A mão que molda o barro, o barro que molda a vida. Seres que se cobrem de terra, e pela terra ganham outras dimensões. Um ofício que não se limita à bolha em que se perde o mundo moderno - pelo contrário, resgata algo que não pode ficar circunscrito em conceitos preconcebidos, ou no lugar comum que esquece da singularidade. A arte que encontra histórias, experiências que se perpetuam no tempo e com o tempo, a percepção de ser poeira e, por isso mesmo, como significa fazer diferente, e fazer com amor.

A designer Mary Arantes convida os entusiastas da prática ancestral da cerâmica para o I Encontro de Ceramistas - Edição Dia das Mães, entre esta sexta-feira (3/5) e domingo (5/5), em Belo Horizonte. "Se tem algo que me fascina, são as cerâmicas, a começar pelas do Vale do Jequitinhonha, região onde nasci. O engraçado é que nunca quis fazer aulas de cerâmica. Escolhi ficar do lado da escuta, do estudo, da pesquisa (literalmente de campo), da origem e do processo", diz.

São 18 ceramistas, todas mulheres, mãos de onde nasce o que não se consegue dizer com palavras. Mary conta que a intenção é fazer um evento que amplie a visibilidade dos artistas, guardiães e disseminadores desses saberes e fazeres ancestrais. "Um acervo vivo. São detentores de técnicas que precisam ser passadas para frente. Nossa intenção vai além desse encontro. Nosso desejo é que possa acontecer mais de uma vez por ano, já que a feira de cerâmica do setor acontece apenas no fim do ano", pontua.



Entre formas, pincéis, argilas, moldes, carretéis e cacos de cerâmica em meio a roseiras e à poesia concreta da cidade, o encontro acontece no ateliê da ceramista Ione Laurentys, na Rua Corinto, na Serra. Quem entra logo se envolve pelo entorno, entende como o ateliê funciona, sua dinâmica e vida.

Ana Ricciardi e Ângela Maciel

Quermesse da Mary/Divulgação

"Optei por fazer o evento num ateliê da cidade, enaltecendo as poucas mestras deste setor, que repassam em aulas seus saberes. Ione, por exemplo, dá aulas vários dias por semana, e em um dia específico, atende alunos com transtornos mentais. Alguns deles, com mais de 30 anos de atividade, têm visível crescimento artístico e melhoria em seus quadros. Isso nos fala do fazer a mão, do artesanal, como processo terapêutico. Da argila como amálgama do crescimento humano", declara.

Mary é inclusive coordenadora de uma expedição ao Vale do Jequitinhonha, berço desses criativos, que este ano terá a terceira edição, em junho. As viagens contemplam diferentes cidades da região, quando os participantes têm a oportunidade de conhecer de perto as casas e oficinas dos artistas, assim como podem entender as características da cerâmica feita em cada localidade e a história dos mestres que ensinaram a cada um deles.

"Tenho também cadastrados em um mailing mais de 200 ceramistas sediados em Belo Horizonte e redondezas, como Nova Lima e Brumadinho. Poderíamos criar roteiros na capital, já que notadamente se aglomeram em bairros específicos, tendo a cerâmica como foco, gerando visibilidade e renda para esse setor e também para o turismo da cidade", sugere.

Time de peso

Alma por trás da Ceramia Cerâmica, Ana Emília Santana, natural do Vale do Jequitinhonha, não foge à regra das mulheres fortes, resilientes e predestinadas a transformar o que cai em suas mãos. Fazer da argila lindas flores é o que tem realizado no trabalho com a cerâmica, ao qual se dedica há três anos. Cria e inventa rosas, lírios, hortênsias, romãs e o que mais brota de dentro da mulher que também se chama Mia, apelido dado pela irmã, e que agora compõe a identidade da marca.

Ao observar o mundo e enxergar os contornos das formas, Ana Lage recria e dá vida a peças singulares. Cada objeto é uma busca pela essência do que a fascina, uma tentativa de captar o que seu olhar sensível é capaz de perceber, no processo criativo que tem a intuição como uma colaboradora fiel. Entre pratos, potes, copos e outras peças, o trabalho se guia pela beleza da imperfeição, em formatos e desenhos exclusivos.

Atelier do Barro e Cerâmica Cerradão

Quermesse da Mary/Divulgação

A simbologia de objetos como traços da própria artista. Pássaros parecem voar, as casas também se locomovem e vão parar como broches em lapelas e golas. Círculos fazem o papel de mini outdoors e sinalizam o tempo em pingentes de colares. A coerência entre acessórios e utilitários define a personalidade da marca da artista plástica, ceramista e tatuadora Ana Ricciardi, que nasceu para ser aparentemente simples, delicada e minimalista. Com concepções que remetem ao rabisco infantil, memórias e recordações, os itens feitos em argila e porcelana ganham linhas e cores que tornam o trabalho diferente do que se observa na área da cerâmica, já que a maioria faz peças em formatos maiores.

Para Ângela Maciel, a cerâmica instiga e acalma, um vício que a eleva, estímulo para a criatividade e motivo para fazer coisas bonitas. Entre elementos utilitários e decorativos, as peças são geralmente produzidas em torno, vitrificadas em alta temperatura usando esmaltes de própria fabricação. No caminho de 30 anos pela cerâmica, além da produção dos objetos e a pesquisa de esmaltes, Ângela se dedica também a aulas de torno, e formou muita gente nessa técnica milenar.

Mãos que modelam o barro misturando técnicas e poesia. Uma a uma, formas saem do forno, preenchem, comunicam, significam. Assim são as peças da ceramista Stael Guião, do Atelier do Barro. Para compor seu espaço no evento, produziu placas, pencas afetivas, velas, sinos, mini pratos, cumbucas, bowls, bandejas, feitos especialmente para a data. Palavras, natureza e recordações impressas no barro trazem boas vibrações, delicadezas e reflexões sutis - o barro que vira poema e voa.

Mulher

A arquiteta e urbanista Amanda Oliveira, apaixonada por cerâmica, participa no evento com a Ceramística, apresentando a produção idealizada para a valorização do feminino, exaltando as diversas formas e possibilidades do ser mulher. O trabalho - pequeno e consciente, como deseja - é focado em peças únicas como brincos, objetos como a "vulva" e alguns utilitários. Toda a queima acontece em alta temperatura, o que atribui uma maior resistência ao barro, colorido com esmaltes atóxicos com pigmentos variados.

Ceramística e Chão de Cerrado

Quermesse da Mary/Divulgação

Cerrado

Com as mãos sujas de barro, Layane Vilar se reconecta ao seu lado artístico. Se encontra e se apaixona pela cerâmica, parceira que descobriu em 2016. Fruto do quadradinho bem lá no meio do cerrado, em Brasília, e com o mar de montanhas mineiras como lar desde 2009, criou a Chão de Cerrado. Do esboço à modelagem, do esmalte à queima, dá vida a cada peça, com corpo e alma que vêm de cada pedaço de chão. Xícaras, copos, pratos, bandejas, cumbucas, vasos e outros itens são feitos com amor em cada passo.

No charmoso pedaço de cerrado em Dores do Indaiá, no interior mineiro, a fazenda Cerradão é onde Cecília Maria da Silva colhe pequenas porções de argila e de esperança. É explorando o barro marrom de coloração inusitada, o barro próprio, encontrado especificamente na propriedade do pai, que a bibliotecária por formação faz da cerâmica uma forma de reabrir as páginas sobre viagens, desenhos, pessoas, pesquisas, ferramentas e outras escritas por vir. Cerradão é o nome do córrego que corta as terras da família, também o nome de um tipo de bioma dentro do cerrado de matas mais adensadas - aí se descobre o barro que suporta altíssimas temperaturas e dá forma às peças. Com a marca que criou, se dedica ao estudo do manejo dessa 'terra' que familiarmente lhe pertence. O artesanato é visto como um mundo a se desbravar, uma infinitude de possibilidades, e com os traços de cada criatura, suas vivências e percepções.

Para relaxar

Para a arquiteta Claudia Resende, trabalhar com cerâmica é uma forma de meditação, um contato profundo consigo mesma e com a natureza. É apaixonada pela cerâmica pela possibilidade de moldá-la de uma maneira livre e criativa, sem regras. Para ela uma demonstração explícita da beleza do ambiente natural, flores, folhas, sementes e contornos orgânicos são representações centrais de sua obra com a argila.

Rastro do fogo

A cerâmica de Inês Antonini trafega entre o utilitário e o artístico sempre com uma marca muito pessoal. Sua produção artística está ligada à exploração do barro enquanto matéria essencialmente plástica que, misturada a outros materiais, possibilita a experimentação de seus limites quanto a forma (dobras e volutas articuladas), escala (de poucos centímetros a três metros) e a temperatura (diferentes queimas, desde 800 graus na queima de buraco até 1320 no forno a lenha, anagama). Simplicidade, despojamento e imprevisibilidade tornam o trabalho uma contínua surpresa, em que sombras e cores dão um caráter único a cada objeto.

Cláudia Resende e Inês Antonini

Quermesse da Mary/Divulgação

A bela surpresa

Ione Laurentys conta que a cerâmica a toca desde pequena - o tio tinha uma olaria e era lá onde ela e os irmãos brincavam, fazendo bichinhos de argila. Perdeu o pai cedo e lembra que a cerâmica ficou ali dentro adormecida até florescer novamente com a morte da mãe. A argila, para ela vida e alegria, lhe moldou em relação à dor. Sua formação em cerâmica foi com o mestre Jorge Chint, na Argentina, em uma época em que não existia em BH escolas especializadas nessa arte. Hoje dá aulas e atende alunos com transtorno mental, que crescem a cada encontro. Criou um esmalte que virou símbolo da marca, efeito conseguido com o uso das cinzas da folha da castanheira. Em agosto, quando as folhas caem, sai pelas praças, com um saco de lixo, catando suas preciosas folhas. Diz que não controla o efeito deste esmalte, e essa é a grande beleza e ensinamento da cerâmica: acolher o inesperado, justamente o que faz de cada peça única.

Ione Laurentys e Jane Resek

Quermesse da Mary/Divulgação

Jane Resek faz de sua feliz caminhada pela cerâmica uma profissão e um lugar aberto para novas amizades. Tem no trabalho um traço potente, um estilo que a difere. As peças, em sua maioria, carregam volumes maiores, e ela nunca foi de usar muitas cores. A cartela é escassa: preto, cru e natural são quase sempre a escolha. Formatos inigualáveis, como o emblemático pião, trazem a força da artista que é.

Para a mesa

Maíra Brandão oferece experiências sensoriais que nascem de sua troca com o barro - quer que quem conhece seu trabalho perceba o quanto o barro fica repleto de si no final do processo. Pensa que a beleza pode estar no lugar comum, na mesa do cotidiano, afinal, por que guardar aquela louça bonita para dias especiais? Para ela, todos os dias podem se tornar especiais. Com objetos que passam pelo servir e o bem receber, utilizar a cerâmica Menina Arteira aguça os sentidos da visão e do tato, relacionados à maneira como a mesa é posta e como o alimento é apresentado. O nome da etiqueta remete a sua infância, menina moleca, que brincava na rua, em cima dos muros, andava descalça e inventava brincadeiras.Um amigo cunhou o apelido para a menina que fazia arte, nome dado ao ateliê de cerâmica que homenageia a menina que agora faz outra arte.

Menina Arteira e Mari Silva

Quermesse da Mary/Divulgação

A cerâmica de Regina Meirelles é consequência de muitas pesquisas de massas, esmaltes, engobes e queimas, assim como de intensos estudos da história da arte, essencialmente no que se relaciona às artes primitivas, tribais e medievais. Entre pratos, cumbucas e outras peças, o resultado é um design limpo e contemporâneo, com referências dos primórdios de civilizações. O trabalho utilitário é orgânico, modelado de maneira livre. A partir da peça piloto, a ceramista repete o formato para que haja uniformidade no conjunto e harmonia para a mesa posta, convidando a apreciar com os olhos antes do uso. Seus esmaltes são produzidos no ateliê que mantém, e assim adquirem identidade própria também em sua vitrificação.

Mari Silva tem uma longa trajetória no artesanato bordando e tecendo rendas, caminho que agora influencia suas criações em cerâmica para formar uma identidade em particular. Com o Atelier Mari Silva - Cerâmica Artesanal, criado em 2018, concebe peças que unem utilitários e esculturas. Xícaras, panelas e pratos com frutas e folhas que fazem parte dos quintais e da história de Minas.

Marlúcia Temponi e Regina Meirelles

Quermesse da Mary/Divulgação

Artista formada em BH, Marlúcia Temponi iniciou sua pesquisa em cerâmica em 2001, quando realizou o premiado trabalho sobre sapatos, e a identidade contida neste objeto. Com a linha relacionada aos corações, partindo do sagrado coração de Maria, adquire uma nova personalidade. Ainda com outras criações no conjunto de sua obra, essa pesquisa se prolonga até hoje, com corações que remetem a situações e sentimentos. E não poderia faltar no encontro, afinal, tem objeto mais simbólico para o amor?

Identidade Brasil

A cerâmica da artista Regina Paula Mota, à frente do atelier Pau Brasil - Arte Cerâmica, tem raízes na cultura brasileira, sobretudo nas ideias modernistas de Oswald Andrade, cujo manifesto de 1924 - Poesia Pau Brasil, inspirou o nome da marca. Como boa antropófaga, recebe e digere as influências mineiras e da tradição milenar da cerâmica do extremo Oriente, ampliando seu repertório e referências. “Ver com olhos livres”, como preconiza o dito manifesto, significa a busca de processos criativos e técnicos que resultam em uma linguagem inédita sobre a argila. Colocando a cerâmica em diálogo com o design, o colecionismo e a arquitetura de interiores, pesquisa as possibilidades de impressão e transferência de imagens técnicas no barro e compartilha seus conhecimentos por meio de workshops.

Regina Mota e Sônia Rigueira

Quermesse da Mary/Divulgação

Sônia Rigueira conta que foi a cerâmica que a escolheu. Bióloga dedicada à conservação da biodiversidade, encontrou aí a forma de comunicar ao grande público a importância da natureza. Sua expressão na cerâmica tem a influência daquilo em que acredita, e fala sobre esse mundo natural, vivo, interessante, acessível, do qual o ser humano é parte. Seja na cerâmica escultórica ou utilitária, entre peças decorativas, para ambientes internos e externos, Sônia tem a inspiração das formas, texturas e cores da natureza, com ênfase para animais, plantas, rochas e paisagens, os caminhos de sua atuação. Galinhas, tamanduás, libélulas, besouros e passarinhos inventados, são peças singulares e objetos para colecionadores. Para o evento, experimenta o ensaio de uma nova coleção, sóbria, dramática e contemporânea, inspirada no calor intenso, no solo seco e suas trincas, no arraso causado pela falta de chuvas.

À mesa

De Graziela e Flávia Ferreira, a Dama de Empadas é responsável pela gastronomia do encontro. Traz empadas artesanais, preparadas com ingredientes frescos e selecionados. Com os clássicos sabores com frango, camarão, carne seca, até combinações da mesa mineira, como a empada de queijo com goiabada, agrada todos os paladares. Também oferece quibes, para fritar e assados, entre opções vegetarianas e veganas.

Dama de Empadas

Quermesse da Mary/Divulgação

Além dos trabalhos das marcas presentes, a mesa especial com peças fora de série e com leves defeitos pretende fazer sucesso. "Fico imensamente feliz em apresentar essas magas. Um time, dessa vez, só de mulheres. Lá estarão mestras e alunas, jovens ceramistas com design inovador, que muito nos dizem sobre o futuro da cerâmica", convida Mary.

Expositores:

Ana Emília - @ceramia_ceramica

Ana Lage - @analage_ceramicas

Ana Ricciardi - @anaricciardiceramica

Ângela Maciel - @angelamacielceramica

Atelier do Barro (Stael Guião) - @atelierdobarro

Atelier Jane Resek - @janeresek

Ceramística (Amanda Oliveira) - @ceram.stica

Cerâmica Cerradão (Cecília Maria da Silva) - @ceramicacerradao

Cláudia Resende - @claudiaresendeceramica

Chão de Cerrado (Layane Vilar) - @chaodecerrado

Inês Antonini - @inesantonini

Ione Laurentys - @ionelaurentys_atelier

Mari Silva -  @marisilvaceramica

Menina Arteira (Maíra Brandão) - @menina.arteira.mab

Marlúcia Temponi -@marlucia_temponi

Regina Meirelles Atelier - @reginameirelles_atelier

Regina Mota - @regina.mota07

Sônia Rigueira - @soniarigueira

Comes e bebes:

Dama de empadas (Graziela e Flávia Ferreira) - @damademepadas

I Encontro de Ceramistas

Curadoria: Mary Arantes

3, 4 e 5 de maio

Sexta-feira e sábado de 10h às 19h; domingo de 10h às 17h

Rua Corinto, 512, Serra - Belo Horizonte

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