A primeira biblioteca dedicada a obras antirracistas, anticolonialistas e de autores negros foi inaugurada em Belo Horizonte. A iniciativa é do Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, no Bairro Santa Efigênia, na Região Leste de BH, e busca descentralizar a leitura antirracista. Interessados já podem visitar a “Kilomboteka” na Rua São Tiago, 216, de segunda a sexta, das 8h às 18h.
A ideia surgiu de uma conversa entre a idealizadora, a mestra e professora no Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Makota Cassia Kidoialê, e o escritor quilombola Nêgo Bispo, que faleceu em dezembro do ano passado.
Para eles, era importante que houvesse um espaço que reunisse obras antirracistas para a transmissão de conhecimento e saberes tradicionais, além de valorizar a literatura negra. O acervo, montado pelo próprio Kilombo Manzo, conta com mais de 200 livros de autores como Conceição Evaristo, Milton Santos e o próprio Nêgo Bispo. O espaço busca descentralizar a ideia típica de uma biblioteca, muitas vezes distantes dos quilombos e periferias.
“A gente tem a ausência de acessar esses escritores e pensadores negros, que trazem uma grande contribuição na compreensão de pessoas no mundo e do nosso universo. A ideia da Kilomboteka surge em um momento em que a gente entende o quanto os territórios quilombolas têm contribuído com a formação acadêmica e pesquisas relacionadas às pautas raciais”, diz Makota.
Diversidade literária
De acordo com a historiadora e mestranda de artes cênicas, Tainá Rosa, o projeto tem que crescer e se multiplicar. Para ela, que também é ativista e coordenadora da pós-graduação do quilombo, o “Pretas na Pós”, a biblioteca é um projeto muito potente. Isso porque o quilombo é também, constantemente procurado como um objeto de pesquisa.
“A gente precisava de um espaço que desse conta desses saberes tradicionais e das pessoas que escrevem a partir do ponto de vista de quem tá vindo desse território, que é o quilombo”, diz Tainá.
No entanto, o objetivo nunca foi só contribuir com referências de autores que são citados em pesquisas de mestrado e doutorado, mas também de reunir o conhecimento da escrita infantil para crianças negras, de mulheres negras e para formação de enfrentamento ao racismo.
Segundo Kidoialê, a coletânea de escritas negras também atua diretamente na autoestima das pessoas negras, uma vez que o racismo destrói a possibilidade de pessoas negras se tornarem humanos, promovendo uma reflexão entre pessoas negras e não negras.
“Espaços como este deveriam ser acessíveis por direito, como iniciativas de reparação por toda nossa história que, em uma tentativa de apagamento, contribui para o fortalecimento do racismo. A Kilomboteka é um instrumento antirracista”, afirma a idealizadora do projeto.
Roça Literária e homenagem a Nego Bispo
O projeto intitulado como Kilomboteka Roça Literária foi inaugurado na sexta-feira (7/6) e é voltado para os elementos intelectuais da negritude, fugindo da lógica tradicional das bibliotecas. Os interessados podem frequentar o local e até fazer empréstimo dos livros que desejarem.
Quanto ao nome do projeto, nasceu de um pensamento propagado no quilombo. Para Nego Bispo, a roça é muito importante para a população quilombola, ribeirinha e indígena, pois é algo sagrado. Nesse espaço, as coisas são plantadas e germinadas, assim como o gosto pela leitura deve ser cultivado.
“Em uma conversa com o Nego Bispo, eu perguntei a ele se ele já tinha escutado sobre alguma biblioteca que trazia grandes autores como ele. Ele me disse que esses grandes autores geralmente são acessíveis na roça e que lá é desenvolvido os grandes conhecimentos.
Um dia perguntei ao Nego sobre a possibilidade da Kilomboteka em nome dele, mas ele rebateu dizendo que se as pessoas começassem a fazer homenagens a ele, toda a referência da formação dele seria perdida. O nosso saber veio da roça”, explica a professora da UFMG.
Sem nenhum patrocínio, o Manzo possuía um depósito que foi restaurado para se tornar o projeto. O espaço também será um “quilombo tecnológico”, com notebooks e internet que poderão ser utilizados por pesquisadores, estudantes e pessoas da comunidade. Em relação ao acervo, o quilombo afirma receber doações para aumentar a diversidade de leituras e firmar o conceito de coletividade.
*Estagiária sob supervisão do subeditor Gabriel Felice