“A arte lava da alma a poeira do dia a dia”. Estampada no tapete da entrada, a frase do pintor Pablo Picasso explicita a grande missão da Casa Palma: aflorar a sensibilidade e ampliar os horizontes dos visitantes. O imóvel de dois andares no Bairro Serra, Região Centro-Sul de Belo Horizonte, um misto de museu, galeria de arte e espaço de experiências, dedica-se à obra e ao legado do artista Fernando Palma. Quem segue essa história é o filho dele, Júlio Palma, de 43 anos, e a sua esposa, Fernanda Capobiango, de 40. Assim como a arte transformou a vida do seu pai e a sua própria vida, ele tem certeza de que ela pode transformar a vida de outras tantas pessoas.
A ideia da Casa Palma veio de uma mensagem
deixada pelo seu pai, não é isso?
O meu pai não revelou para ninguém em vida que vinha mantendo um diário secreto. Ali deixava registradas suas paixões, técnicas e reflexões. Um ano depois que ele faleceu, tomamos coragem de organizar os seus itens pessoais e achamos uma caixa onde ele guardou todas as folhas de caderno. Imagina a emoção quando me deparo com esse diário, onde ele fala de coisas super íntimas. Tornou-se uma conversa minha com ele, depois que ele se foi. Senti que era um chamado, no sentido de que, claramente, isso não poderia ficar só conosco, tinha que abrir ao público.
Conte um pouco sobre a história do seu pai.
Ele se formou em BH e foi para Nova York trabalhar com cirurgia plástica reconstrutiva. Depois se mudou para o México, onde participava de um projeto social que fazia cirurgia de lábio leporino em crianças e teve contato com a arte mexicana. Ali começa a transformação. Ele voltou para o Brasil e, no auge da carreira, resolveu largar a medicina para virar pintor. Em um dos manuscritos, meu pai citou o pintor italiano Amedeo Modigliani: “Nosso verdadeiro dever é salvar nossos sonhos”. De fato, ele salvou seu sonho através da arte.
Vocês tiveram a oportunidade de conversar sobre o que está nos manuscritos?
Às vezes, falta o contexto ideal para que certos assuntos sejam abordados entre pais e filhos, e eu tenho um filho de 20 anos. Mas, nas entrelinhas, o meu pai falava sobre isso. Ele gostava de me presentear com livros e o último que me deu foi “O Ócio Criativo”, de Domenico De Masi. Em vida, não caiu a minha ficha. Hoje, lendo o diário, vejo o que ele queria me dizer. Depois que ele se foi, pensava: queria ter conversado sobre isso, sobre aquilo, mas hoje sou muito tranquilo em relação às conversas que tive e que não tive com ele. Surgiram muitas outras depois que ele se foi. Costumo dizer que a conversa se tornou mais rica, porque os visitantes trazem suas próprias interpretações, então é como se eles estivessem trazendo novidades dos manuscritos que já li e reli.
A que tipo de arte seu pai se dedicou?
Óleo sobre tela em grandes proporções, principalmente com frutas. Segundo ele, passava horas e horas olhando essas frutas, observando as cores, texturas e sentindo até os aromas. Depois conseguia entrar em cena e viajar no tempo voltando aos pomares da infância no interior de São Paulo, onde nasceu. Numa segunda série de trabalhos, ele se dedica ao universo feminino, diz que conheceu o fruto proibido. A última série da vida dele tem o nome de Transitoriedade. Ele trata sobre a impermanência da vida, ter ciência disso e valorizar o agora. Não sei se é a melhor palavra, mas, por coincidência, ele faleceu durante essa série. Isso instiga bastante.
Você se lembra de sentir seu pai feliz?
Felicidade é algo difícil de sentir na outra pessoa, mas ele parecia confiante e realizado com o que estava fazendo. O meu pai era um cara de poucas e boas palavras. Ele preferia ficar horas e horas te ouvindo e, de repente, falava uma frase que ia te impactar pelo resto da vida. Jamais senti qualquer arrependimento dele por ter largado a medicina, ele se realizou nas artes do jeito dele.
Você poderia ter se emocionado com os manuscritos, mas não mudado a sua vida. O que te fez deixar a publicidade para também se dedicar à arte?
A cantora Julia Ribas, quando esteve na Casa Palma, falou que não gosta de ensinar só a cantar, quer que as pessoas tenham paixão quando abrem a boca. Senti a paixão do meu pai nos manuscritos. Isso gerou em mim uma transformação e agora queremos transformar outras pessoas. Senti quase uma responsabilidade de passar isso adiante. O meu pai largou a medicina e eu larguei a propaganda para me dedicar à arte.
Qual é o grande legado que seu pai deixou?
A sensibilidade, observar as coisas ao nosso redor com mais poesia. Em um dos manuscritos, ele fala que precisamos valorizar a lentidão do passar da vida. Olha como o meu pai pintava as frutas. A maioria pegava no sacolão da esquina, é o que temos de mais cotidiano, e a partir dali mergulhava naquele universo.
Como esse legado é explorado nas experiências?
Começamos oferecendo experiências para empresas, que vinham buscar referências de sensibilidade, propósito e criatividade. Se formos observar, o diário secreto de um artista pode ser a melhor referência para uma visão fora da caixa, entender sobre si mesmo, seus sonhos, aonde quer chegar. Estava tão envolvido com o universo corporativo que não me atinei de que a casa poderia ser um ponto turístico. Hoje temos muito orgulho de fazer parte do Guia Menuuh como uma experiência turística surpreendente, e a visita guiada surpreende mesmo, é algo que não se espera. Vou entrando pelos ambientes e lendo os manuscritos do meu pai. Quando você vê, está todo mundo emocionado.
Como espera que as pessoas saiam da Casa Palma?
Primeiro, com a sensibilidade aflorada para olhar com mais poesia para o mundo e descobrir muito mais coisas que estão ao nosso redor e às vezes não percebemos. Segundo, sintonizado com o mundo lá fora e consigo mesmo.
O que seu pai pensaria sobre tudo isso?
Tenho confiança de que, onde quer que ele esteja, está muito feliz. As pessoas se emocionam, choram, riem e saem transformadas, isso é fato. Acho que era isso que ele queria e estamos seguindo à risca a receita que esse médico deixou prontinha. n