Na escada da vida, os degraus são feitos de livros, é o que dizia a educadora que faleceu aos 91 anos, há 14 anos -  (crédito: Divulgação/Fundação Dorina Nowill)

Na escada da vida, os degraus são feitos de livros, é o que dizia a educadora que faleceu aos 91, há 14 anos

crédito: Divulgação/Fundação Dorina Nowill

Gilson Nunes é professor da disciplina de acessibilidade no curso de museologia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e sempre se depara com situações onde seus alunos cegos passam por dificuldades de comunicação em espaços públicos, especialmente devido à falta de acessibilidade. Juarez Gomes, ex-diretor e aluno da Instituição São Rafael, compartilha da mesma opinião e acredita que o livro em braille é um importante aliado nessa luta pela autonomia de pessoas não-videntes (pessoas com deficiência visual).

 

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No Brasil são mais de 6,9 milhões de pessoas com deficiência visual, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE (PNS) de 2019. Os dados levantados pelo Censo 2022 serão divulgados até o fim deste ano. E um dos maiores aliados na ampliação do acesso dos deficientes visuais é a Fundação Dorina Nowill, cuja fundadora completa 14 anos de morte nesta quinta-feira (29/8).

 

A fundação possui a maior gráfica braille da América Latina - e uma das maiores do mundo, com capacidade de impressão de até 450 mil páginas por dia. 

 

 

Dorina Gouvêa Nowill nasceu na cidade de São Paulo e tinha 17 anos quando perdeu a visão. Ela nunca recebeu um diagnóstico. A ativista cursava magistério e foi a primeira estudante cega da Escola Normal Caetano de Campos, no centro da capital paulista. Dorina insistia que era imprescindível a introdução de mais alunos cegos em seu curso. A fundação começou em 1946, quando seu nome ainda era Fundação Para o Livro do Cego no Brasil e se moldou a partir do desejo dela em estudar e garantir esse ensino a outras pessoas cegas. 

 

Antiga Fundação Para o Livro do Cego no Brasil

Antiga Fundação Para o Livro do Cego no Brasil

Divulgação/Fundação Dorina Nowill

A educadora é uma das maiores referências na luta pela inclusão de pessoas com deficiência visual no Brasil e, ao perceber a escassez de livros em braille no país, idealizou a fundação, quase 80 anos atrás.

 

Enquanto estava em Nova York, onde se especializou em educação para cegos na Universidade de Columbia, a ativista participou de uma reunião com a diretoria da Kellog’s Foundation. Nessa ocasião, expôs o problema da falta de livros em braille no Brasil, o que resultou na doação de uma imprensa braille completa para a Fundação do Livro do Cego. 

 

 

“Foi uma das primeiras e a principal imprensa braille do país. Existe outra instituição que também é referência, o Instituto Benjamin Constant. A Fundação Dorina, em capacidade produtiva, é uma das maiores da América Latina. A gente tem um parque original com as máquinas que ela trouxe através de projetos e incentivos, são as máquinas offset, que produzem material em matriz de alta tiragem”, afirma Carla de Maria, gerente de soluções em acessibilidade da fundação.

 

Por mais acessibilidade 

A Fundação Dorina prevê triplicar a sua capacidade editorial até 2025, ou seja, a tradução para o sistema braille, através de uma plataforma digital que otimize essa transcrição e adaptação dos livros para o formato. É um processo em etapas. A especialista diz que esse plano ainda está em seu primeiro momento de implantação e o resultado esperado é de um aumento na velocidade do processo. De 20 mil para 60 mil páginas por mês, em média.


“A gráfica é uma das potências, com isso, precisávamos investir também na parte editorial. Então, com vários levantamentos e investimentos da fundação, a gente iniciou esse processo que permite editorar mais páginas. É um trabalho que antecede a impressora”, explica Carla de Maria.  

 

 

A instituição é de caráter filantrópico, o que também envolve a distribuição de livros gratuitos pelo país. Ela faz parte da produção do projeto PNLD, o Plano Nacional do Livro Didático, do governo federal.

 

Legado de Dorina 

Durante quase toda a sua vida, Dorina Nowill conseguiu ser uma figura ativa politicamente. Ainda na década de 1950, contribuiu com a elaboração da Lei de Integração Escolar, que assegura o acesso à educação da pessoa com deficiência, e também convenceu a Secretaria de Educação de São Paulo a criar o Departamento de Educação Especial para Cegos.

 

Ela trabalhou em Brasília no comando do primeiro órgão nacional de educação para cegos, criado pelo Ministério da Educação, entre 1961 a 1973, e, além de ser eleita presidente do Conselho Mundial dos Cegos, representou o Brasil na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1981. 

 

Juarez Gomes, ex-diretor e aluno da Instituição São Rafael, na capital mineira, cita o trabalho de Dorina Nowill como ativista pela inclusão e acesso de pessoas cegas. “Os livros são de extrema importância para a alfabetização e autonomia de pessoas não videntes”, defende. 

 

Gilson Nunes, professor da disciplina de acessibilidade no curso de museologia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), também ressalta a importância da entidade.“O Instituto Benjamin Constant, no Rio, a Fundação Dorina Nowill, de São Paulo, e o Instituto São Rafael, aqui de Minas Gerais, têm trabalhos de adaptação das pessoas cegas para o convívio ali do dia a dia, do cotidiano para, enquanto pessoas cegas, poderem conviver, usar os recursos de uma casa, os recursos laborais e seguir a vida da melhor maneira possível” diz o professor. 

 

O braille

O sistema tátil de leitura e escrita chega ao Brasil em 1854, junto do Imperial Instituto de Meninos Cegos, o atual Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, através de José Álvares de Azevedo, primeiro professor cego do país. 

 

O braille é um conjunto universal de códigos táteis. O nome deve-se ao autor desse sistema, Louis Braille. São 64 símbolos e cada sinal resulta da combinação de 6 pontos organizados na cela braille, que são duas colunas verticais e três horizontais, onde cada posição recebe um ponto, ou não. A leitura é feita da direita para a esquerda, e a escrita ao contrário. 

 

 

Conforme a especialista, Carla de Maria, o maior desafio do setor continua sendo a demanda de profissionais e a mão de obra especializada para a produção dos livros. A falta do trabalho de transcrição do sistema braille em grande escala no mercado requer todos os envolvimentos de aprendizado do método para a produção dos livros, que envolve um processo extremamente manual para a conversão desses títulos. “É o nosso principal desafio, captar e treinar esses talentos”, afirma. 

 

A alfabetização é o principal alcance do método. A expansão do universo cultural através da leitura se torna ainda mais importante para as pessoas cegas ou com baixa visão no combate ao preconceito e falta de informação acerca do tema. Dessa forma, a aproximação com livros didáticos, literários, notícias e entretenimento auxiliam na percepção do mundo.

 

Na escada da vida, os degraus são feitos de livros, é o que dizia a educadora que faleceu aos 91 anos, em 29 de agosto de 2010. Dorina Nowill foi digna de documentário, livro, enredo de escola de samba e até personagem em “A Turma da Mônica”, servindo de inspiração para o escritor Maurício de Souza com a criação da personagem Dorinha. 

 

Dorinha, personagem de Maurício de Souza inspirada em Dorina Nowill

Dorinha, personagem de Maurício de Souza inspirada em Dorina Nowill

Reprodução/ Perfil Turma da Mônica no X (antigo Twitter)

 

Não só a produção de livros, mas a adaptação de material também se torna fundamental para o treinamento da alfabetização através do braille, principalmente em relação ao desenvolvimento da sensibilidade dos dedos na leitura de cada combinação de pontos em alto relevo. 

 

O caminho, no entanto, ainda é longo, conforme pontua Nunes. Para ele, todos os espaços destinados ao público, seja um comércio, um teatro, um museu ou uma praça pública, devem ter recursos para permitir que todos, cego ou não, usufruam desses espaços em igualdade de condição.

 

*Estagiária sob a supervisão dos subeditores Rafael Rocha e Humberto Santos