A arte é uma linguagem universal. Que não depende de idioma, localização, credo. Basta ter alguém do outro lado disposto a submergir naquela narrativa. Exatamente por isso, a arte foi a linguagem encontrada para falar sobre perda, luto, os impactos da mineração, esperança e futuros possíveis. A exposição “Paisagens Mineradas: marcas no corpo e no território”, idealizada para não deixar cair no esquecimento os rompimentos das barragens de Mariana e Brumadinho, chega ao Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, no próximo sábado, dia 30.


O trabalho coletivo, que reúne obras de 12 artistas mulheres, é uma realização do Instituto Camila e Luiz Taliberti, fundado por Helena Taliberti, que teve a vida brutalmente impactada pela tragédia de Brumadinho. Em segundos, a lama engoliu a pousada onde estavam seus dois filhos (que dão nome ao instituto), a nora (grávida de cinco meses), o ex-marido e a esposa dele. O grupo era de São Paulo e se preparava para visitar o museu Inhotim.


O desastre deixou cicatrizes profundas, difíceis de aceitar e elaborar. Em muitos momentos, durante a conversa, Helena abaixa a cabeça e respira fundo, buscando fôlego. A esperança surge quando ela fala do instituto, criado em julho de 2019, seis meses depois da tragédia, com o objetivo de defender direitos humanos de grupos vulneráveis e o meio ambiente. A missão tem ajudado a fundadora a atravessar o luto e enxergar um futuro possível.


“Precisamos falar muito sobre isso, nem que seja para ficarmos roucos. É muito importante que a sociedade saiba os problemas sociais, econômicos e ambientais que a mineração causa. Mais que isso, essas tragédias não podem cair no esquecimento, temos que honrar as vítimas, as mortes não podem ter sido em vão”, aponta a economista, que, desde então, é uma voz muito ativa. Naquele janeiro, ela tinha acabado de se aposentar e planejava passar uma temporada na Austrália com o filho, a nora e o neto.


Certa de que a arte consegue tocar mais as pessoas, Helena quer levar a exposição coletiva para cada vez mais cidades. Depois de São Paulo e Belém, agora será a vez de Ouro Preto. Não é uma mostra fácil de se ver, as obras expostas retratam devastação e morte, mas também existe a intenção de falar sobre capacidade de regeneração e vida. O público é impactado por diferentes olhares e formas de falar sobre esse tema, seja através de fotografia, bordado, desenho, audiovisual e outras linguagens.
“Estamos sempre falando sobre morte, mas a minha maior preocupação é olhar para frente, o que vamos fazer para isso não acontecer de novo. Cada artista traz um elemento dessa tragédia e isso reverbera, vibra e se propaga como uma grande onda da consciência.”


No fim, o coração de Helena se alegra ao concluir que a iniciativa se conecta com os legados deixados pelos filhos. Luiz era um arquiteto preocupado com o meio ambiente e Camila, advogada e militante feminista que atendia voluntariamente mulheres em situação de violência. “Temos uma frase que dizemos: tentaram nos enterrar... não sabiam que éramos sementes. Espero que o instituto dure por muitos anos”, destaca.


No ano passado, o grupo levou vida para Brumadinho ao plantar, em parceria com a Fundação SOS Mata Atlântica, 272 árvores, representando cada uma das vítimas. Hoje o bosque já tem mais de 500 árvores e fauna e flora regeneradas. Mais uma forma de transformar a dor e o luto em esperança.


Filha das montanhas

A exposição tem curadoria da jornalista Isadora Canela, que também assina uma das obras. “Sou filha das montanhas de Minas, entre Igarapé e Brumadinho”, apresenta-se. Ela morava em São Paulo quando houve o rompimento da barragem em Mariana e sentiu que era a hora de voltar. Neste retorno ao “meio do nada”, está no mesmo lugar onde cresceu, mas lamenta não ver mais a mesma paisagem.


“Uma coisa que me impactou muito foi ver que a montanha em frente à minha casa, uma entidade, minha religião, está metade minerada. Quando eu era criança, não tinha mineração e isso mudou totalmente a qualidade de vida das pessoas em volta e o ecossistema. A mineração passou a ser minha vizinha principal, está na porta da minha casa, e se tornou a minha pesquisa”, conta.


Em 2022, Isadora e mais duas artistas mineiras foram convidadas para fazer uma instalação em Munique, na Alemanha, onde ocorre o julgamento internacional do caso Brumadinho. Essa experiência artística a aproximou das famílias das vítimas, entre elas Helena e Vagner Diniz, que já tocavam o instituto. Desse encontro, surgiu a ideia da exposição coletiva. O nome “Paisagens mineradas” é o mesmo de uma série da própria Isadora.


Montar um grupo feminino era uma importante premissa. “A Camila era uma grande defensora dos direitos das mulheres, então isso está alinhado aos meus valores e aos do instituto”, justifica. A cada edição, a curadoria convida uma artista local. Desta vez, será a Associação de Senhoras Artesãs de Ouro Preto (Coletivo ASA), fundada em 2008 por amigas apaixonadas pela arte têxtil. O grupo vai construir sua obra junto com o público, em workshop, refletindo sobre com quantos pontos se faz uma paisagem.
A ida para Ouro Preto, na visão de Isadora, tem um significado especial por ser a primeira capital de Minas Gerais, no ciclo do ouro, período em que a mineração moldou a paisagem e a história do estado. Nesta edição, ela apresenta uma pedra de minério de ferro com uma tela dentro, onde passa um vídeo arte dela própria carregando a mesma pedra.


Segundo a curadora, a arte é a única possibilidade de quebrar ciclos e enxergar outras paisagens possíveis, não só na natureza, mas de organização social e políticas públicas. “Para mim, a exposição é um lugar de fé, e não de destruição. As montanhas têm buracos gigantes, cicatrizes quilométricas, mas, assim como nós, não se reduz a isso. São muito maiores que a mineração, e nós também somos muito maiores que as nossas feridas, existem estratégias de regeneração. Isso é o que me faz viver e ter fé.”

O peso do ferro

Esta edição também é especial para a mineira Luana Vitra, já que parte da sua família é de Ouro Preto. Desde criança, as histórias que ouvia de lá se misturam a cenas da cidade onde cresceu, Contagem. E partir disso sua arte se desenvolveu, no limiar entre a indústria e a paisagem (definida por ela como o enquadramento que se dá à natureza), entre a beleza e a violência que é nascer na terra das minas.


“O meu trabalho sempre tratou de mineração. Quem vem da terra onde nasce o ferro nasce com o peso do ferro. Meu bisavô foi mineiro, trabalhou na Mina Morro Velho (em Nova Lima), então a mineração atravessa a história da minha família. E muito do que faço aprendi com o ferro. Foi a primeira matéria com a qual me relacionei e isso se desdobrou para outros materiais do reino mineral”, explica.


A obra da artista, a mesma apresentada nas edições anteriores, é uma das suas primeiras criações. Luana fez recortes em três latas de tinta e usou o próprio material para desenhar paisagens. Inspirada no universo da construção civil, onde se veem latas transformadas em objetos utilitários, com alças de madeira, inclusive, a série “Latas para transporte de paisagens” aborda temas como desequilíbrio ambiental e exploração estrangeira.


Não está sozinha

“Quem mora fora de Minas acha que a mineração ficou na época da colonização, do ciclo do ouro, mas essa consciência de que ela continua e é muito mais violenta e destrutiva poucas pessoas sabem”, comenta Beá Meira, de São Paulo. A artista acordou para o assunto depois da tragédia de Mariana e decidiu usar a sua arte para alertar para uma realidade tão perto e tão distante, ao mesmo tempo.


Esse despertar a levou para o Pará, “onde acontece a grande mineração de escala industrial e internacional”. O seu interesse era representar territórios minerados. Enquanto se dedicava a uma série de gravuras, ela conheceu o Instituto Camila e Luiz Taliberti ao participar, como expectadora, de uma mostra de cinema de mineração. Logo depois, soube que eles estavam organizando uma exposição com artistas que trabalhavam com o tema. “Fui lá, toquei campainha e pedi para entrar”, relembra.


Segundo a artista, foi uma grande satisfação perceber que não estava sozinha. “Quando você começa a pesquisar um tema específico, ainda mais um tema como esse, tem aquela sensação de solidão, de não encontrar quem mais quer conversar sobre isso, e também uma aflição de ver que outras pessoas não estão vendo o que você está vendo. A arte tem um papel muito interessante de conseguir atravessar as bolhas e levar esses temas para espaços públicos”, pontua. Para ela, essa é uma forma de enfrentar o luto, tanto pelas famílias envolvidas nas tragédias quanto pela “perda da vida na terra”.


Beá assina uma das novidades desta edição: uma peça de tapeçaria. Com uma plataforma de georreferenciamento em mãos, ela foi olhando as imagens e bordando a mão os elementos que compõem a Mina do Sossego, de cobre, que fica no Pará. A obra “Vinte anos de Sossego” resulta em uma representação bastante original da paisagem gerada pela mineração. 

"A minha maior preocupação é olhar para frente, o que vamos fazer para isso não acontecer
de novo"

Helena Taliberti
presidente do Instituto Camila
e Luiz Taliberti

Exposição “Paisagens Mineradas”
Data: de 30 de novembro a 15 de março de 2025
Visitação: de terça a domingo, das 10h às 17h
Local: Museu da Inconfidência (Praça Tiradentes, 139, Centro Histórico, Ouro Preto)
Entrada gratuita

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