Sabemos que infelizmente, ou felizmente, as meninas que ficam dentro da corda são privilegiadas por estarem cercadas de seguranças, então fica mais difícil de, naquele momento, elas sofrerem algum assédio. Mas nos preocupamos também com quem está além das cordas”, conta Polly.

“A gente faz o que é possível, em termos de conscientização, para que as meninas que estão fora das cordas estejam seguras. No bloco Funk You, principalmente, onde elas têm uma liberdade maior para se vestir e dançar, achamos muito importante que os homens entendam que aquilo é um estilo, e não significa um ‘sim’”, complementa ela.

De acordo com a produtora, todos os anos, os blocos sob sua responsabilidade promovem campanhas de conscientização nas redes sociais e que, neste ano, também estão envolvidos com uma ação da Secretaria da Mulher, que já realizou palestras, durante os ensaios, sobre prevenção de assédio e como buscar ajuda. Os membros dos blocos também receberam bottons com QR Code que mostra os primeiros passos para possíveis vítimas de abuso.

“Caso aconteça alguma coisa mais grave, a Secretaria da Mulher nos orientou para juntar o máximo de mulheres possível, tentar fechar a pessoa que sofreu o abuso e fazer um grande escândalo, gritar bastante para conseguir chamar a atenção o mais rápido possível. A gente para brigas, assédio, mas é importante fazer um barraco mesmo para que a pessoa que abusou fique constrangida”, explica.

Sinalização visual

Alguns blocos também investiram em uma comunicação visual na logística dos cortejos. É o caso da Truck do Desejo, um bloco LBT – composto somente por mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e pessoas transgênero e não-binárias – com público LGBTQIA+.

“No cortejo, a gente sabe que acontece uma mistura de público. Sabemos que nosso público é LGBTQIA+, e o ‘não é não’ é um movimento válido para todos os corpos e existências que estão ali com a gente naquele momento. Então, temos modos que a gente tem de comunicar ou sinalizar sobre isso”, afirma Lara Sousa, produtora da Truck.

Além de uma equipe de apoio “amiga” – com seguranças e brigadistas especializados com o público LGBTQIA+ –, o bloco conta com um sistema de cartões coloridos distribuídos entre pessoas estrategicamente posicionadas para comunicação interna.

“O amarelo significa que está acontecendo alguma coisa que pode ser resolvida pontualmente com alguém da produção e, geralmente, é coisa simples, como alguém querendo entrar na corda ou alguém precisando fazer alguma travessia. Já o cartão vermelho pode ser utilizado em situações de abuso ou assédio, entendendo a gravidade daquilo que acontece naquele momento e que demanda maior atenção da equipe, como uma incidência muito violenta”, explica ela.

“Também temos a instrução de que, ao notar ocorrência grave, as pessoas integrantes devem levantar as mãos, a fim de que todes percebam que algo que demanda mais atenção está rolando. Foi assim que fizemos no cortejo teste, quando o spray de pimenta acometeu parte de integrantes e público”, complementa.

O bloco também investe em uma formação política das pessoas integrantes como modo de reduzir desigualdades, combater preconceitos e tentar diminuir ao máximo – até a extinção – das práticas violentas dentro do bloco.

Base feminista

Com a diversidade de blocos em Belo Horizonte, é fácil encontrar blocos focados nos direitos das mulheres, como o ClandesTinas – bloco organizado pela Casa de Referência da Mulher Tina Martins –, o Tapa de Mina, o bRUTA fLOR, e a própria Truck do Desejo. Mas para além do Centro e da região da Pampulha, o Bloco Arrasta Bloco de Favela, nascido no Morro das Pedras, também investe nessa pauta desde 2017.

Zulú Moura, fundador do bloco conta que as mulheres têm papel essencial na formação do bloco – não à toa, tem parcerias com coletivos feministas e atuam juntos o ano inteiro na construção de políticas públicas, e não só no Carnaval – e, por isso, a preocupação com elas durante a folia também é grande.

“Ao longo da nossa trajetória, fizemos um encontro de mulheres interseccionais já pensando sobre a temática do Carnaval e no que poderia ser conquistado de soluções na perspectiva da interseccionalidade, transbordando a pauta e chegando à questão de como acessar os homens para poder fazer uma conscientização, como utilizar a arte, a educação e a cultura para poder apresentar essa pauta”, afirma ele.

Para Polly Paixão, atuações como essa são importantes para que haja mudança estrutural. “A gente está vivendo uma transição e já melhorou muito. Não sofremos mais com puxões de cabelo e de roupa que existiam antigamente, mas ainda existe um assédio velado e é essa nossa maior luta, e é quando a pessoa não faz porque pode ser presa ou recriminada”, comenta ela.

“A mudança precisa ser estrutural e tem que partir do outro acreditar no direito das mulheres, e não de não fazer porque não pode. São coisas bem diferentes”, complementa a produtora.

Além da prevenção pela educação, o Bloco Arrasta Bloco de Favela também tem parceria com a Guarda Municipal feminina e com o projeto “Não É Não”, atuando a partir de metodologia padrão.

“Qualquer coisa que for relatada, já temos um fluxo interno no qual a gente se protege, e chamamos de zeladoria. Desenvolvemos isso e usamos esse conceito dos movimentos sociais, não chamamos de segurança para não ser confundido com a ideia de segurança militar”, explica Zulú.

“Esse fluxo interno de segurança passa pela estratégia de identificarmos, avisarmos à medida que os integrantes ficarem sabendo. O regente interrompe na hora. Também temos esse costume de antes, durante, e ao final do bloco, levantarmos a fala do ‘não é não’, dizendo que tudo após o não é abuso”, complementa.

O que fazer se for vítima?

A advogada Clarissa Alvarenga, membro da Comissão Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e da Comissão Direito de Família, ambas da OAB/MG, explica como ocorre o assédio no Carnaval e como agir quando ele se concretiza.

“É muito comum se falar em assédio sexual, mas a correta qualificação é de crime de importunação sexual, caracterizado por praticar, contra alguém e sem a sua anuência, ato libidinoso com objetivo de satisfazer sua própria lascívia ou de terceiro”, conta ela.

De acordo com Alvarenga, caso a vítima seja menor de 14 anos, ou menor de idade incapacitada pelo uso excessivo de álcool, ou outra substância, o crime é configurado como estupro. Ela também relembra que nenhum tipo de aproximação que não seja do interesse da mulher deve ser tolerada, como beijos à força, puxão de cabelo, toques e cantadas ofensivas devem ser consideradas práticas criminosas cuja pena vai de um a cinco anos de reclusão.

“É uma prática que se intensifica principalmente em épocas festivas, como o Carnaval, momento em que, sob o efeito de álcool, se costuma forçar a prática de tais atos através da força”, diz a advogada.

Em casos de assédio, Alvarenga recomenda que a mulher procure a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher para registrar um boletim de ocorrência. “Ainda que se trate de um desconhecido, é importante tentar se recordar do máximo possível de detalhes que possam ajudar a identificá-lo, tais como aparência física, roupas que usava etc. Se tiver alguma testemunha, é importante que ela seja ouvida, bem como coletadas todas as provas”, explica.

“Em caso de estupro, deve-se procurar a Delegacia com a maior urgência possível e ainda nas primeiras 72 horas para que se possa ser encaminhada para o serviço de saúde e realizar os exames médicos necessários para evitar contaminação por ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis)”, complementa.

Ela reforça que também há a possibilidade de comunicar o fato à segurança do evento ou às autoridades policiais por meio do telefone 190. “É muito importante que as mulheres que sejam vítimas denunciem o ofensor e tomem as medidas legais cabíveis, inclusive para evitar que outras mulheres se tornem vítimas. Além disso, é por meio do registro do B.O que as autoridades públicas terão consciência do real número representado pelos casos de importunação sexual”, finaliza.

Na folia belo-horizontina, mulheres que forem vítimas de importunação sexual poderão procurar pelo Plantão Integrado Acolhe minas, iniciativa do Governo de Minas Gerais que está funcionando no prédio do Iepha (Prédio Verde) na Praça da Liberdade. A proposta é trazer um espaço de acolhimento, atendimento psicossocial, orientação jurídica e encaminhamentos no período de folia.

O plantão é coordenado pela Sedese, com participação direta e presencial de instituições como Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), Polícia Civil (PCMG), Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)/Comissão de Enfrentamento à Violência contra Mulheres.

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