"Eu quero mais é asfalto e concreto, para pegar meu skate e sair por aí gastando minhas rodas, descendo e subindo ladeiras puxado por ônibus, dropar de muros, horrorizar o trânsito, achar transições para uma boa diversão, entrar na contramão, subir guias, etc. Por quê? Por que nós amamos isto, vivemos disto!!!"
Assim escreveu o skatista Fábio Bolota em matéria de 1986 da revista Overall.
Em agosto daquele mesmo ano, o então prefeito de São Paulo, Jânio Quadros (1917-1992), daria sua primeira ordem para coibir o skate no Parque do Ibirapuera.
Dois anos depois, a ordem para reprimir viraria proibição oficial, posteriormente estendida para toda a cidade de São Paulo.
Como o skate no Brasil foi de prática transgressora, perseguida por políticos conservadores, a esporte campeão de medalhas nas Olimpíadas?
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Conheça essa história e prepare-se para as disputas do skate nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, que já começaram neste domingo (28/7) com a medalha de bronze de Rayssa Leal (veja mais informações ao fim desta reportagem).
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Do 'surfinho' à conquista do espaço urbano
De origem californiana, a prática do skate chegou ao Brasil no final da década de 1960 e se popularizou na segunda metade da década seguinte, relata o historiador Leonardo Brandão, professor da Universidade Regional de Blumenau (Furb).
"No início, os skatistas apenas deslizavam pelas ruas e calçadas imitando as manobras que os surfistas realizavam nas ondas do mar", escreve o pesquisador, acrescentando que, por conta disso, o skate era mais conhecido na época como "surfe de asfalto" ou "surfinho".
A partir de 1977, no entanto, a atividade passa por um "processo de esportivização", conta Brandão, com o desenvolvimento de um mercado, publicações especializadas, pistas, campeonatos, equipes, marcas e empresas interessadas na sua promoção e profissionalização.
Até que, na década de 1980, surge uma nova forma de praticar o skate, que subvertia a lógica da atividade como prática esportiva: o street skate, ou skate de rua, em bom português.
"O street começa a perambular pelas cidades, principalmente em praças, onde existem bancos e corrimãos", diz Brandão, em entrevista à BBC News Brasil.
"Ele trazia de novidade um uso irreverente da cidade. Uma escada é planejada pelo urbanista para ser descida a pé e o corrimão para servir de apoio à mão. O skatista transgride, 'transvaloriza' esse uso", observa o pesquisador.
"A escada passa a ser um obstáculo que ele vai pular de diferentes maneiras, o corrimão, ele vai descer com o skate. Então o skatista faz um 'contra uso' da cidade e é isso que vai gerar conflitos"
Da 'anarquia urbana' à proibição
O street skate se desenvolveu no Brasil misturado à cultura punk e com o mesmo espírito de transgressão e rebeldia.
"Eles [os skatistas] não se preocupam com a etiqueta social, nem com o sistema que tentam lhes impor. Criam uma anarquia urbana e circulam sem nenhum tipo de autoritarismo. São os filhos do futuro! Não se importam com comentários ou críticas, pois banalidades já estão cansados de ouvir. Eles pensam diferente do Status Quo e se comportam como tal."
O trecho é de autoria de Paulo Anshowinhas, editor da revista Yeah! e foi coletado pelo historiador Leonardo Brandão.
"Existe uma bifurcação no skate: de um lado o skate praticado em rampas, associado à ideia de esporte e, posteriormente, de esportes radicais", diz o professor da Furb.
"Agora, o skate na rua é considerado mais como uma espécie de uso da liberdade. Está mais perto do campo artístico, da criação, do que da competição, disciplina física e espaço instituído do esporte."
Na São Paulo da década de 1980, os skatistas de rua tinham nas marquises do Ibirapuera seu local preferido, devido ao chão liso e à proteção que a cobertura oferecia em dias chuvosos.
O local porém tinha um vizinho careta: o prefeito Jânio Quadros, cujo gabinete estava instalado no Pavilhão Manoel da Nóbrega do parque, hoje sede do Museu Afro.
Vale lembrar que, antes de ser prefeito de São Paulo, Jânio Quadros foi por um brevíssimo período presidente do Brasil (de 31 de janeiro a 25 de agosto de 1961), tendo sido eleito sob o moralizante jingle anticorrupção "Varre, varre, vassourinha! Varre, varre a bandalheira!".
Pois, em agosto de 1986, o conservador Jânio Quadros dá as primeiras ordens para coibir a prática do skate no Ibirapuera, orientando a Polícia Militar a apreender os skates dos praticantes.
Após muitos atritos entre skatistas e policiais, a proibição efetiva é decretada em 19 de maio de 1988, em memorando impresso no Diário Oficial.
Inconformados com a proibição, os skatistas paulistanos organizaram uma manifestação, que reuniu cerca de 200 participantes.
Eles foram de skate do metrô Paraíso ao parque do Ibirapuera, com a intenção de entregar "uma carta com mais de 6 mil assinaturas" pedindo a reconsideração da proibição e a construção de uma pista no local ou em outra área pública.
Quadros ordenou que os seguranças fechassem os portões de acesso ao parque e impedissem a entrada dos skatistas.
Além de não receber os manifestantes, o então prefeito decidiu levar a proibição além, barrando o uso do skate em toda a cidade de São Paulo.
Brandão destaca que a proibição da capital paulista é a mais documentada, mas não foi a única do período.
Muitos municípios brasileiros proibiram o skate nas ruas no final da década de 1980 e a repressão também aconteceu em cidades da Califórnia, nos Estados Unidos, berço do skate. Com a proibição, a repressão policial endureceu.
"Por duas vezes eu fui preso, me colocaram numa cela", conta o skatista Thronn, em relato colhido por Leonardo Brandão.
"Uma vez fui preso porque estava dando fiftys [deslizando com os eixos do skate] nos arcos de ferro da igreja de Moema. Uma vez no Parque do Ibirapuera, fui ao banheiro da lanchonete e, quando voltei, todos meus amigos tinham sido abordados e seus skates, confiscados", lembrou o skatista.
"Aí os guardas vieram querer pegar o meu, e o pessoal, já meio derrotado e cabisbaixo, pediu pra eu entregar também, mas comecei a lutar, girando como numa roda de punk e saiu voando caneta, blocos de anotações, distintivos, moedas, tudo que os guardas tinham."
Da prefeita que amava o skate às medalhas em Tóquio
No artigo acadêmico "De Jânio Quadros a Luiza Erundina: Uma história da proibição e do incentivo ao skate na cidade de São Paulo", Brandão lembra um caso saboroso, passado no fim do mandato de Jânio Quadros, quando Luiza Erundina (PT) já havia sido eleita a nova prefeita.
Alexandre Ribeiro, um skatista conhecido da época, voltava com amigos de uma apresentação de colegas americanos famosos, em evento realizado no Ibirapuera.
O grupo cruzava a marquise do parque em seus skates, quando foi surpreendido por um guarda.
A turma brigava para ter de volta os skates apreendidos pelo homem da lei, quando chegou um "opalão preto" e de dentro saiu ele mesmo: o prefeito inimigo do skate.
"Jânio Quadros foi até nós e começou a perguntar: 'Que baderna é essa aqui? Vocês não sabem que eu proibi a prática de skate nas ruas da cidade de São Paulo, inclusive aqui no parque?", conta Ribeiro, em relato publicado no artigo acadêmico.
"Um dos meus amigos se desesperou e pegou o skate do meio da pilha, dizendo que a mãe dele iria dar uma bronca se ele perdesse o skate. Foi quando Jânio disse: 'Dê-me esse skate, ele foi apreendido' [...] Vixe, gelei após ouvir isso!", lembra Ribeiro, que posteriormente tornou-se professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), na área de veterinária.
"Deram-se início às explicações, que estávamos apenas de passagem [...]. Lembro-me que Jânio disse: [...] 'Ah, mas vocês são mesmo terríveis, devolvam-lhes os skates!! Escutem, aguardem o mandato da nova prefeita Erundina que irá libertar a prática do skate; inclusive liberará a volta dos camelôs às calçadas!'"
Dito e feito. Mulher, nordestina, solteira e marxista, Erundina surpreendeu o próprio partido ao ser eleita prefeita de São Paulo e, em um de seus primeiros atos, revogou a lei que proibia a prática de skate nas ruas da cidade.
A posse de Erundina foi em 1º de janeiro de 1989. No dia 8 daquele mês, numa matéria intitulada "Erundina começa a mostrar seu estilo", o jornal O Estado de S. Paulo registrava: "skates ao Parque do Ibirapuera e a volta dos vendedores ambulantes à praça da Sé foram as mudanças mais visíveis na cidade de São Paulo, durante a primeira semana de mandato da prefeita Luiza Erundina".
O trecho também foi colhido por Brandão e consta do artigo já citado.
Em entrevista à Folha da Tarde, publicada na edição de 16 de julho de 1990 sob o título de "Erundina: a prefeita que ama o skate", disse a então petista:
"Eu me sinto comprometida com os skatistas da cidade [...] Meu compromisso com eles é tão sério que ainda pretendo fazer parte de algum clube que reúna skatistas, embora já não tenha mais idade para fazer o mesmo que essa rapaziada maravilhosa de nossa cidade faz sobre um skate. Na nossa gestão vamos criar condições para que os adeptos deste esporte possam praticá-lo adequadamente."
A partir da gestão de Erundina, o skate passou a ser menos marginalizado.
O processo de reconhecimento social chegou a seu ápice com a estreia como esporte olímpico nos jogos de Tóquio em 2021.
Em 2015, o Brasil somava 8,4 milhões de praticantes de skate, segundo pesquisa Datafolha, e a indústria nacional ligada ao esporte é considerada a segunda maior do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, cujo mercado é estimado em US$ 4,5 bilhões (R$ 23,3 bilhões) ao ano.
A forte presença da atividade no país se refletiu no quadro de medalhas do Brasil em Tóquio: Kelvin Hoefler ganhou a prata no street masculino, abrindo a contagem de medalhas do país naqueles Jogos Olímpicos.
A ex-prefeita Luiza Erundina cumprimentou Hoefler pelo feito no antigo Twitter e o atleta respondeu a ela: "Obrigado por acreditar no skate!"
No dia seguinte, foi a vez da maranhense Rayssa Leal fazer história, garantindo uma medalha de prata no street feminino e se tornando, aos 13 anos, a mais jovem desportista individual a ganhar uma medalha em Olimpíadas até então.
"É muito louco. Saber que no início só minha mãe e meu pai me apoiavam e saíam com a cara e coragem para eu poder estar aqui", disse a vice-campeã olímpica em Tóquio.
"Skate é, sim, para todo mundo, assim como qualquer esporte, como futebol e handebol. Muita gente fala que handebol é só para meninas. É para todos e skate não é só para meninos."
"O skate sempre foi visto como uma coisa de homem, e aí ela vai lá: uma menina, de Imperatriz do Maranhão no Nordeste, que começou a andar de skate vestida de fadinha e se torna uma campeã olímpica em Tóquio", destaca Brandão, ele mesmo skatista desde os 12 anos.
"A gente não tem ideia ainda do que isso vai causar no sentido de liberar outras meninas para fazerem o que elas quiserem fazer da vida. O fato de ela falar 'o skate é para todo mundo' carrega um teor político muito grande. Isso é mais uma etapa da conquista do espaço público pelas mulheres", considera o historiador.
"Durante muito tempo, as mulheres foram destinadas somente ao espaço privado. Mulher era para ficar dentro de casa e o homem no espaço público. Isso demonstra que as mulheres podem cada vez mais ir para o espaço público e fazer o que elas quiserem. Esse gesto político da Rayssa é mais importante até do que a medalha que ela ganhou."
Dois bronzes para o Brasil em Paris 2024
Em Paris 2024, a mais jovem medalhista da história abriu o quadro de medalhas aos 16 anos, com o bronze conquistado.
Com uma com 12 skatistas, Brasil ganhou ainda um segundo bronze com Augusto Akio, na modalidade park.
Reportagem publicada originalmente em julho de 2021 e atualizada com informações sobre os Jogos Olímpicos de Paris 2024.
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