O então ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, apresenta a cara do real -  (crédito: Dida Sampaio/CB/D.A Press)

O então ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, apresenta a cara do real

crédito: Dida Sampaio/CB/D.A Press

Após o descontrole inflacionário herdado pela ditadura — que acabou saindo de cena, porque jogou a economia em um buraco sem fundo —, o maior desafio do regime democrático, iniciado em 1985, foi controlar a alta do custo de vida que virou uma bola de neve, rodando a 82% ao mês, um tormento para as famílias mais pobres e principal fator para o aumento da desigualdade no país. Depois de vários fracassos, há 30 anos, completados amanhã, surgia o Plano Real, que é considerado por especialistas como um marco histórico que salvou o país, mergulhado na hiperinflação e sem capacidade para crescer.

 

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O real é a 12ª moeda brasileira desde o período colonial e é a mais longeva desde a redemocratização. Antes dele, vários planos econômicos fracassaram a partir dos anos 1980, como Cruzado, Cruzado Novo, Verão, Bresser, Collor I e II, porque nasciam sem um grande planejamento, e ora cortavam centavos ora tentavam dar choques de congelamento de preços, e até confiscar a poupança dos cidadãos, sem sucesso.

 

O Plano Real foi criado no governo Itamar Franco, por um grupo de economistas renomados, liderado pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso (FHC) — o quarto titular da pasta desde o impeachment de Fernando Collor. O controle da inflação foi decisivo, inclusive, para que o tucano FHC ganhasse as eleições de 1994 no primeiro turno, não deixando chance para o rival, o petista Luiz Inácio Lula da Silva, que votou contra o Plano Real no Congresso Nacional quando era deputado. Não à toa, para conseguir vencer em 2002 sem que houvesse uma nova disparada do dólar e da inflação, precisou escrever a Carta aos Brasileiros, a fim de acalmar os mercados e a população, prometendo ser mais responsável fiscalmente. Agora, volta a cometer os mesmos erros quando critica o Banco Central e afirma que a volta dos riscos fiscais é "fake news", de acordo com especialistas ouvidos pelo Correio nesta série de reportagens e entrevistas que serão publicadas pelo jornal.

 

 

Analistas lembram que os petistas não podem esquecer que os dois primeiros mandatos de Lula foram bastante beneficiados pela estabilização da moeda proporcionada pelo Plano Real. E, com isso, saiu da recessão e voltou a crescer, porque atraiu investimentos e o Produto Interno Bruto (PIB) voltou a crescer, chegando ao pico de 7,5%, em 2010, o que ajudou o PT a eleger a ex-presidente Dilma Rousseff.

 

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Ministro da Fazenda à época do lançamento da atual moeda, Rubens Ricupero recorda que a preparação e o lançamento do real foram uma experiência única. "Foi, sem dúvida, a maior oportunidade que tive em vida de fazer diferença em relação ao Brasil", resume. Para ele, o maior legado do real foi dar ao país o que ele antes não possuía: "uma moeda estável, base da soberania e da autoestima".

 

Na avaliação de Ricupero, a base da duração foi a espontânea adesão do povo. "Hoje, a população brasileira não tolera a inflação e pune quem adota atitude displicente em relação à estabilidade de preços", afirma. "Ao contrário do que dizem alguns, o real tinha apenas um objetivo: afastar para sempre a hiperinflação e restituir ao Brasil condições mínimas de estabilidade monetária. Essa prioridade não deixava, na época, espaço para outras metas desejáveis, mas menos prementes", acrescenta.

 

"O principal efeito do Plano Real foi dotar o país de um bem público fundamental para o desenvolvimento, que é a estabilidade da moeda. E isso resultou em uma tremenda redução de custo de transação da economia brasileira", avalia o economista Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda no governo José Sarney e sócio da Tendências Consultoria. "O plano estabeleceu o que havia sido perdido há muitos anos, que é o horizonte de planejamento. Ou seja, foi possível formular cenários de longo prazo de 10 anos, 15 anos, e assim por diante. A estabilidade estancou o processo de corrosão inflacionária dos salários, com dois efeitos muito positivos: primeiro, o aumento do consumo das classes menos favorecidas, que ajudaram a impulsionar a economia e, segundo, a redução do processo de elevação das desigualdades, que é provocado pela inflação alta e sem controle", destaca.

 

Nóbrega ressalta ainda que o Plano Real ajudou a aumentar a confiança no Brasil, "criando ambiente para a atração de investimentos estrangeiros". "E mais, eu diria que simulou também o apoio ao líder político que bancou as ideias que levaram ao Plano Real, que é Fernando Henrique Cardoso. E a reeleição do Fernando Henrique, embora até hoje discutida do ponto de vista político, permitiu ao país estabilidade face às várias crises externas e, ao longo do processo de reformas estruturais, a economia aumentou a produtividade e sua capacidade de crescer", acrescenta.

 

De acordo com Edmar Bacha, que participou do Plano Cruzado, houve muito aprendizado dos planos anteriores para que os mesmos erros não fossem repetidos no Plano Real e em países vizinhos. "Muita coisa, a gente tinha que fazer. Eu me lembro que o Alejandro Foxley, o primeiro ministro da Fazenda (entre 1990 e 1994), após a redemocratização no Chile, em 1988, que é meu amigo, brincou e disse: 'Bacha, obrigado por vocês e os argentinos terem vindo antes de nós e mostrarem tudo errado que era para não ser feito'", afirma. Ele recorda também que, na Argentina, após a redemocratização, o governo tentou copiar o Plano Real, com o Plano Alfonsin, "que foi um enorme fracasso". "No Chile, não. Foxley entrou com o Banco Central independente, desde o começo, e eles fizeram tudo direitinho. Mas eles também não tinham tanta inflação assim como a do Brasil."

 

Grau de investimento


Ao longo desse processo de estabilização do real e a melhora nas contas públicas — em grande parte, via aumento de imposto em vez de cortes de gastos, que aumentaram expressivamente ao longo dos governos petistas —, o risco país foi recuando gradualmente, passando de 1.183 pontos, em junho de 1994, para 221 pontos, em 2007, ano em que o Brasil recebeu o selo de bom pagador. Mas o grau de investimento durou pouco, foi perdido em 2015, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), com a volta do desequilíbrio fiscal, que ainda não foi solucionado. Atualmente, em meio à piora do cenário fiscal e das declarações polêmicas de Lula que mexem com o câmbio, o risco país está em 236 pontos, conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

 

O consenso entre os entrevistados é que, infelizmente, as reformas previstas para a sustentação do Plano Real ainda não foram concluídas. O ex-ministro Rubens Ricupero ressalta que falta ao Brasil completar essa obra por meio de quatro medidas: responsabilidade fiscal e atenção à qualidade e resultados dos gastos públicos; estabilidade das normas jurídicas; investimentos em recursos humanos e infraestrutura; e distribuição equitativa de rendas por meio de reforma progressiva do Imposto de Renda.

 

Origem e principal negociador


Principal negociador junto ao Congresso Nacional e ao Judiciário e considerado por analistas como personagem fundamental para o sucesso do Plano Real, o economista e escritor Edmar Bacha reconhece que a reforma monetária foi bem-sucedida e conseguiu controlar a inflação e a população entendeu a importância que é viver sem o descontrole de preços.

 

"Isso é uma coisa que a gente sempre falou. A inflação é o pior dos impostos, porque ele atinge as pessoas mais pobres, que não têm como se proteger. Quem tem grana, bota nas contas remuneradas e fica feliz da vida. Os pobres põem o dinheirinho no bolso e ele derretia. Ele tinha que ir ao supermercado no dia em que recebia, porque os preços subiam diariamente. Era um horror para os trabalhadores de uma maneira geral", destaca. Na avaliação dele, quando veio essa sensação de estabilidade, imediatamente, a população entendeu o benefício que é ter a moeda valorizada.

 

"A popularidade de Fernando Henrique nas pesquisas presidenciais disparou e ele venceu no primeiro turno", recorda o então principal economista do PSDB, que foi convencido pelo ex-governador de São Paulo Mário Covas a aceitar o convite do então ministro da Fazenda, FHC, na coordenação da equipe de economistas e advogados envolvidos na estruturação da reforma monetária.

 

A origem do Plano Real teve como origem um estudo de dois alunos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), André Lara Resende e Pérsio Arida, que ficou conhecido como Plano Larida, publicado em 1984, ou seja, 10 anos antes do lançamento da atual moeda. Professor desses alunos, Bacha foi o primeiro nome chamado pelo ministro da Fazenda, Fernando Henrique, quando Itamar Franco resolveu surpreender e colocar um sociólogo que era Ministro das Relações Exteriores na Fazenda para tentar controlar a inflação.

 

Outros nomes compunham o grupo, e tiveram papel importante, como Murilo Portugal, que estava à frente do Tesouro Nacional e ajudou na renegociação das dívidas dos estados (leia mais na página ao lado), e Clóvis Carvalho, que foi chamado de o grande operador do plano.

 

Bacha ficou responsável pela coordenação da equipe e da negociação com o Congresso, chegando a ser chamado até de "senador" por ser um grande negociador. "Era uma equipe grande e Fernando Henrique, certamente, era um maestro. Além disso, ele conseguia controlar o Itamar", explica.

 

"O FHC, óbvio, teve o grande mérito de dar muita liberdade para os economistas. E ele, como político, aceitou o caminho, conversou muito. Mas o grande interlocutor entre o técnico e o político foi Edmar Bacha. Tanto é que o Baixa ganhou o apelido de senador", destaca o economista Simão Davi Silber, professor da Universidade de São Paulo (USP). Ele lembra que Bacha teve um papel muito importante ao negociar com o Congresso e com o Judiciário durante os quatro meses que antecederam o lançamento da moeda, para ver se não tinha nenhum problema legal ou constitucional. "O Plano Real não foi contestado porque tudo já tinha sido, a priori, aprovado pelos Três Poderes", frisa.

 

A economista Selene Peres Nunes, uma das autoras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), frisa, por sua vez, que, antes do Plano Real, o país vivia uma grande ciranda financeira com empresas e indivíduos procurando se proteger do derretimento do valor real da moeda. "Tudo isso afetava a capacidade de gerar emprego e renda e afetava também a própria capacidade dos agentes econômicos de tomarem decisões capazes de gerar riqueza efetivamente e não havia como investir no país. O plano conseguiu, realmente, dar uma guinada nesse quadro, e, a partir dele, nós iniciamos uma nova era, que permitiu traçar cenários mais claros para as finanças públicas nacionais", resume.

 

Na equipe também estava Murilo Portugal, que estava à frente do Tesouro Nacional e que foi uma peça importante nas renegociações das dívidas com os estados. Ajudou a colocar em pé o Programa de Ação Imediata (PAI), que pavimentou o caminho para a formulação e a execução do Plano Real. "Portugal soube negociar muito bem essas despesas, para fazer o ajuste fiscal", destaca Selene.

 

De acordo com Portugal, o fluxo dos repasses da União para os estados foi usado como garantia para essa renegociação, e, com isso, quando os governadores começaram a pagar o parcelamento, em 1994, 11% da receita corrente líquida deles, isso representou 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB). Depois teve o Fundo Social de Emergência, que foi aprovado desvinculando 20% das receitas. "Tudo isso gerou um superavit primário, em 1994, de 5,17% do PIB como resultado das medidas", conta.