Cada um dos 47 estilistas convidados pela Associação dos Criadores e Estilistas de Minas Gerais (A.Criem) para participar do desfile “Moda, Arte & Ofício” se deteve em uma história ou emoção importante. Foi como se muitos braços reunidos tecessem uma só coleção que falasse de paixão.
Entre os veteranos e os oito novos criadores, havia um coração batendo em uníssono e transbordando criatividade. Era a batida da coletividade presente na quarta edição do projeto Passarela da Liberdade, parceria do governo de Minas, por meio da Secretaria de Estado da Cultura e Turismo de Minas Gerais (Secult-MG), com a associação dos designers de moda.
Houve memórias, como as de Andréa Aquino, homenageando o avô, Hercílio, dono da Alfaiataria Aquino, em um traje berry, construído em alfaiataria clássica e repleto de detalhes. Medalhas e honrarias lembravam o tempo em que ele direcionou seu trabalho para as fardas militares. O coração, nas costas do casaco, remetia ao do alfaiate, que parou de bater de repente, deixando-o com a tesoura ainda nas mãos, assim como à paixão pelo ofício e pela moda.
Houve resgate, como no caso de Jotta Sybbalena: ele foi buscar, no acervo da sua antiga marca de vestuário, uma calça de 20 anos atrás, aplicando sobre a superfície as labaredas originais, típicas do seu trabalho, que ficaram conhecidas em todo o Brasil. Para a parte de cima, usou um náilon tecnológico em “foil” prata amassado, tudo executado no mais nobre requinte da alta-costura, com inimagináveis acabamentos.
A Serraria Souza Pinto, local para onde o evento foi transferido de última hora, também se tornou um cenário propício, já que abrigou, durante muitos anos, as primeiras semanas fashion de Belo Horizonte. Junto a isso uma trilha sonora com canções de Milton Nascimento e o som de uma orquestra de flautas, a ESMU – Escola de Música da Uemg – para despertar emoções coletivas na plateia.
Houve mistério. Da geração sangue azul, Amarildo Ferreira colocou na passarela duas paixões: o cinema, cujas imagens em Eastmancolor estão fixadas em sua mente desde criança e o jeans com suas inúmeras possibilidades. Com esse DNA sportswear, o estilista apresentou um look poderoso, envolvido em volumes amplos. Escondido pela capa e capuz, o personagem que criou poderia figurar como protagonista de qualquer filme noir.
Houve brilho e arte. Fernanda Santos apostou em franjas metalizadas reveladoras do corpo e Rafael Rodarte construiu volumetrias imponentes no dourado, reunindo formas orgânicas e a elegância das flores da artista Georgia O’Keeffe. O ponto de atenção era um volume escultural, que nascia nos ombros, remetendo a uma pétala enorme de flor.
Já Rochele Gonçalves apostou nas lembranças, tradições e costumes da infância, homenageando os artistas que pintam, bordam ou esculpem a madeira na beira do rio São Francisco. Tudo traduzido em alfaiataria contemporânea em tecido tecnológico: blazer com transferência de pences, saia em tela com transparência e sobreposição em minibalonê. Destaque para as pinceladas suaves em tons contrastantes ou candy color no blazer, tela itinerante com alguns detalhes pontuais bordados.
Aislan Batista, por sua vez, deu vazão ao seu processo criativo, que começa sempre na matéria-prima. Sua inspiração foi a flor-de-maracujá, padrão do jacquard de algodão escolhido para criar um vestido curtinho, mas repleto de interferências manuais. Ele trabalhou o tecido do lado direito e esquerdo, com desfiados, criando novas texturas e, em alguns momentos, reunindo os fios em tubos de cristais suspensos. A peça também recebeu bordados pontuais. "É como se o vestido fosse o miolo da flor-de-maracujá", explica.
Novos criadores
No projeto da A.Criem, os estreantes, desta vez indicados pelas quatro faculdades de moda de Belo Horizonte, apresentam-se com os veteranos, em uma relação horizontal e igualitária. Prova disto, quem abriu o desfile foi Marina Barcellos, estudante do último ano do curso da Fumec. A silhueta longilínea do vestido, o contraste do tecido em crochê industrial com os volumes 3D nas áreas do ombro e dos braços, era uma clara alusão filosófica sobre a dualidade da paixão. “Não há paixão sem drama. Fiquei nervosa quando soube que haviam escolhido o meu look para a abertura”, declarou.
Rayenne Ribeiro, jovem criadora indicada pela UFMG, confessa que a participação no desfile reacendeu uma chama interna, a clareza sobre o motivo de ter escolhido estudar moda. O look com construção sofisticada, dobraduras frontais, comprimentos assimétricos, mangas descontruídas, enfatizavam um dos apelos da atual edição do Passarela da Liberdade, ou seja, o flerte com a “couture” com pegada mineira.
A herança familiar da avó costureira, a admiração pelos ofícios transmitidos geração pós geração, a ambiguidade e dramaticidade do barroco presente nas cidades mineiras estavam contidos no vestido em cetim vermelho assinado por ela.
Graduado pela UNA, em 2021, Pedro Café também bebeu no patrimônio de Minas Gerais, voltando sua atenção para o altar-mor esculpido por Aleijadinho, uma obra-prima da igreja de Nossa Senhora do Pilar, de Nova Lima, sua cidade natal. O que foi representado por um conjunto de calça e jaqueta em vermelho-escuro, oversized e streetwear. Os bordados em cordão São Francisco e nervuras faziam referência aos arabescos entalhados na madeira, destacando o esplendor barroco e a herança artesanal mineira.
Mensageira de pautas contemporâneas, a moda registra momentos importantes da história, além de esbarrar sempre na questão da memória e do patrimônio. “Temos um rico acervo material e imaterial em Minas Gerais na área da arte e cultura, que precisamos valorizar e conservar”, afirma Antônio Diniz, presidente da A.Criem. Como os franceses protegem o “métier d’art” do seu país. Um exemplo que a associação não quer perder de vista e enfatizado nesse último desfile.