Nascer, crescer, namorar, casar, ter filhos – apesar de parecer básico no ciclo da vida, não existe ou é um grande desafio para muitos. No Brasil, mais precisamente, são cerca de 2,9 milhões de adultos homossexuais ou bissexuais, de acordo com pesquisa realizada pelo IBGE em 2019. Esses indivíduos compartilham, muitas vezes, o sentimento de solidão. O dilema foi representado no filme "Todos nós desconhecidos", que estreia nesta quarta-feira (24/4) no streaming Star+, e conta a história de Adam (Andrew Scott) e Harry (Paul Mescal), um casal gay se conhecendo ao mesmo tempo em que lida com a solidão e com o luto.
Em dado momento do longa, Adam comenta que seus amigos escolheram casas afastadas do centro para criar seus filhos, enquanto ele permaneceu na cidade. O diretor do longa, Andrew Haigh, afirmou que o trecho é importante para mostrar que “algumas coisas que outras pessoas vivem em sua juventude, nós (pessoas queer), não conseguimos viver plenamente”. E quem já sentiu na pele concorda. “A gente começa a sentir (a solidão) quando passa a ter amigos que não são gays. Eles se casam, constituem família, e nós sentimos que estamos fora da normalidade”, conta Átila Wesley Guimarães, de 40 anos. Hoje casado, ele diz não se sentir mais tão deslocado, mas que “ver outros amigos curtindo as férias com a família enquanto está numa balada ou sozinho” o aborreceu por muito tempo.
Para o estudante Gabriel Moraes, de 20 anos, a compreensão desse isolamento veio bem cedo. Ele entendeu a solidão, como homem gay, quando viu o irmão chegando em casa aos prantos por ter brigado com a namorada – e foi acolhido e cuidado pelos pais o resto da noite. "Por mais que ame muito o meu irmão, senti um pouco de ódio e inveja, porque percebi que nunca teria o que ele tem. Foi nesse dia em que também comecei a analisar a minha relação com meus pais”, conta ele.
Natural de Goiânia (GO), Gabriel hoje mora em Belo Horizonte com o namorado, Levi Cardoso, de 19 anos. A relação conturbada com os pais, para ele, é parecida com a de Adam em “Todos nós desconhecidos”. “Eu sei que meus pais me amam, mas certos tópicos são inacessíveis. Eles falam que estão ali para tudo, mas sei que não é assim. Sempre me senti sozinho, mesmo dentro da família”, diz.
Seu namorado, Gabriel, o comparou ao Harry no longa de Haigh, já que ambos são assumidos para a família, mas ainda há um abismo apesar da aceitação. “Eu diria que a minha solidão veio pela ausência da minha mãe enquanto eu crescia. A minha homossexualidade nunca foi uma questão”, afirma Levi.
De acordo com a psicanalista Juliana Motta, professora do Instituto de Educação Continuada (IEC) da PUC-MG, a questão da solidão da população LGBTQIA+ vai além e assume contornos do próprio isolamento social. “A solidão é para todos, e a segregação é para alguns. E a população gay é segregada, assim como as pessoas pretas, trans, indígenas. Esses recortes sociais tornam a solidão ainda mais complicada, porque a segregação tenta tirar essas pessoas da convivência no espaço público e do laço social”, afirma ela, que também é membro da Escola Brasileira de Psicanálise.
‘Não quero estar sozinho’
O psicológico Samuel Silva conta que, em uma sessão com um cliente gay, escutou: “Eu sei viver sozinho, só não quero mais viver assim". Segundo o profissional, a fala evidencia o cansaço da procura. “É preciso aprender a ser só, mas chega um ponto em que buscamos não usar mais esse aprendizado e compartilhar a vida com nossos afetos de forma leve”, diz. Ele explica que a solidão da população LGBTQIA+ é também fruto de uma visão, muitas vezes restrita, de que uma vida adulta bem-sucedida é aquela "apenas capaz de construir família nos moldes tradicionais".
“Como o homem gay não tem a responsabilidade de casar, ter filho, a gente vive a nossa sexualidade de uma maneira mais fluida, mas isso causa certa infantilização, como se fôssemos eternos adolescentes”, avalia Matheus Hermógenes, de 30 anos. Hoje, num relacionamento à distância, Matheus conta que ainda é complicado lidar com o sentimento de isolamento, principalmente quando está longe do namorado. “A gente mantém o máximo de contato possível, mas às vezes não é suficiente porque tem a questão da carência, e ainda precisa equilibrar a dinâmica dos dois. Temos conseguido manter bem o ritmo, mas é difícil. Acaba que eu me sinto sozinho por conta da distância”, afirma.
Para ele, a solidão tem um peso que incomoda: “Apesar de sentir desde pequeno, eu só fui perceber a solidão a partir do momento em que surgiu a necessidade de um relacionamento, por mais que a adolescência e o início da vida adulta sejam uma fase de paquera, pegação e beijar na boca. Eu sei como é isso, mas chega uma hora em que a carência bate e não tem ninguém do seu lado”, complementa Matheus.
Acolhimento
Mas “Todos nós desconhecidos” não é só sobre a solidão. Para além do isolamento, o personagem Adam acolhe outros e a si mesmo quando compreende a dor compartilhada por eles. É assim que lidam os homens gays quando se encontram. “Sinto que as amizades acabam sendo esse refúgio porque todo mundo que está ali também está meio solitário”, diz Matheus.
Para Gabriel, é importante se cercar de quem te entende e te acolhe. Para além dos amigos que está fazendo em outra cidade, o namorado e os sogros tornam as coisas "comuns". “Eu fico até meio bobo, muito feliz. Conheci a família dele num churrasco, eu estava sentado no meio de todo mundo e tudo parecia bem, como deve ser e como deveria ter sido a minha vida inteira”, conta ele.