O defensor público Vladimir Rodrigues explica sobre o mutirão de retificação da DPMG -  (crédito: Gladyston Rodrigues/EM/D.A. Press)

O defensor público Vladimir Rodrigues explica sobre o mutirão de retificação da DPMG

crédito: Gladyston Rodrigues/EM/D.A. Press

“Antes [da retificação de nome e gênero], eu saía apreensivo de casa sabendo que, se precisasse me apresentar, teria que me justificar. Hoje, tenho prazer em fazer isso com meus documentos em mãos”, conta Caleb Antônio Nicodemos, de 31 anos. Desde 2023, ele tem seus documentos retificados e conseguiu este direito durante um mutirão da Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) que, em 2024, acontece até o dia 28 de junho.

 

O serviço, anunciado como “Mutirão Esse é Meu Nome – Retificação de Nome e Gênero de Pessoas Transexuais e Travestis”, busca garantir o direito à identidade e à personalidade de pessoas transgênero. Pela primeira vez em âmbito estadual, além de Belo Horizonte, mais de 30 unidades da DPMG oferecem auxílio no processo de retificação até o final desta semana.

 

“Neste mutirão, os processos estão mais fáceis, porque as coisas ficaram mais ágeis com a sanção da lei que garante gratuidade para retificação de pessoas trans em vulnerabilidade econômica (Lei Estadual nº 24.632/2023). Agora, todo o processo pode ser feito em cartório, sem a necessidade de ação judicial, como era feito antes. Em uma semana, a pessoa já tem isso retificado em questão de autodeterminação, basta manifestar vontade, não precisa passar pela análise de ninguém”, explica o defensor público especializado em Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais (DPDH).

 

Ainda de acordo com o defensor, o mutirão, hoje, serve mais como publicidade da facilidade da retificação em si do que como assistência para o processo – ainda que continuem oferecendo o serviço por conta da dificuldade em obter os documentos necessários –, já que muitas pessoas ainda não sabem sobre a rapidez e agilidade do processo.

 

“Quando eu comecei a trabalhar com isso, a gente precisava de um relatório psicológico, exigia laudo médico e o juiz precisava dar a sentença para indicar que a pessoa é trans, e isso poderia durar anos e ser bastante custoso. Atualmente, é um procedimento que a pessoa até pode fazer sem auxílio da Defensoria Pública, mas como é um processo administrativo, é complexo e pode requerer um auxílio”, afirma ele.

 

“Algumas pessoas que apareceram aqui para este mutirão estão tentando a retificação pela segunda, terceira vez, porque nas outras ainda precisava entrar com ação, acharam muito complicado e não queriam o desgaste do processo judicial. Às vezes, não voltaram por falta de informação mesmo, de não saber que agora está muito mais fácil, por isso a gente faz esse chamamento pelos mutirões”, completa.

 

Demanda espontânea

De acordo com Vladimir, a realização do mutirão partiu de uma demanda espontânea da sociedade. Juliana Beatriz Corrêa, de 29 anos, é um grande exemplo. Ela foi uma das primeiras a procurar o DPMG em Belo Horizonte para realizar a retificação de seus documentos, ainda em 2016. Na época, o processo era bem mais cansativo e demorado.

 

“Demorou cerca de um ano [para concluir o processo]. Eu procurei a Defensoria Pública e o Vladimir me orientou sobre como era o processo e quais documentos eu precisaria para dar início. Na época, passei por uma audiência em que tive que apresentar alguns documentos, encaminhar fotos minhas para mostrar como era minha aparência na época, arrumar testemunhas que me acompanharam ao longo da vida e da transição para que minha retificação fosse aceita e eu pudesse ingressar na sociedade da forma que eu me via”, relata ela.

 

Para Caleb, apesar de mais facilitado, o processo também foi complicado. Ele tentou realizar a retificação mais de uma vez, inclusive quando a DPMG começou a fazer os mutirões. Como ainda era uma novidade, não deu certo, mas ele não desistiu.

 

“O defensor Vladimir disse que iria ajustar algumas coisas e, no ano passado, ele me mandou uma mensagem avisando sobre um novo mutirão. Mandei meus documentos, fui lá entregar mais algumas coisas e ele me garantiu que, daquela vez, daria certo. E deu”, conta.

 

Vladimir considera que a retificação de nome e gênero tem mais peso na vida das pessoas trans do que as próprias agressões que sofrem ao longo da vida, já que a maioria nem chega a ser denunciada.

 

“Sabemos que esse serviço é muito relevante porque a gente sabe que esse público sofre com muita violência nas ruas, e mesmo assim a principal procura dessas pessoas na Defensoria Pública é para retificação de nome e gênero. Muitas vezes, quando são agredidas em algum lugar, acabam deixando para lá, acreditando que não vai dar em nada, mas a retificação faz tanta diferença na vida delas que elas correm atrás”, afirma.

 

Divisor de águas

Tanto Juliana quanto Caleb afirmam que a retificação é um marco em suas vidas, e que o processo mudou tudo para melhor.

 

“Tive muitos problemas antes de fazer a retificação. Era constrangedor e eu não era respeitada como gostaria, tinha pavor de ir em lugares públicos, como o hospital, por mais que eu precisasse. Mesmo que eu falasse que queria ser chamada pelo meu nome social, sempre me chamavam pelo nome ‘morto’, e isso causava um grande constrangimento para mim e para quem estava comigo”, conta Juliana.

 

“Muita gente ainda não está preparada para atender pessoas trans, mesmo com algo mínimo, como chamar pelo nome social ou usar os pronomes que a pessoa pede. E eu sou um homem negro. Às vezes, somos parados pela polícia, e eu ficava com medo de ser parado e não estar com documento retificado. Eu sou hormonizado, então fisicamente, quem olha, não percebe. Como eu ia me explicar?”, acrescenta Caleb.

 

Para o defensor público Vladimir, a retificação de fato muda vidas. O receio de não ter nome e gênero respeitados pode ser um impeditivo para acessar outros direitos, como trabalho e escola, fazendo com que pessoas trans se afastem desses meios. Com os direitos garantidos, é provável que elas se sintam mais seguras e confiantes.

 

“Sem exceção, todas as pessoas que fizeram a retificação vieram aqui para falar que tinham uma vida antes e uma vida depois, muito melhor. A retificação do nome e do gênero é o principal meio para que a pessoa tenha acesso a direitos básicos, como saúde, educação e trabalho”, afirma ele.

 

“A retificação me fez sentir mais segura e hoje sinto prazer em ir nos lugares, é uma realização pessoal. Gosto de ir ao médico – ou em qualquer lugar em que meu nome precise ser mencionado – e entregar meu documento. Pode parecer pequeno para as outras pessoas, mas foi um divisor de águas para mim. A retificação é muito importante e necessária para que a gente se sinta incluída na sociedade, nos lugares básicos que a nossa cidade oferece”, diz Juliana.

 

“Hoje, também saio de casa despreocupado com todos os meus documentos totalmente retificados. Inclusive, já fiz o alistamento militar e, neste mês, comecei num novo emprego apresentando tudo com meu nome sem precisar ficar me explicando. Não precisei me preocupar e foi maravilhoso, libertador. É ótimo sair na rua com meus documentos e não ter problemas com isso”, complementa Caleb.

 

“Eu ainda tenho muitos lugares para chegar dentro da transição, como fazer mastectomia e já é algo que estou planejando pelo SUS, só que ainda é complicado pelo tempo de espera muito longo. Mas só pelo fato de eu ter meus documentos retificados, é um grande passo e isso é muito importante para todas as pessoas trans”, finaliza ele.

 

Inscrições até sexta-feira (28/6)

Desde decisão do Supremo Tribunal Federal e de acordo com o Provimento nº 149 de 2023 do Conselho Nacional de Justiça, o procedimento de alteração de prenome e gênero pode ser realizado de forma extrajudicial, diretamente no Cartório de Registro Civil. Em Minas Gerais, a Lei 24.632/2023 garantiu a gratuidade da retificação às pessoas em situação de vulnerabilidade econômica.

 

Desde o dia 3 de junho até a semana passada, somente a unidade da DPMG de Belo Horizonte já tinha atendido mais de 80 pessoas para retificação de nome e gênero. Mineiros nas cidades de Além Paraíba, Alfenas, Araguari, Barbacena, Boa Esperança, Campanha, Conceição do Mato Dentro, Confins, Conselheiro Lafaiete, Curvelo, Diamantina, Formiga, Frutal, Guanhães, Ituiutaba, Jaboticatubas, Juiz de Fora, Lavras, Montes Claros, Pedro Leopoldo, Pirapetinga, Pirapora, Ponte Nova, Santa Luzia, Santos Dumont, Teófilo Otoni, Uberlândia, Varginha e Vespasiano também podem ser atendidos pelo mutirão.

 

Para se inscrever, é necessário ser maior de 18 anos e os interessados devem levar RG, CPF, título de eleitor e comprovante de endereço. A banca da DPMG avaliará as condições econômicas e a situação de vulnerabilidade e, após reunir todos os documentos necessários, irá passar a solicitação para o Cartório de Registro Civil ou para o Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC). Menores de 18 anos devem fazer um pedido judicial.

 

“Gostaria de deixar claro para as pessoas trans e travestis que está num bom momento para ir atrás dos seus direitos. A defensoria está preparada, a gente se estruturou para este mutirão para tentar fazer o processo ser o mais ágil e o mais acolhedor possível. Então, se a pessoa tem esse interesse, é um ótimo momento”, destaca Vladimir Rodrigues.

 

Serviço

“Mutirão Esse é Meu Nome – Retificação de Nome e Gênero de Pessoas Transexuais e Travestis” – 30 Unidades da DPMG

Quem pode participar: Pessoas transexuais e travestis maiores de 18 anos.

Inscrições: De 3 a 28/6/2024

Documentação: RG, CPF, título de eleitor e comprovante de endereço.

Clique aqui para ver as unidades participantes, locais e horários de inscrição.