A derrubada pelo Congresso Nacional dos vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao projeto de lei que estabelece um marco temporal para demarcação de terras indígenas, nesta quinta-feira (14/12), é um dos episódios que melhor sintetiza como foram as relações entre o governo do petista e a poderosa bancada do agronegócio.
Apesar de movimentos do governo para tentar atrair o apoio do setor, a bancada ruralista vem fazendo prevalecer o seu tamanho e conseguindo avançar pautas a despeito da vontade do governo. E para preocupação de ambientalistas.
O marco temporal se transformou num dos principais embates entre ruralistas e o governo Lula. Segundo essa tese, apenas áreas ocupadas por indígenas em outubro de 1988, momento em que a Constituição Federal foi promulgada, poderiam ser demarcadas.
Movimentos indígenas questionam a tese porque havia terras que, naquele momento, não eram ocupadas porque seus habitantes originários haviam sido expulsos por invasores.
Do outro lado, ruralistas alegam que não estabelecer um marco temporal criava insegurança jurídica porque, em tese, qualquer propriedade rural poderia ser reivindicada como terra indígena.
Em setembro deste ano, o STF julgou um caso sobre o assunto e derrubou a tese do marco temporal, o que foi considerada uma vitória histórica do movimento indígena.
Em reação, a bancada ruralista liderou a votação de um projeto de lei sobre o mesmo assunto que acabou aprovado e encaminhado à sanção presidencial.
Durante a campanha, Lula se manifestou contra o marco temporal e, em outubro, após o projeto ser aprovado, ele vetou alguns dos principais trechos da lei, o que aumentou ainda mais a temperatura na relação de Lula com a bancada ruralista. Com ampla maioria, a bancada derrubou os vetos.
Movimentos indígenas afirmam que vão judicializar novamente a questão e que o projeto de lei é inconstitucional. O caso poderá ter de ser decidido mais uma vez pelo STF.
Negociações e poder que não pode ser 'ignorado'
Apesar da derrota aparentemente contundente do governo em relação ao marco temporal, analistas, parlamentares e ambientalistas afirmam que a relação do governo com a bancada ruralistas foi marcada por uma combinação de limitações, negociações e prioridades.
Na avaliação do antropólogo Caio Pompeia, especialista na atuação da bancada ruralista no Congresso, vitórias desse grupo, como a derrubada do marco temporal, são possíveis porque a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) ampliou sua capacidade de articulação política.
Atualmente, a frente conta com 374 dos 513 deputados, o equivalente a mais de dois terços da Casa. No Senado, eles somam 50 dos 81 parlamentares. Em resumo: a bancada tem ampla maioria nas duas Casas.
"Levando em conta a crescente capacidade de construção de convergência de votos dessa frente no âmbito do Congresso, nenhuma administração pode ignorar seu poder. Uma das questões fundamentais para o governo Lula é como se relacionar com os segmentos da Frente Parlamentar da Agropecuária, considerando as diferentes filiações partidárias, interesses e suscetibilidades de seus membros", disse Pompeia à BBC News Brasil.
Para o cientista político Sergio Praça, professor da Fundação Getúlio Vargas, mudanças no regimento do Congresso nos últimos anos - como o aumento do poder dos presidentes do Senado e da Câmara - diminuíram o poder do Executivo em relação ao Legislativo.
"Lula está hoje em um cenário muito diferente dos seus primeiros mandatos. Nunca, desde a redemocratização, o presidente foi constitucionalmente e regimentalmente tão fraco", diz Praça.
De acordo com integrantes da bancada ruralista, apesar de se situarem em posições diferentes em temas como o marco temporal, governo e a bancada que defende o agronegócio vêm mantendo negociações em diversos pontos.
"Nós nunca tivemos uma negativa do governo para negociar. O governo sempre está disponível para isso. Os acordos têm concessão de parte a parte [...] Pode ser que nem sempre nós concordamos, mas sempre há espaço para sentar e dialogar", disse o deputado federal e ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária.
Um dos exemplos em que governo e ruralistas chegaram a um acordo foi o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e que estabeleceu o chamado "voto de qualidade" no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que julga casos relativos ao pagamento de impostos federais.
O projeto era defendido pela equipe econômica liderada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como uma medida que poderia elevar a arrecadação do governo.
Ele prevê que voto de desempate favorável ao governo em casos julgados pelo Carf. A estimativa era de que o governo poderia obter até R$ 12 bilhões a mais com a mudança.
Em meio à demora na aprovação da matéria, Fernando Haddad se reuniu com lideranças da bancada ruralista para convencê-los a aprovar o texto. Em agosto, Câmara e Senado, com apoio dos parlamentares do agronegócio, a medida foi aprovada e levada à sanção de Lula.
Em agosto, a própria FPA alegou que a bancada ruralista concedeu seu apoio ao projeto após a aprovação de emendas ao projeto que beneficiavam o agronegócio como a que ampliou de 60 para 12 meses o prazo para regularização fiscal.
Dois parlamentares da bancada ruralista ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado dizem, aliás, que Haddad é um dos seus principais interlocutores junto ao governo. Um deles disse que o ministro da Fazenda seria aberto ao diálogo e teria condições de fazer frente a ministras como a do Meio Ambiente, Marina Silva.
Prioridades e força do Executivo
Para a coordenadora de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, Luiza Lima, o governo Lula não conseguiu fazer frente ao poder da bancada ruralista. Ela diz que uma das consequências disso é que a atual administração vem sacrificando pautas caras aos movimentos ambientalistas e indígenas para obter a aprovação de pautas na área econômica.
"Quando chegou o governo Lula, a gente achou que as coisas seriam do que eram no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, quando ele praticamente abdicou de governar. Mas o que a gente tem visto, sucessivamente, é a bancada ruralista fazendo chantagens com o governo para aprovação das pautas que são caras ao governo, que são as pautas econômicas", disse Luiza Lima à BBC News Brasil.
"Nessas negociações, a pauta ambiental está sendo uma das que estão mais ficando em xeque", disse a ambientalista.
O cientista político Sergio Praça afirma que diante de vitórias do governo neste ano, como a aprovação da reforma tributária, a derrubada do veto no caso do marco temporal não teria "um peso tão grande".
"Não é uma derrota que pode ser atribuída ao governo, ao presidente Lula. É simplesmente um sinal de conservadorismo no Congresso", afirma Praça.
"E mostra que o governo tem escolhido as batalhas - me parece que a presença de outros atores políticos influencia também. Nesse caso, o STF pode voltar a decidir sobre o tema e o resultado deve ser a derrubada do marco temporal, que já foi considerado inconstitucional uma vez."
Para o cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria, o fato do governo ter mais vitórias na pauta econômica é resultado direto da composição conservadora do Congresso.
"Hoje temos um núcleo de governo progressista e um legislativo de maioria de direita ou centro-direita", diz Cortez.
"Mesmo dentro da base aliada do governo, as pautas progressistas são minoritárias. O que faz com que a gente tenha uma taxa de sucesso maior em medidas da agenda econômica do que em outras pautas, como o marco temporal."
A BBC News Brasil procurou a Frente Parlamentar da Agropecuária, mas nenhuma resposta foi enviada.
Luiza Lima cita como exemplos outros episódios em que a pauta ambiental acabou, na sua avaliação, sendo deixada de lado pelo governo para conseguir a aprovação de medidas de seu interesse.
Entre eles está a medida provisória (MP) dos ministérios, que estabeleceu a atual quantidade de ministérios do governo federal.
Às vésperas de ela expirar, o governo cedeu ao Centrão, grupo que também faz parte da bancada ruralista, e aceitou emendas que esvaziaram os ministérios do Meio Ambiente (MMA) e dos Povos Indígenas (MPI). Entre as medidas que mais causaram polêmica à época estavam a retirada da atribuição de demarcar novas terras do MPI e a alocação dessa responsabilidade no Ministério da Justiça e Segurança Pública).
Procurada, a Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, comandada pelo ministro Alexandre Padilha, disse em nota enviada a BBC News Brasil que o governo vem tentando manter diálogo com o agronegócio.
"Desde janeiro de 2023, o governo do presidente Lula tem atuado para reestabelecer o ambiente de diálogo democrático com todas as instituições e todos os setores da sociedade, inclusive o agronegócio, que tem na Frente Parlamentar uma força de representação legítima e atuante em prol de um setor que é central para a economia e a sociedade brasileiras", diz um trecho da nota.
Para Luiza Lima, do Greenpeace Brasil, o que aconteceu com o marco temporal pode ser um prelúdio do que se verá nos próximos anos.
"O governo só consegue aprovar alguma agenda prioritária desde que seja algo de interesse da bancada ruralista. Do ponto de vista socioambiental, isso é muito ruim. Infelizmente, acho que essa situação tende a se perpetuar por conta da composição do Congresso", afirmou.
Caio Pompeia, que estuda a bancada ruralista, diz que, do ponto de vista socioambiental, é preciso aguardar para ver como o Senado irá se comportar.
"Até o presente momento, a frente (Parlamentar da Agropecuária) tem se mostrado bastante exitosa, mas também é possível que, quanto a alguns dos temas ambientais, mobilizações públicas críticas, riscos aos empresários, posições do governo e decisões da presidência do Senado, venham a exercer influência mais relevante.
Procurada, a Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, disse em nota enviada à BBC News Brasil que o governo vem tentando "reestabelecer" o diálogo com o agronegócio.
"Desde janeiro de 2023, o governo do presidente Lula tem atuado para reestabelecer o ambiente de diálogo democrático com todas as instituições e todos os setores da sociedade, inclusive o agronegócio, que tem na Frente Parlamentar uma força de representação legítima e atuante em prol de um setor que é central para a economia e a sociedade brasileiras", disse um trecho da nota.
*com reportagem de Letícia Mori