*Conteúdo produzido por Flávio Castro
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das Praias, em discussão no Senado Federal, visa transferir terrenos de marinha da União para estados, municípios ou proprietários privados. Essa mudança pode afetar significativamente as praias do litoral de São Paulo. A proposta, apresentada em 2011 pelo ex-deputado Arnaldo Jordy (PA), foi aprovada pela Câmara dos Deputados em 2022 e agora está sendo discutida no Senado sob a relatoria de Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
A ação parlamentar propõe a transferência de propriedade de terrenos de marinha, que atualmente pertencem à União, para estados, municípios ou proprietários privados. Esses terrenos são definidos como faixas de terra que começam 33 metros a partir do ponto mais alto que a maré atinge. Os terrenos de marinha são descritos no artigo 20 da Constituição e incluem áreas como praias marítimas, costeiras e ilhas oceânicas e fluviais, embora não sejam propriedade da Marinha do Brasil.
Os impactos dessa proposta são controversos. Entre os pontos positivos, destaca-se o potencial para o desenvolvimento econômico local, incentivo ao investimento privado e maior autonomia para estados e municípios na gestão dessas áreas. No entanto, há preocupações significativas sobre os impactos negativos, como o risco de privatização de áreas à beira-mar, possível restrição de acesso público às praias e efeitos ambientais adversos.
A discussão sobre a PEC das Praias ganhou notoriedade com a participação de figuras públicas, incluindo a atriz Luana Piovani, que se uniu a ambientalistas em uma campanha contra a proposta, e o jogador de futebol Neymar, que anunciou uma parceria com uma construtora para um condomínio na beira do mar, em apoio à medida. Curiosamente, um outro assunto se notabilizou na mídia nos últimos dias: o encantamento de Cortney Novack, uma booktuber estadunidense de 45 anos, que recentemente descobriu a força da literatura de Joaquim Maria Machado de Assis, um dos maiores, senão o maior escritor brasileiro. A influencer fez um vídeo que viralizou, no qual ela tece as maiores homenagens possíveis ao autor realista, mesmo após confessar que não havia sequer lido o livro inteiro.
Sim, mas o que esses assuntos têm em comum? Eis a questão...
Um tema constante na literatura machadiana é a megalomania, que muitas vezes figura como a própria definição da loucura. Ser louco, portanto, é querer possuir os reinos, os exércitos, os tesouros e saberes, como desejava o personagem Rubião, do romance "Quincas Borba". O protagonista tem um sonho que, aos poucos, se converte em delírio: ele se imagina como Napoleão III e se vê desfilando com toda a pompa e gala pelas ruas de Paris. Em uma cena memorável, Rubião toma chá olhando pela janela do seu palacete, de onde se vê a exuberante paisagem carioca, e logo começa a crer que o mundo lhe pertence: as montanhas, o oceano e até mesmo as gaivotas. Em outro momento do livro, o personagem considerou ter as mãos beijadas: “Rubião teve aqui um impulso inexplicável, – dar-lhes a mão a beijar. Reteve-se a tempo, espantado de si próprio” (cap. XCI).
A fase realista da obra machadiana é rica em demonstrações sobre a ânsia de possuir, de ordenar e acumular, ou seja, ela está repleta de caracteres megalomaníacos. Um ótimo exemplo está no conto "O Alienista", no qual um dos personagens, um paciente do hospício da Casa Verde, acreditava ser uma estrela e passava os dias com os braços e pernas estendidos, irradiando brilho e luz.
De forma semelhante, a PEC das Praias pode ser vista como um reflexo de uma megalomania institucional, onde o desejo de posse e controle sobre terrenos valiosos e estratégicos leva à proposta de transferência de propriedade para entes menores ou indivíduos privados. Esse desejo de apropriação pode ser interpretado como uma forma de delírio coletivo, onde a ânsia por controle e lucro sobrepõe-se às considerações ambientais e sociais.
Assim como Rubião vê a si mesmo como o dono do mundo, a PEC das Praias propõe um cenário onde terrenos costeiros, que são patrimônios naturais e coletivos, poderiam ser privatizados e administrados por entes locais ou privados, possivelmente levando à exclusão do público geral e à degradação ambiental. A crítica machadiana à megalomania, portanto, ressoa na discussão contemporânea sobre a PEC das Praias, alertando para os perigos de se permitir que a ambição desmedida comprometa o bem comum.
É essencial conhecer o imbróglio da PEC das praias antes de opinar e condenar aqueles que pensam diferente de nós. Caso contrário, corremos o risco de agir como a influencer, que viralizou ao elogiar um livro que sequer terminou de ler. Isso é revelador: a americana declara que é o melhor livro que já leu e que teme pelo fim da sua leitura, mas fala pouco sobre o conteúdo ou os motivos reais que a encantaram na obra de Machado de Assis. Aliás, esse entusiasmo e essa certeza não parecem um pouco megalomaníacas? Ainda assim, o vídeo viralizou, as vendas de traduções da obra machadiana dispararam nos EUA, mas há pouco debate efetivo sobre o texto, seus personagens, tramas e ideias. Quando defendemos ou acusamos a PEC das Praias sem conhecer o tema, muitas vezes por seguir uma figura pública envolvida na polêmica, corremos o risco de agir como a influencer, que recomendou veementemente um livro que ainda não terminou de ler. O melhor a se fazer é sempre ler, estudar e refletir antes de se posicionar, de modo evitar as armadilhas do orgulho e da empolgação vazia.
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Sobre o autor: Flávio de Castro é pós-graduado em Letras pela Unicamp e escritor. Escreveu Desaparecida (2018) e Minério de Ferro (2021), além de colaborar em diversas revistas, jornais e suplementos. Atualmente é pesquisador no Posling do CEFET-MG e professor de Literatura e Interpretação de Textos no Curso DetOnline.