Enfim, poeta. Flávia Lamary, de 37 anos, acaba de lançar o seu primeiro livro de poesias, “À vontade”, um compilado de reflexões sobre a vida. Esse era o lugar onde queria estar quando criança. Mesmo realizada com o trabalho de arquiteta, ela não ignorou o chamado da escrita e tomou a decisão de incluir no currículo mais um título. O próximo livro de poesias já está encaminhado.

 

O que contribuiu para você se tornar uma mulher múltipla?
Essa é a minha essência. Sempre gostei do processo de construção e transformação, de tirar as coisas do papel, de fazer existirem, de romper o vazio. Falando de uma forma mais prática, acho que na vida as coisas que queremos fazer se misturam com as que precisamos fazer e nessa mistura a gente se encontra. Não nasci com a vida ganha, então sempre tive que trabalhar muito. A busca por espaço para fazer o que gosto e o que preciso foi o que me fez fazer muitas coisas.

 

Por que você escolheu ser arquiteta?
Quando era criança, até pré-adolescente, brincava que ia ser poeta. Escrevia sem parar. Minha mãe ficava desesperada com isso, o que vai ser dessa menina. Como eu disse, não nasci com a vida ganha. Lá pelos 13 anos, me identifiquei com as pessoas de exatas. Sempre tive facilidade com matemática, física, nunca precisei estudar. Sabe aquele momento em que você se coloca em uma caixinha e nega o seu pulso? Pensava: não sou da escrita, sou das exatas. Muita gente passa por essa redução, principalmente a geração até os anos 1990. Na minha educação isso era forte. Hoje, depois de muita terapia, inclusive, vejo que a arquitetura era o caminho mais natural para uma pessoa de exatas, mas que também tinha uma veia artística e poética.

 

Como a sua carreira se desenvolveu até aqui?
Durante o curso, fui muito aberta a descobrir tudo o que a arquitetura podia me oferecer. Trabalhei com design de interiores, cenografia e detalhamento de projetos. Saí e abri meu escritório. Já me formei tendo executado mais de 15 projetos. Desde muito cedo, fui fazendo o que queria, mas também o que precisava. Tinha uma ansiedade de colocar a minha carreira para funcionar, então não falava não. Comecei a administrar as obras, além de fazer os projetos arquitetônicos. Até que uma grande construtora me chamou para fazer um prédio residencial de luxo. Aceitei, porque não teria outra forma de aprender sobre construção civil de grandes obras. Há 10 anos, sou a responsável pela expansão de uma rede de drogarias, desde o estudo de viabilidade do terreno até a entrega do ponto. Estudei gestão de projetos em Nova York, fiz um MBA executivo e um curso sueco em design de comportamento. Queria mergulhar na experiência do cliente. Então, a minha carreira veio para o varejo, mas até nele vou me aproximando de um lugar mais humano.

 

Em que momento veio o desejo de escrever um livro?
Não tinha essa intenção. Brinco que fui sequestrada pela poesia. Sempre fui uma pessoa de projetos artísticos paralelos. Faço quadros, crio identidade visual, mas ainda não tinha visitado esse lugar da escrita. Há alguns anos, estava refletindo sobre a minha vida pessoal e caiu a ficha de que estava me perdendo. Anotava muito sobre outras coisas, mas não anotava sobre minhas reflexões e pensamentos. Despretensiosamente, me dei de presente de aniversário um aplicativo de diário e comecei a tomar nota de algumas reflexões, nada longo, uma linha a cada duas semanas. Um dia estava muito triste e fui tomar nota, na varanda da minha casa, para não me esquecer. Escrevi um poema, sem pensar. Foi uma coisa muito maluca e inesperada. Passei os dois meses seguintes escrevendo sem parar, de madrugada, inclusive. Acordava às 2h e escrevia até as 5h. Passei muitas coisas da vida na peneira da poesia, é através dela que sinto. Vivi um momento bem intenso de escrita, mas não sabia o que fazer com aquilo. Esse pulso de escrita foi se acalmando, mas assumi que queria seguir escrevendo. Fiz uma mentoria maravilhosa com a escritora Ana Holanda. Quando terminei, ela falou: você tem um livro pronto. Foi muito legal, porque recebi muito encorajamento de pessoas da literatura e isso fez muita diferença. Para mim, a poesia é isca para muitos lugares, emoções e reflexões especiais. Por isso, opto por compartilhar.



 

Quanto tempo levou para o livro ficar pronto?
Pouco mais de dois anos. Como não era um projeto com prazo, foi sendo construído com um ritmo próprio, o que faz dele especial. O único momento em que eu me apressei foi no último mês e meio. Sabe quando você está muito envolvido com o planejamento de alguma coisa e não quer perder essa intensidade? Já tinha começado a escrever outro livro e estava me distanciando desse primeiro projeto. Aí senti que o livro tinha que ir logo para o mundo.

 

Sobre o que você fala no livro?
O livro não tinha um tema único, eram poemas independentes. Uma das atividades mais interessantes desse processo foi quando tive que agrupar 95 poemas, dar ritmo, fazer com que conversassem entre si. Foi bem desafiador, mas enxerguei cinco grandes mundos: encontro com a escrita, emoções fortes, reflexões sobre a vida, memórias e passatempo.

 

Como anda sua relação com a escrita?
Leio e escrevo praticamente todos os dias. Isso tomou um espaço fixo e contínuo na minha vida. Hoje sou mais disciplinada em tentar registrar o momento em que a reflexão acontece. Quando vejo um ponto de luz poética, pode ser lembrança, crítica, eu anoto.

 

Já se enxerga e se coloca como escritora?
É difícil falar, eu me sinto um pouco impostora, porque não vim da academia, mas sei que não é mentira, então hoje já falo. Só não me imagino me tornando escritora full time. Um, porque gosto muito do meu trabalho, sou realizada. Dois, porque, mesmo se não gostasse, a escrita infelizmente é uma economia de escala e colocar arte em economia de escala é muito cruel. Não é a minha intenção.

 

O que muda no seu trabalho como arquiteta?
A poesia de alguma forma desendurece meu olhar e isso com certeza impacta qualquer outra coisa que vou fazer. Tenho só um par de olhos e com eles enxergo tudo. Sabe o que a poesia também fez comigo? Me deixou muito mais observadora e curiosa. Quero escutar muito mais o outro e isso transforma qualquer trabalho que possa fazer.

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