“Agora, tenho liberdade para usar a roupa que eu quiser sem ter problemas de constrangimento. Para mim, o procedimento foi muito bom, tenho a sensação de liberdade muito grande e hoje me sinto muito bem da forma que estou e com o corpo que carrego”, relata a bailarina e estudante de psicologia Mirella da Silva Ferreira, de 31 anos, a primeira mulher trans a realizar a cirurgia de transgenitalização – construção de neovagina, anteriormente chamada de redesignação sexual – pelo SUS em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira.

 

O procedimento é considerado um marco histórico para o Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (HU-UFJF), vinculado à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). Atualmente, é o único serviço oficialmente habilitado para a prática no estado de Minas Gerais.

 



 

Ao Estado de Minas, Mirella conta que está feliz em ser pioneira e mais ainda em saber que outras pessoas virão após ela.

 

“Conheço algumas pessoas que estão se planejando para fazer também e quero muito ser referência e ajudar, dar suporte para essas pessoas que precisam tirar dúvidas ou algo do tipo. Nós, enquanto pessoas trans, precisamos nos fortalecer, fortalecer nossa comunidade e resistir todos os dias das nossas vidas”, afirma.

 

Acompanhamento

 

A bailarina começou o processo de transição aos 23 anos de idade, mas sempre se entendeu como mulher. Sua procura pelo SUS começou por meio do Visitrans, grupo de apoio da UFJF que faz parte de um projeto de extensão do curso de psicologia.

 

“Comecei a ter acompanhamentos na Casa do Adolescente, que, há uns oito anos, era o que tinha de atendimento para a gente. Ainda não havia a institucionalização de políticas de saúde pública para a população trans, e o SUS não tinha esse aparato para a população trans fazer as terapias hormonais e acompanhamentos”, conta Mirella.

 

Até então, ela via a cirurgia de transgenitalização como algo distante, já que não conseguiria realizá-la na rede privada, e pelo SUS demandaria muito tempo. Quando o Hospital Universitário da UFJF começou a atender a população trans no Ambulatório de Diversidade de Gênero, suas esperanças cresceram.

 

“Comecei a ir às consultas em busca de acompanhamento na minha terapia hormonal por meio de um encaminhamento do posto de saúde. Comecei com uma equipe da endocrinologia, e me perguntaram sobre minha vida e meus desejos. Comentei sobre minha vontade de fazer a cirurgia de transgenitalização. Foram analisando os critérios exigidos pelo Ministério da Saúde e me informaram que existia a possibilidade de a cirurgia ser realizada”, afirma.

 

“Todo esse processo durou uns três anos, e, em 2023, fui comunicada de que o procedimento tinha sido liberado. Com isso, comecei o acompanhamento pré-operatório com as equipes da ginecologia, urologia e cirurgia plástica, juntamente com as equipes da psicologia e da endocrinologia”, complementa.

 

De acordo com os médicos responsáveis pelo procedimento, a ginecologista Carolaine Bitencourt e o urologista José Murillo Netto, o procedimento durou cerca de quatro horas, e não houve complicações. Mirella já havia sido orientada quanto à cirurgia e a outros serviços em decorrência dela, como uma rede de apoio para o pós-operatório – que dura cerca de 180 dias, porém pode variar, dependendo das circunstâncias –, acesso ao INSS e previsibilidade de intercorrências.

 

“A pessoa que deseja realizar o procedimento precisa ter esse entendimento. É uma cirurgia de mudança de função urinária, evacuatória, sensitiva e motora, visto que todos os órgãos pélvicos externos e internos são reestruturados. Por isso, o trabalho da equipe multiprofissional é imprescindível para o sucesso global da cirurgia e satisfação da paciente”, ressalta Carolaine.

 

 

Pioneirismo

 

Os cirurgiões responsáveis pela transgenitalização de Mirella visitaram serviços experientes na técnica no Brasil para complementar, na prática, o que na teoria já conheciam e iniciar o trabalho com mais segurança e tranquilidade.

 

O trabalho foi desenvolvido a partir de um plano de cuidados, oferecendo métodos terapêuticos para trabalhar e prevenir possíveis complicações e queixas, a exemplo de abertura de pontos, edema, fibroses, dor, retenção e/ou incontinência urinária, constipação, prolapsos e estreitamento vaginal, além de fornecer orientação sobre a redescoberta da sexualidade neste novo corpo.

 

“Tive os acompanhamentos necessários dentro das condições do hospital. Fui a primeira, então todos estavam se preparando junto, foi uma coisa nova para todo mundo, então dentro das possibilidades, eles me deram um suporte”, conta Mirella.

 

Para os profissionais envolvidos, além de conquistas pessoais por fazerem parte de um procedimento pioneiro em Juiz de Fora, a cirurgia também será referência para estudos futuros.

 

“É sem precedentes que nossa instituição esteja vendo nascer uma nova vertente de assistência à saúde. Tanto em termos de formação de profissionais quanto no campo da pesquisa”, pontua a médica Carolaine Bitencourt. De acordo com ela, vários estudos são produzidos no mundo inteiro, com o objetivo de melhorar a atenção em saúde para a população trans com política de redução de danos, avaliações prospectivas de resultados e melhoria de técnicas, e o HU-UFJF está participando do desenvolvimento de tudo isso.

 

“Participar desse marco histórico foi uma grande honra, tendo a possibilidade de melhorar a qualidade de vida das pessoas e realizando seus sonhos”, comemora o médico José Murillo Netto, reforçando ainda que “o início de um serviço, de forma estruturada e organizada, como o nosso, nos permite levantar dados e realizar pesquisas de forma sistemática. Além disso, um dos principais ganhos para o ensino na nossa instituição é permitir que todos, alunos, funcionários, profissionais de saúde e professores, possam conviver com as diferenças e combater a transfobia”.

 

Mirella ainda aponta que “cada pessoa trans tem suas próprias demandas em relação ao corpo. O principal ponto é ter autonomia para eleger quais cirurgias fazem sentido ou não para se viver de uma forma plena – não que uma intervenção cirúrgica seja necessária para a pessoa ser respeitada com a identidade com a qual se apresenta. Contudo, estou muito realizada com meu processo". "O mais importante é cada pessoa ter autonomia sobre seu corpo e acesso a esses procedimentos na saúde pública”, completa.

 

Fluxo de atendimento

 

A porta de entrada são os dispositivos de atenção básica (como as Unidades Básicas de Saúde - UBS), que fazem a marcação na agenda de acolhimento do Ambulatório de Diversidade de Gênero no HU-UFJF. Se for de área descoberta, ou seja, que não tenha UBS ou outro dispositivo de atenção básica próximos, é necessário procurar o PAM Marechal. Para residentes de outras cidades, a solicitação de marcação ocorreu por meio da secretaria de saúde do município onde vive a pessoa interessada.

 

Dentre os procedimentos hospitalares/cirúrgicos oferecidos pelo Serviço de Atenção Integral à Saúde da População em Diversidade de Gênero estão a mastectomia (retirada de seios), a histerectomia (retirada de útero) e a cirurgia de transgenitalização (construção de neovagina). Há expectativa de que novos procedimentos venham a ser oferecidos no futuro, a exemplo de mamoplastia de aumento (implante mamário), ooforectomia (retirada de ovários) e tireoplastia (remoção do chamado “pomo-de-adão”), dentre outros.

 

Para a chefe do Ambulatório de Diversidade de Gênero, Priscilla Batista Noé, “o trabalho realizado pela equipe multi busca fomentar acolhimento humanizado, garantia de direitos e valorização das pluralidades, bem como criar uma ambiência de cuidado integral à saúde da população trans, enfrentando situações de vulnerabilidade subjetiva, social e programática, objetivando a promoção da qualidade de vida e a garantia da dignidade. Outra ação importante foi a realização de capacitações das diversas equipes do HU-UFJF, para garantir um atendimento ético e humanizado”.

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