A morte da artista mineira Gabriella da Silva Borges, mais conhecida como Gabi Campbel, chocou Belo Horizonte na última quarta-feira (26/6). Aos 50 anos, ela foi encontrada morta em casa no Bairro Santo André, Região Noroeste da capital mineira, e o inquérito do caso ainda não foi concluído. Ela, assim como muitas outras, entram na estatística do país mais violento contra pessoas trans e travestis, de acordo com a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).
Agora, dados oficiais do Ministério Público de Minas Gerais mostram que cerca de 80,8% das vítimas trans e travestis mortas em Minas Gerais tinham menos de 39 anos; e 66,2% do total registrado eram negras – autodeclaradas pretas ou pardas. Os números são do "Relatório de Pesquisa: Violência contra população trans e travesti em MG", divulgado nesta segunda-feira (1/7).
Fruto de uma parceria entre o Ministério Público de Minas Gerais, por meio da Coordenadoria de Combate ao Racismo e Todas as Outras Formas de Discriminação (CCRAD/MPMG) com o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais (NUH/UFMG), o relatório também mostrou que as regiões mais violentas contra a população trans e travesti no estado são a Grande BH e o Triângulo Mineiro.
Parceria
De acordo com o procurador de Justiça e coordenador da pasta do MPMG, Allender Barreto, a parceria é muito importante para o aprimoramento, fomento e efetivação de políticas públicas de atendimento às pessoas da comunidade LGBTQIA+ do estado. Além do monitoramento em si, que é feito há anos, a pesquisa também acompanha a evolução nos sistemas de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais para que a fiscalização ficasse cada vez mais refinada.
"Esse relatório tem especial relevância para o Ministério Público porque é fruto de uma produção acadêmica e científica rigorosa que nos dará subsídio para dialogar tanto dentro do sistema de Justiça quanto com o sistema de Segurança Pública para o aprimoramento do atendimento da investigação e do processamento de crimes de natureza LGBTfóbica", explica ele.
Para o coordenador do NUH/UFMG, o professor Marco Aurélio Máximo Prado, apesar de o trabalho ter avançado muito nos últimos anos e haver o acesso a melhores informações, ainda falta muito para que os dados sobre violência de grupos minorizados – neste caso, principalmente a população trans e travesti negra de Minas Gerais – sejam considerados “ótimos”.
“Essa pesquisa tem duas funções importantes: ter dados bons, qualificados e consolidados para pensar políticas públicas – porque sabemos que falta isso no estado e no país como um todo –, além de ser uma forma de pensarmos o refinamento de metodologias das próprias instituições de inteligência. Isso quer dizer que a gente pode ter melhores inquéritos, melhores investigações, melhores processos judiciais e, assim, mudar a cabeça dos envolvidos e fazer aparecer as pessoas que o Estado foi tornando invisíveis na sua história. Nosso compromisso é fazer com que essas pessoas apareçam”, afirma.
Para a ativista Juhlia Santos, o trabalho feito pelo MPMG com o NUH/UFMG é um grande avanço para a pauta trans e travesti no estado, mas ainda há muito a melhorar.
“A ausência de dados sobre violência contra pessoas trans e travestis faz parte do processo de invisibilização da nossa existência. É uma estratégia não ter e divulgar esses dados, e gostaria de parabenizar o professor Marco Aurélio pela audácia de produzir esses dados e dizer que, enquanto movimento social, estamos cansadas, porque os dados estão aí, várias audiências públicas e movimentações são feitas, mas não temos visto retorno”, disse ela.
“A gente precisa estreitar os laços, encurtar os caminhos e melhorar os diálogos para conseguirmos efetivar políticas públicas que alcancem essa população”, completou.
Ao todo, foram identificadas 151 vítimas trans e travestis nos REDS (registros policiais) entre o período de 2014 e 2022. Dessas, 58,9% foram classificadas como mortes violentas consumadas e 41,1% como mortes violentas tentadas.
Perfil das vítimas
Segundo o Relatório de Pesquisa, a maior parte das vítimas trans e travestis de mortes violentas consumadas e tentativas é negra (entre autodeclaradas pretas e pardas) e jovens. Considerando apenas as vítimas que tiveram a cor identificada (79), 74,6% eram negras. Do total geral (89), o número cai para 66,2%.
Em relação à faixa etária, 80,8% (72) das vítimas mortas tinham menos que 39 anos. 39,3% (35) tinham entre 18 e 29 anos. Apenas 14 das vítimas tinham mais de 40 anos e três delas não se sabe a idade.
“Os movimentos sociais, há muitos anos, produzem informações que são muito parecidas com as nossas, e um perfil está consolidado: se mata mais pessoas trans negras abaixo de 39 anos, mais do que qualquer outro grupo social no Brasil. É o caso de assassinato de uma comunidade”, afirma o professor Marco Aurélio.
“Existe um perfil que tem uma relação direta com o corpo que está mais disponível à violência institucional e interpessoal, que também é o mesmo corpo que transita entre as instituições de assistência e que não consegue lugar e acolhimento. Então, se a gente quiser sair dessa situação horrorosa, nosso foco precisa ser travestis pretas em situação de vulnerabilidade”, complementa ele.
Entre as mortes consumadas, 87,6% (78) foram registradas como Homicídio; 6,7% (6) como Encontro de cadáver; 2,2% (2) como Crime contra o patrimônio; e 3,4% (3) como Outros registros de defesa social. Das tentadas, 53,2% (33) foram registradas como Lesão Corporal e 46,8% como Tentativa de homicídio.
Sobre as motivações e causas presumidas, quando há morte, o preenchimento deste campo é mais frequentemente ignorado (38,2%) e apenas uma é registrada como homofobia/lesbofobia/bifobia/transfobia; enquanto quando não há resultado fatal, o preenchimento de motivação LGBTfóbica é maior: 17,7% (8).
Belo Horizonte, Uberlândia e Contagem são os municípios mais violentos do estado, sendo 20 mortes consumadas registradas na capital mineira e oito tanto na cidade do Triângulo Mineiro quanto na da Grande BH. Em relação às mortes tentadas, foram 13 em Belo Horizonte, nove em Contagem e quatro em Uberaba.
“São regiões com população maior, que recebem maior fluxo migratório dessa população, que chegam em busca de trabalho e acolhimento”, explica o coordenador do NUH/UFMG.
Divulgação da pesquisa
O Relatório já está disponível ao público a partir desta segunda-feira. Para o coordenador da CCRAD/MPMG, ele será importante para futuras – e já existentes – políticas públicas, além de auxiliar em outras pesquisas que possam acontecer.
"O relatório é público e não pode ficar restrito ao âmbito do Ministério Público e da UFMG porque tem um papel social e institucional muito grande. Ele será fornecido para todas as pessoas e instituições interessadas e servirá de manancial para dar subsídio para interlocução, aprimoramento e fomento de políticas públicas de atendimento às pessoas LGBT em Minas Gerais", atesta ele.
O relatório completo da pesquisa – e outras contribuições para a pauta LGBTQIA+ – podem ser conferidas no portal do NUH/UFMG.